Com Miguel de Barros: “A Guiné-Bissau é um pais cheio de potencial cultural”
Até agora, só conversámos pelo WhatsApp, já que ambos andamos em correrias louquíssimas, mas apresento-vos o Miguel de Barros como um destacado sociólogo e ativista guineense, com uma trajetória académica e profissional dedicada a questões sociais e ambientais. Formado em Sociologia pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, possui especializações em Sociologia e Planeamento, além de uma pós-graduação em Exclusão Social e Luta Contra a Pobreza. Cofundador e coordenador da Célula de Pesquisa em História, Antropologia e Sociologia do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral, Miguel de Barros colabora com diversos centros de investigação, entre eles o Centro de Estudos Internacionais (ISCTE/IUL), em Portugal, o Centre Tricontinental (na Bélgica) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (no Brasil).
Miguel de Barros tem uma atuação notável em prol da justiça social e da sustentabilidade. Desde 2012, é diretor executivo da organização não-governamental (ONG) Tiniguena, onde lidera projetos de preservação ambiental na Guiné-Bissau. Na sua trajetória, destaca-se o Prémio Humanitário Pan-Africano de Excelência em Pesquisa e Impacto Social, recebido em 2019.
Conversámos assim:
Djam Neguin (sinalAberto – sA): Ao longo da sua carreira, o seu percurso passou por diversas instituições e campos de estudo. Como é que a sua experiência enquanto estudante de Sociologia no ISCTE e as suas especializações em exclusão social moldaram a sua visão sobre o ativismo social e as dinâmicas de exclusão na Guiné-Bissau?
Miguel de Barros (MdB) – Sou produto de uma geração cuja consciência e ação foram moldadas ainda na adolescência, nos movimentos sociais, de cariz territorial, como as associações de jovens e de bairros. Nos movimentos geracionais, como as associações de jovens. Ou globais como, por exemplo, as organizações de defesa do ambiente e de promoção da cidadania.
Ou seja, o meu percurso, à semelhança dos de muitos jovens da minha geração, em África subsariana, começa a ser moldado antes da universidade. Aliás, a universidade é um fenómeno muito tardio na Guiné-Bissau, surgindo só em meados dos anos 2000. Mas, de uma forma geral, a visão do mundo de um jovem africano é muito precoce e está intrinsecamente associada a um processo de maturação socializante, enquanto instância de responsabilização para a vida adulta, ao contrário, por exemplo, das sociedades ocidentais, onde as universidades têm um papel central na transição para a vida adulta.
Quero com isto dizer que, quando ingressei na universidade, como a maioria dos meus colegas que tinham saído da Guiné-Bissau e dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa], já sabíamos o que queríamos na/e com a universidade. Que era a sofisticação das nossas visões através do acesso aos instrumentos metodológicos que pudessem permitir-nos estar em melhores condições de compreender, interpretar e transformar positivamente as realidades dos nossos países, do nosso continente e para reposicionarmos o nosso lugar no Mundo.
sA – A sua formação abrange áreas tão diversas como a Sociologia, o planeamento e a questão da sustentabilidade. Que autores ou teorias foram mais marcantes na construção da sua visão sobre as desigualdades e os processos de exclusão social? Como essas influências moldaram a sua prática no terreno?
MdB – Eu insisto que a formação académica é um complemento e sofisticação, mas não o elemento determinante da visão de um homem ou mulher africano sobre as coisas. A nossa cosmopercepção é mais decisiva na forma como orienta a nosso ser, sentir e estar, independentemente da nossa profissão. Isso é uma herança cultural e um património comunitário construído. Agora, no campo académico, tive possibilidade de ter e de interagir com professores que estavam na vanguarda das questões teóricas fundamentais, como por exemplo, na área do Planeamento (com a Isabel Guerra), da luta contra a exclusão social (com José Manuel Henriques), mas também da Economia Social (com Rogério Roque Amaro).
