Com Miguel de Barros: “A Guiné-Bissau é um pais cheio de potencial cultural”

 Com Miguel de Barros: “A Guiné-Bissau é um pais cheio de potencial cultural”

Miguel de Barros é um destacado sociólogo e ativista guineense. (x.com/debarros_miguel)

Até agora, só conversámos pelo WhatsApp, já que ambos andamos em correrias louquíssimas, mas apresento-vos o Miguel de Barros como um destacado sociólogo e ativista guineense, com uma trajetória académica e profissional dedicada a questões sociais e ambientais. Formado em Sociologia pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, possui especializações em Sociologia e Planeamento, além de uma pós-graduação em Exclusão Social e Luta Contra a Pobreza. Cofundador e coordenador da Célula de Pesquisa em História, Antropologia e Sociologia do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral, Miguel de Barros colabora com diversos centros de investigação, entre eles o Centro de Estudos Internacionais (ISCTE/IUL), em Portugal, o Centre Tricontinental (na Bélgica) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (no Brasil).

Intervenção de Miguel de Barros na abertura do festival “Tanto Mar”, na
cidade de Loulé, em maio de 2024. (Direitos reservados)

Miguel de Barros tem uma atuação notável em prol da justiça social e da sustentabilidade. Desde 2012, é diretor executivo da organização não-governamental (ONG) Tiniguena, onde lidera projetos de preservação ambiental na Guiné-Bissau. Na sua trajetória, destaca-se o Prémio Humanitário Pan-Africano de Excelência em Pesquisa e Impacto Social, recebido em 2019.

Conversámos assim:

Djam Neguin (sinalAberto – sA): Ao longo da sua carreira, o seu percurso passou por diversas instituições e campos de estudo. Como é que a sua experiência enquanto estudante de Sociologia no ISCTE e as suas especializações em exclusão social moldaram a sua visão sobre o ativismo social e as dinâmicas de exclusão na Guiné-Bissau?

Miguel de Barros (MdB) – Sou produto de uma geração cuja consciência e ação foram moldadas ainda na adolescência, nos movimentos sociais, de cariz territorial, como as associações de jovens e de bairros. Nos movimentos geracionais, como as associações de jovens. Ou globais como, por exemplo, as organizações de defesa do ambiente e de promoção da cidadania.

Ou seja, o meu percurso, à semelhança dos de muitos jovens da minha geração, em África subsariana, começa a ser moldado antes da universidade. Aliás, a universidade é um fenómeno muito tardio na Guiné-Bissau, surgindo só em meados dos anos 2000. Mas, de uma forma geral, a visão do mundo de um jovem africano é muito precoce e está intrinsecamente associada a um processo de maturação socializante, enquanto instância de responsabilização para a vida adulta, ao contrário, por exemplo, das sociedades ocidentais, onde as universidades têm um papel central na transição para a vida adulta.

Quero com isto dizer que, quando ingressei na universidade, como a maioria dos meus colegas que tinham saído da Guiné-Bissau e dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa], já sabíamos o que queríamos na/e com a universidade. Que era a sofisticação das nossas visões através do acesso aos instrumentos metodológicos que pudessem permitir-nos estar em melhores condições de compreender, interpretar e transformar positivamente as realidades dos nossos países, do nosso continente e para reposicionarmos o nosso lugar no Mundo.

Encontro com movimentos juvenis durante a 1.ª Edição da Escola Nacional de Inclusão, em agosto de 2024. (Direitos reservados)

sA A sua formação abrange áreas tão diversas como a Sociologia, o planeamento e a questão da sustentabilidade. Que autores ou teorias foram mais marcantes na construção da sua visão sobre as desigualdades e os processos de exclusão social? Como essas influências moldaram a sua prática no terreno?

MdB – Eu insisto que a formação académica é um complemento e sofisticação, mas não o elemento determinante da visão de um homem ou mulher africano sobre as coisas. A nossa cosmopercepção é mais decisiva na forma como orienta a nosso ser, sentir e estar, independentemente da nossa profissão. Isso é uma herança cultural e um património comunitário construído. Agora, no campo académico, tive possibilidade de ter e de interagir com professores que estavam na vanguarda das questões teóricas fundamentais, como por exemplo, na área do Planeamento (com a Isabel Guerra), da luta contra a exclusão social (com José Manuel Henriques), mas também da Economia Social (com Rogério Roque Amaro).