Quando iniciei o meu percurso como técnico de planeamento, monitoria e avaliação, pude beber das experiências de personalidades que estavam no centro da agenda mundial das transformações no Mundo, a partir da agenda Sul Global. Debatendo e trabalhando com ferramentas que pudessem colocar na agenda mundial a capacidade de projeção das nossas reivindicações, com propriedade sobre a nossa identidade e paisagem geopolítica. Deste modo, foram decisivas as aprendizagens geradas com o equatorinano Patrício Sambonino Rivera e a burundesa-guineense Charlotter Karibuhoye Said, que adequaram os meus anseios e capacidade de diálogo com os instrumentos que estavam à minha disposição.
No entanto, a minha formação como intelectual africano vem da tradição da escola do pensamento da Tiniguena – uma ONG ambiental fundada pela pedagoga Augusta Henriques – e consolidou-se no âmbito das escolas do CODESRIA [Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África], com o pensamento em torno da liberdade académica e da autonomia na produção da massa crítica de base endógena, com figuras como Amílcar Cabral. Como investigador, os meus diálogos e possibilidades de aprendizagens com intelectuais africanos, como Carlos Lopes, e a minha ligação com a América do Sul (sobretudo, com o Brasil, com o Equador e com o Chile) abriram-me caminhos para contactos com intelectuais orgânicos, alargaram os meus campos de estudo e de intervenção e influenciaram a minha postura e olhar sobre a produção de conhecimento. Contudo, considero que é ao nível das comunidades locais, indígenas e povos tradicionais que consigo ter as aprendizagens mais profícuas e, deste modo, uma/a melhor compreensão do Mundo e de forma mais holística.
sA – Numa era de crise climática, como é que a Guiné-Bissau pode equilibrar o desenvolvimento económico com a conservação ambiental? A experiência da Tiniguena tem mostrado modelos de sucesso? Pode falar-nos sobre como conciliar as necessidades imediatas de subsistência das comunidades com a preservação de ecossistemas únicos?
MdB – A Guiné-Bissau possui uma biodiversidade de relevância mundial cuja conservação de espaços e de recursos naturais está intimamente ligada à vida da sua população. Apesar da reduzida superfície, 26% do seu território são áreas protegidas, é a segunda maior zona importante da concentração da biodiversidade da África Ocidental. Possui uma Reserva de Biosfera (Arquipélago dos Bijagós), quatro sítios Ramsar [a Convenção sobre as Zonas Húmidas de Importância Internacional Especialmente Enquanto Habitat de Aves Aquáticas, também conhecida como Convenção de Ramsar, foi assinada na cidade iraniana de Ramsar], que são zonas húmidas de importância internacional, com uma diversidade de recursos pesqueiros e marinhos. Já o parque de Cacheu é considerado o maior bloco contínuo de mangal na África Ocidental (68% dos 88616 hectares). E o país conserva as últimas manchas de florestas húmidas tropicais da sub-região, em Cantanhez. O país possui, igualmente, um rico e diversificado património cultural alicerçado nas tradições populares ancestrais dos diferentes grupos étnicos que moldaram e geraram vivências práticas e saberes em diferentes contextos espaciotemporais, cujo ativo transporta grande valor simbólico. O que alicerça a base das identidades nacionais e que constituem a matriz da conservação do património natural e cultural existente.
Não obstante, a Guiné-Bissau é um dos países mais vulneráveis no Mundo relativamente às mudanças climáticas, ocupando a segunda posição mais crítica, depois do Bangladesh, no que tange ao aumento dos níveis da água do mar. As devastações florestais e as queimadas, a ocupação de zonas costeiras e húmidas para implantação de infraestruturas pesadas, a agricultura itinerante e a produção de caju em regime de monocultura, o aumento demográfico e o regime de ocupação dos solos, bem como o modelo de financeirização económica baseado na emissão de licenças para exploração de recursos como estratégia de angariação de receitas para o Orçamento Geral do Estado, constituem as grandes ameaças ao património e ao equilíbrio natural na atualidade e para a próxima década.
Esses elementos fazem com que a promoção da durabilidade de uma governança baseada nos valores ambientais deva passar pela melhoria das condições de vida dos guineenses e do bem-estar nas comunidades do interior e, sobretudo, nos sítios com potencial natural e em regime de conservação, enquanto mecanismo de superação da pobreza socioeconómica e da melhoria do quadro político-institucional com maior nível de transparência na gestão de recursos naturais. Esse processo deve ser alicerçado num forte compromisso com a educação socioambiental, sociocultural e para a cidadania ativa e com a forma como o Estado adopta políticas públicas com o princípio de desenvolvimento ecológico através da economia azul e verde.
Nesta base, a sociedade civil tem um papel fundamental na articulação em torno da promoção de processos participativos baseados na cogestão de espaços e de recursos naturais, através da organização de participação de coletivos ao nível local e comunitário. Isso implica a mobilização de mecanismos para a construção e para a implementação de planos de gestão espacial, bem como a monitorização de políticas e de programas com vista à adopção de melhores práticas ambientais ou códigos de conduta com impacto ao nível da saúde dos ecossistemas, da construção de infraestruturas e tecnologias verdes, dos modelos de empregos sustentáveis baseados em oportunidades inovadores. É aqui que as intervenções e as experiências como a da Tiniguena – no que tange à gestão comunitária das áreas protegidas, à securitização das terras produtivas às comunidades camponesas, ao empoderamento das estruturas dos agricultores familiares, à intervenção na produção alimentar com base na agroecologia e ao empoderamento das mulheres rurais, assim como à valorização da produção local e à monitorização das políticas públicas na exploração dos recursos naturais – são fundamentais para criar um novo ecossistema de equidade e de sustentabilidade.
sA – Como coordenador da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau (MoAC Biss), que impacto vê na articulação entre arte e mudança social? Até que ponto acredita que a arte pode ser um canal eficaz para a crítica política e a reconstrução das narrativas identitárias no país e em África?
MdB – A Cultura é a alma de um povo. É o elemento determinante na construção e na fixação de normas, de crenças, de valores e de comportamentos que caracterizam as identidades de uma sociedade. Por outro lado, é o elemento que medeia as relações sociais no quotidiano. A Guiné-Bissau é um pais cheio de potencial cultural devido à diversidade e à autenticidade étnica dos povos tradicionais que, independentemente de todas as mutações, conseguem preservar as suas tradições, festividades e costumes, constituindo um rico e valioso património identitário – a música (Gumbé), a língua (Kriol), o vestuário (Panu di Pinti), artesanato (Nimba), festas populares (Carnaval, Fanado), gastronomia (Sigá) ou personagens místicas (Nturudu, Kumpó, Kankuran), religiosidades (irã) [um ser divino poderoso presente nas relações sociais] – preponderante no processo de socialização e do imaginário do povo e das comunidades guineenses. Todos eles jogam um papel fundamental na coesão social do povo.
No entanto, na transição para o campo artístico erudito, a Guiné-Bissau não tem conseguido concretizar esse potencial na perspetiva da economia, da geração de empregos e de serviços culturais, tendo em conta a ausência de políticas estruturais – do cinema, do livro, das artes e espetáculos –, que poderiam permitir quer a organização do setor quer a disponibilização de recursos, de infraestruturas, de equipamentos e de eventos com programação cultural para o público. É com base na crença de que a arte tem um papel crucial na construção da consciência social e na capacidade de projetar o imaginário coletivo em projetos transformadores que criámos a Bienal da Arte e Cultura da Guiné-Bissau (MoAC Biss), enquanto impulsionadora de um movimento social com idoneidade institucional capaz de intervir no espaço público, de modo a alavancar processos que conduzam à influência e ao estabelecimento de políticas e de práticas culturais que promovam a criação e a fruição cultural e artística contemporâneas, fomentando o pensamento crítico sobre a cultura e as artes, em geral, e na Guiné-Bissau, em particular, contribuindo para o desenvolvimento de um ecossistema dinâmico, potenciando redes e serviços ao nível nacional e internacional.
sA – A juventude africana enfrenta desafios profundos, como o desemprego, a migração e a desigualdade. Como os jovens da Guiné-Bissau estão moldando novas formas de organização social e política? Que exemplos concretos de inovação e resistência podem servir como inspiração para o resto do continente?