Quando iniciei o meu percurso como técnico de planeamento, monitoria e avaliação, pude beber das experiências de personalidades que estavam no centro da agenda mundial das transformações no Mundo, a partir da agenda Sul Global. Debatendo e trabalhando com ferramentas que pudessem colocar na agenda mundial a capacidade de projeção das nossas reivindicações, com propriedade sobre a nossa identidade e paisagem geopolítica. Deste modo, foram decisivas as aprendizagens geradas com o equatorinano Patrício Sambonino Rivera e a burundesa-guineense Charlotter Karibuhoye Said, que adequaram os meus anseios e capacidade de diálogo com os instrumentos que estavam à minha disposição.

No entanto, a minha formação como intelectual africano vem da tradição da escola do pensamento da Tiniguena – uma ONG ambiental fundada pela pedagoga Augusta Henriques – e consolidou-se no âmbito das escolas do CODESRIA [Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África], com o pensamento em torno da liberdade académica e da autonomia na produção da massa crítica de base endógena, com figuras como Amílcar Cabral. Como investigador, os meus diálogos e possibilidades de aprendizagens com intelectuais africanos, como Carlos Lopes, e a minha ligação com a América do Sul (sobretudo, com o Brasil, com o Equador e com o Chile) abriram-me caminhos para contactos com intelectuais orgânicos, alargaram os meus campos de estudo e de intervenção e influenciaram a minha postura e olhar sobre a produção de conhecimento. Contudo, considero que é ao nível das comunidades locais, indígenas e povos tradicionais que consigo ter as aprendizagens mais profícuas e, deste modo, uma/a melhor compreensão do Mundo e de forma mais holística.

Inauguração de mural de arte urbana no âmbito do projeto “carinhos urbanos”, em Bissau, em setembro de 2020. (Direitos reservados)

sA Numa era de crise climática, como é que a Guiné-Bissau pode equilibrar o desenvolvimento económico com a conservação ambiental? A experiência da Tiniguena tem mostrado modelos de sucesso? Pode falar-nos sobre como conciliar as necessidades imediatas de subsistência das comunidades com a preservação de ecossistemas únicos?

MdB – A Guiné-Bissau possui uma biodiversidade de relevância mundial cuja conservação de espaços e de recursos naturais está intimamente ligada à vida da sua população. Apesar da reduzida superfície, 26% do seu território são áreas protegidas, é a segunda maior zona importante da concentração da biodiversidade da África Ocidental. Possui uma Reserva de Biosfera (Arquipélago dos Bijagós), quatro sítios Ramsar [a Convenção sobre as Zonas Húmidas de Importância Internacional Especialmente Enquanto Habitat de Aves Aquáticas, também conhecida como Convenção de Ramsar, foi assinada na cidade iraniana de Ramsar], que são zonas húmidas de importância internacional, com uma diversidade de recursos pesqueiros e marinhos. Já o parque de Cacheu é considerado o maior bloco contínuo de mangal na África Ocidental (68% dos 88616 hectares). E o país conserva as últimas manchas de florestas húmidas tropicais da sub-região, em Cantanhez. O país possui, igualmente, um rico e diversificado património cultural alicerçado nas tradições populares ancestrais dos diferentes grupos étnicos que moldaram e geraram vivências práticas e saberes em diferentes contextos espaciotemporais, cujo ativo transporta grande valor simbólico. O que alicerça a base das identidades nacionais e que constituem a matriz da conservação do património natural e cultural existente.

Ilhas Bijagós , na Guiné-Bissau. (rtpafrica.rtp.pt)

Não obstante, a Guiné-Bissau é um dos países mais vulneráveis no Mundo relativamente às mudanças climáticas, ocupando a segunda posição mais crítica, depois do Bangladesh, no que tange ao aumento dos níveis da água do mar. As devastações florestais e as queimadas, a ocupação de zonas costeiras e húmidas para implantação de infraestruturas pesadas, a agricultura itinerante e a produção de caju em regime de monocultura, o aumento demográfico e o regime de ocupação dos solos, bem como o modelo de financeirização económica baseado na emissão de licenças para exploração de recursos como estratégia de angariação de receitas para o Orçamento Geral do Estado, constituem as grandes ameaças ao património e ao equilíbrio natural na atualidade e para a próxima década.