MdB – Os problemas aqui enumerados não são desafios dos jovens, senão dos estados e governos. E são problemas que afetam os jovens, pois cabe ao Estado e às suas instituições a definição das políticas públicas, assegurando um quadro plausível para a sua implementação, impactando favoravelmente em diferentes grupos sociais. Mas, desde a consagração do modelo neoliberal da economia e dos mercados, marcada no Sul Global com a implementação dos Programas de Ajustamento Estrutural, procura-se diminuir e relativizar o papel do Estado, colocando as suas competências no mercado privado, deixando que a responsabilidade sobre a população seja segmentada e desprovida de proteção social. Esse modelo criou narrativas poderosas como a do empreendedorismo – através da flexibilização dos valores associados ao trabalho e colocando o indivíduo como único ser social e responsável pelo seu sucesso dentro da perspetiva mercadológica – e, por outro lado, a ideia do sucesso, com base na atitude do sujeito que supera os outros sem ter uma pertença à comunidade.
Num país com um tecido social marcado pela pobreza económica, abordar os desafios da juventude passa por enquadrar as questões da educação, do emprego, da habitação, do acesso à comunicação, da mobilidade e da cultura, como desafios estruturantes. Sendo um país estruturalmente jovem, com mais da metade da população com idade compreendida entre os 15 e os 30 anos, as questões da juventude passam a ser emergentes e prioritárias, na medida em que a falta de educação generalizada e de qualidade para todos gera desemprego (que está acima de 40%, no caso dos jovens à procura do primeiro emprego) e essa situação faz com que muitos jovens vivam em situação de grande precariedade, o que contribui para uma longa moratória na transição para a vida adulta, podendo ser encontrados jovens com família formada, mas ainda sob a dependência e a tutela dos pais, tanto ao nível das despesas domésticas como educativas. O que, muitas vezes, gera tensões intergeracionais sobre o modelo educativo, entre o tradicional e o moderno.
Agora, a questão que se coloca é: tendo essas características, por que razão o país não tem altos níveis de violência urbana desencadeada por jovens? A resposta é que o alto nível de integração dos jovens, desde muito cedo, em dinâmicas de movimentos coletivos tem proporcionado possibilidades de educação cidadã, pois os jovens clamam por participação social e cívica como uma das formas mais seguras e dignas de mobilidade social ascendente que lhes dê competências de agentes de utilidade pública. Deste modo, o associativismo juvenil tem permitido a concretização de oportunidades de participação e de integração social, contribuindo para alimentar sonhos e projetos de futuros desejados.
Na atualidade, as outras formas mais concorrenciais de integração no mercado de trabalho e que permitem ter uma ocupação com possibilidade de renda são: a atuação no mercado de publicidade e marketing nas empresas de telecomunicações e nos grandes eventos, a venda de produtos e de serviços no mercado não formal e nas zonas rurais, a participação nas campanhas de comercialização da castanha de caju. As oportunidades que permitem o acesso a empregos ou bolsas de estudos são a militância em partidos políticos e a integração nas forças de defesa e de segurança.
Contudo, outras oportunidades de participação juvenil têm ocorrido fora desses âmbitos, numa dimensão de novos movimentos sociais, trazendo a capacidade crítica para o espaço público, com agendas engajadas em projetos de várias índoles para a reinvenção da ação cidadã e económica, tanto no país como na diáspora. São casos de iniciativas de coletivos como o Clube Amor à Leitura, a Rede de Crianças e Jovens Jornalistas (RCJJ), o movimento pan-africanista “Nô Raiz”, a iniciativa ou movimento “Nô Rapada Ambiente”, o projeto ou movimento “Educar Mentes para a Democracia” e a Casa da Cultura da Guiné-Bissau. Estes novos movimentos sociais são, todos, formas de expressividades sociopolíticas que vão muito para além de fenómenos de reivindicação como eram feitos, por exemplo, por rappers (em que a palavra cantada se assume como denunciadora das dificuldades e misérias sociais sentidas pelos jovens no quotidiano) ou por bankadas, que expunham a sua condição no espaço público para confrontar a sociedade com a sua precariedade.
sA – A sua obra sobre redes antirracistas é central para o debate sobre o legado colonial. Que paralelismos traça entre as dinâmicas raciais na Guiné-Bissau e em outros contextos africanos e internacionais? Que papel a educação e as políticas públicas podem desempenhar na desconstrução do racismo estrutural?