A Guiné-Bissau encontra-se entre os países mais vulneráveis às mudanças
climáticas. (©Tiniguena “Esta Terra É Nossa”)

Esses elementos fazem com que a promoção da durabilidade de uma governança baseada nos valores ambientais deva passar pela melhoria das condições de vida dos guineenses e do bem-estar nas comunidades do interior e, sobretudo, nos sítios com potencial natural e em regime de conservação, enquanto mecanismo de superação da pobreza socioeconómica e da melhoria do quadro político-institucional com maior nível de transparência na gestão de recursos naturais. Esse processo deve ser alicerçado num forte compromisso com a educação socioambiental, sociocultural e para a cidadania ativa e com a forma como o Estado adopta políticas públicas com o princípio de desenvolvimento ecológico através da economia azul e verde.

A Tiniguena adota o plantio de cercas vivas como forma resiliente e
sustentável de proteger, ao longo prazo, os perímetros hortícolas das
mulheres nas regiões de Oio, Bafatá, Quinará e Bolama com o Psidium
Cattleianum (figueira). (instagram.com/Tiniguena)

Nesta base, a sociedade civil tem um papel fundamental na articulação em torno da promoção de processos participativos baseados na cogestão de espaços e de recursos naturais, através da organização de participação de coletivos ao nível local e comunitário. Isso implica a mobilização de mecanismos para a construção e para a implementação de planos de gestão espacial, bem como a monitorização de políticas e de programas com vista à adopção de melhores práticas ambientais ou códigos de conduta com impacto ao nível da saúde dos ecossistemas, da construção de infraestruturas e tecnologias verdes, dos modelos de empregos sustentáveis baseados em oportunidades inovadores. É aqui que as intervenções e as experiências como a da Tiniguena – no que tange à gestão comunitária das áreas protegidas, à securitização das terras produtivas às comunidades camponesas, ao empoderamento das estruturas dos agricultores familiares, à intervenção na produção alimentar com base na agroecologia e ao empoderamento das mulheres rurais, assim como à valorização da produção local e à monitorização das políticas públicas na exploração dos recursos naturais – são fundamentais para criar um novo ecossistema de equidade e de sustentabilidade.

(instagram.com/Tiniguena)

sA Como coordenador da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau (MoAC Biss), que impacto vê na articulação entre arte e mudança social? Até que ponto acredita que a arte pode ser um canal eficaz para a crítica política e a reconstrução das narrativas identitárias no país e em África?

MdB – A Cultura é a alma de um povo. É o elemento determinante na construção e na fixação de normas, de crenças, de valores e de comportamentos que caracterizam as identidades de uma sociedade. Por outro lado, é o elemento que medeia as relações sociais no quotidiano. A Guiné-Bissau é um pais cheio de potencial cultural devido à diversidade e à autenticidade étnica dos povos tradicionais que, independentemente de todas as mutações, conseguem preservar as suas tradições, festividades e costumes, constituindo um rico e valioso património identitário –  a música (Gumbé), a língua (Kriol), o vestuário (Panu di Pinti), artesanato (Nimba), festas populares (Carnaval, Fanado), gastronomia (Sigá) ou personagens místicas (Nturudu, Kumpó, Kankuran), religiosidades (irã) [um ser divino poderoso presente nas relações sociais] – preponderante no processo de socialização e do imaginário do povo e das comunidades guineenses. Todos eles jogam um papel fundamental na coesão social do povo.

Ritual dos Bijagós. (discoverybijagos.com)

No entanto, na transição para o campo artístico erudito, a Guiné-Bissau não tem conseguido concretizar esse potencial na perspetiva da economia, da geração de empregos e de serviços culturais, tendo em conta a ausência de políticas estruturais – do cinema, do livro, das artes e espetáculos –, que poderiam permitir quer a organização do setor quer a disponibilização de recursos, de infraestruturas, de equipamentos e de eventos com programação cultural para o público. É com base na crença de que a arte tem um papel crucial na construção da consciência social e na capacidade de projetar o imaginário coletivo em projetos transformadores que criámos a  Bienal da Arte e Cultura da Guiné-Bissau (MoAC Biss), enquanto impulsionadora de um movimento social com idoneidade institucional capaz de intervir no espaço público, de modo a alavancar processos que conduzam à influência e ao estabelecimento de políticas e de práticas culturais que promovam a criação e a fruição cultural e artística contemporâneas, fomentando o pensamento crítico sobre a cultura e as artes, em geral, e na Guiné-Bissau, em particular, contribuindo para o desenvolvimento de um ecossistema dinâmico, potenciando redes e serviços ao nível nacional e internacional.