MdB – Tecendo redes antirracistas é um projeto coletivo inserido num processo de pesquisa colaborativa e intervenção pedagógica, quer através do ensino como da arte, através do ativismo contracolonial. Nele estão integrados pesquisadores, artistas e lideranças dos movimentos sociais de países como o Brasil, Cabo Verde, a Guiné-Bissau e Portugal, que têm promovido pensamentos e debates em torno de intervenções públicas, tanto na academia como nas periferias, servindo o livro de instrumento de síntese e de renovação conceptual das nossas propostas teóricas e metodológicas.
O colonialismo, como muitos sabem, não foi apenas um sistema de dominação territorial, mas um modelo que fragmentou sociedades, destruiu culturas e perpetuou cicatrizes que persistem até aos dias atuais. Ao olharmos para o mundo de hoje, vemos desigualdades económicas e sociais profundamente enraizadas nessas estruturas coloniais. Portanto, não é suficiente reconhecer o impacto histórico dessas práticas. É urgente que trabalhemos ativamente para reparar os danos, tanto nos territórios vítimas da colonização como em sociedades que perpetraram esses crimes e violências.
Por isso, é importante que esta e as próximas gerações possam olhar ao seu redor a partir de uma perspetiva alternativa que lhes possibilite uma nova compreensão dos processos históricos que estão na base da nossa formação sociocultural e capacidade económica. Deste modo, a restruturação das políticas públicas é fundamental para a restituição da nossa autoestima e dignidade como povo e para reparação dos danos e perdas seculares causados pelos colonialismos que instituíram as formas mais diversas de racismo. Pois são esses processos estruturais e institucionais de (re)produção do racismo que fazem com que no interior dos nossos países, mesmo em África, o entendimento sobre as desigualdades étnico-raciais se manifeste com os pobres e migrantes, por exemplo. Na Guiné-Bissau, podemos ver isso com os mauritanianos que chamamos de “Naares”, guineenses de Conkry que reduzimos a “Nánias” ou, por exemplo, em Cabo Verde, onde se referem a todos os migrantes oeste-africanos como “Mandjakus”.
Daí que assumir a Educação como projeto político emancipatório que promova a verdade, a solidariedade, a justiça, a equidade e o equilíbrio histórico é fundamental, se tomarmos em conta que a descodificação da dimensão colonial tem estado ausente do debate dentro do nosso sistema educativo, do ensino primário ao universitário, e isto inclusive nas sociedades com passados coloniais. Daí que é crucial olhar para os planos curriculares, reconstruir os manuais escolares, trabalhar sobre as representações dos professores e dos dirigentes educativos, assumir novos protocolos éticos sobre os documentos oficiais e mudar a política linguística atual nos sistemas de ensino e de aprendizagem, oficializando, por exemplo, o ensino da língua guineense ou cabo-verdiana nas escolas públicas, bem como a introdução de estudos literários nacionais e de autores nacionais nos currículos.
Acredito que, a partir desse quadro descrito, não será mais tolerável que estudantes estudem a história dos impérios grego, romano, austro-húngaro, mas não o façam com os impérios africanos do Gana, do Mali e de Kaabu (Reino de Gabu). É uma questão de verdade e de justiça histórica, pois são civilizações que antecederam o que é apresentado como História, fruto da ocultação e de invisibilidades, para legitimar formas de dominação e a exploração de territórios e povos – nesse caso, em particular, os africanos e o continente africano. É por isso que defendo a necessidade da mudança, na forma como as políticas públicas devem ser emancipadas. E no lugar da Educação no acesso ao conhecimento e à influência de comportamentos, de atitudes e práticas que são decisivas para a formação de seres humanos conscientes, justos e comprometidos com o bem viver de todos em todas as geografias.
sA – O Miguel de Barros tem sido um defensor da mobilização da sociedade civil na Guiné-Bissau. Como vê a evolução desse setor no país, especialmente em termos da sua capacidade de influenciar políticas públicas? Que estratégias têm sido mais eficazes para fortalecer a sociedade civil em contextos de fragilidade institucional?
MdB – A sociedade civil constitui o alicerce primordial da estruturação das sociedades para a promoção dos direitos, da justiça, da solidariedade entre os povos e da coesão social. Onde ela é forte, tendemos a encontrar maiores níveis de liberdade, de prosperidade e de bem-estar. Onde ela é fraca ou impedida de se constituir ou de manifestar, encontramos maiores níveis de pobreza, de intolerância, de violação ou de ausência dos direitos e de violência do Estado. Enfim, mais injustiça.
Por isso, defendo uma abordagem conceptual mais ampla, tendo em conta que o protagonismo da sociedade civil supera quer o minimalismo do Estado, em termos de legitimidade e de alcance das suas instituições, quer a própria democracia, com base nos poderes que institui, ao olharmos para a dinâmica da participação cívica dos coletivos sociais.
Na Guiné-Bissau, o Estado é frágil, descontínuo e, muitas vezes, ausente, tanto dos mecanismos organizacionais como de decisões políticas e ainda da provisão de recursos essenciais para a garantia do bem-estar. A natureza e a inserção das manifestações da sociedade civil, quer as tradicionais como as profissionais, permitem a assunção do papel de provedores de serviços, a diferentes níveis, seja como sistemas de investimento baseados em “abotas” ou através de financiamentos internacionais.
Não é só aqui, neste país, mas as várias crises globais demonstraram que a sociedade civil é, absolutamente, necessária, principalmente nos apoios às pessoas mais carenciadas, cuja exclusão económica, política e social preexistente as torna mais vulneráveis aos impactos das crises: covid-19, guerras na Ucrânia e na Palestina, no Congo, na Eritreia e no Sudão. O ativismo destes atores tem servido, igualmente, para responsabilizar aqueles que tomam decisões, defendendo respostas humanizantes às crises e, ao mesmo tempo, exigindo respeito pelos direitos humanos.
Não obstante isso, este é um processo social e não pode haver evolução, mas, sim, dinâmicas que acabam por colocar vários desafios, não só na Guiné-Bissau, embora cada contexto tenha a sua própria particularidade. Se olharmos em termos de agenda, há questões objetivas das quais não podemos fugir: 1) respeito pelos direitos cívicos e liberdades e garantias democráticas; 2) luta contra a fome, a insegurança alimentar e nutricional; 3) resposta aos desafios demográficos e luta contra a exclusão e a marginalização; 4) revisão do sistema económico e financeiro mundial; 5) renovação e requalificação da cooperação internacional; e 6) resposta à crise climática, com transição energética justa.
Isso implica maior capacidade de estruturação, de sofisticação, de coordenação e de articulação para a produção de impactos desejáveis e necessários, por parte das organizações da sociedade civil, sem, no entanto, se perder o ativismo e sem adotar modelos burocráticos de cariz neoliberal que tendem a impor modelos que seguem as tendências do mercado financeiro no financiamento público.
É reconhecida a imensa pressão que a crise do financiamento da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) e a deslocação dos recursos para a intervenção em contextos de emergência têm colocado ao pessoal das organizações da sociedade civil, principalmente aos países onde o Estado não contribui com recursos financeiros para a intervenção pública destes atores.
O fenómeno da deslocalização das organizações do Norte Global para contextos de Sul Global tem contribuído para a fragilização das parcerias, considerando a perda de mecanismos de solidariedade devido à competição pelos recursos. Na Guiné-Bissau, basta uma organização estrangeira alugar uma casa e fazer a sua sede, passando a ser considerada de nacional. Ora, isso é mercantilismo. Assim, é importante chamar a atenção para a necessidade de investimento sistemático na sociedade civil local atendendo à construção de infraestruturas organizacionais e de políticas, de modo a permitir terem maior resiliência e uma capacidade de consolidar o seu papel relevante no Sul Global, particularmente as que têm desenvolvido competências institucionais na sua relação com o Estado e também com as comunidades.
Pois, sem a ação intensa e consequente da sociedade civil na esfera pública, seria difícil conseguir os progressos tidos, hoje, no campo de novos modelos de protagonismo e na liderança de grupos marginalizados como os da juventude, do feminismo, do movimento camponês e do movimento negro.
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11/11/2024