Bijagós: uma sociedade matriarcal. (chocolate.co.ao)

sA A juventude africana enfrenta desafios profundos, como o desemprego, a migração e a desigualdade. Como os jovens da Guiné-Bissau estão moldando novas formas de organização social e política? Que exemplos concretos de inovação e resistência podem servir como inspiração para o resto do continente?

MdB – Os problemas aqui enumerados não são desafios dos jovens, senão dos estados e governos. E são problemas que afetam os jovens, pois cabe ao Estado e às suas instituições a definição das políticas públicas, assegurando um quadro plausível para a sua implementação, impactando favoravelmente em diferentes grupos sociais. Mas, desde a consagração do modelo neoliberal da economia e dos mercados, marcada no Sul Global com a implementação dos Programas de Ajustamento Estrutural, procura-se diminuir e relativizar o papel do Estado, colocando as suas competências no mercado privado, deixando que a responsabilidade sobre a população seja segmentada e desprovida de proteção social. Esse modelo criou narrativas poderosas como a do empreendedorismo – através da flexibilização dos valores associados ao trabalho e colocando o indivíduo como único ser social e responsável pelo seu sucesso dentro da perspetiva mercadológica – e, por outro lado, a ideia do sucesso, com base na atitude do sujeito que supera os outros sem ter uma pertença à comunidade.

Num país com um tecido social marcado pela pobreza económica, abordar os desafios da juventude passa por enquadrar as questões da educação, do emprego, da habitação, do acesso à comunicação, da mobilidade e da cultura, como desafios estruturantes. Sendo um país estruturalmente jovem, com mais da metade da população com idade compreendida entre os 15 e os 30 anos, as questões da juventude passam a ser emergentes e prioritárias, na medida em que a falta de educação generalizada e de qualidade para todos gera desemprego (que está acima de 40%, no caso dos jovens à procura do primeiro emprego) e essa situação faz com que muitos jovens vivam em situação de grande precariedade, o que contribui para uma longa moratória na transição para a vida adulta, podendo ser encontrados jovens com família formada, mas ainda sob a dependência e a tutela dos pais, tanto ao nível das despesas domésticas como educativas. O que, muitas vezes, gera tensões intergeracionais sobre o modelo educativo, entre o tradicional e o moderno.

(Créditos fotográficos: Sally Wilson – Pixabay)

Agora, a questão que se coloca é: tendo essas características, por que razão o país não tem altos níveis de violência urbana desencadeada por jovens? A resposta é que o alto nível de integração dos jovens, desde muito cedo, em dinâmicas de movimentos coletivos tem proporcionado possibilidades de educação cidadã, pois os jovens clamam por participação social e cívica como uma das formas mais seguras e dignas de mobilidade social ascendente que lhes dê competências de agentes de utilidade pública. Deste modo, o associativismo juvenil tem permitido a concretização de oportunidades de participação e de integração social, contribuindo para alimentar sonhos e projetos de futuros desejados.

(instagram.com/Tiniguena)

Na atualidade, as outras formas mais concorrenciais de integração no mercado de trabalho e que permitem ter uma ocupação com possibilidade de renda são: a atuação no mercado de publicidade e marketing nas empresas de telecomunicações e nos grandes eventos, a venda de produtos e de serviços no mercado não formal e nas zonas rurais, a participação nas campanhas de comercialização da castanha de caju. As oportunidades que permitem o acesso a empregos ou bolsas de estudos são a militância em partidos políticos e a integração nas forças de defesa e de segurança.

Contudo, outras oportunidades de participação juvenil têm ocorrido fora desses âmbitos, numa dimensão de novos movimentos sociais, trazendo a capacidade crítica para o espaço público, com agendas engajadas em projetos de várias índoles para a reinvenção da ação cidadã e económica, tanto no país como na diáspora. São casos de iniciativas de coletivos como o Clube Amor à Leitura, a Rede de Crianças e Jovens Jornalistas (RCJJ), o movimento pan-africanista “Nô Raiz”, a iniciativa ou movimento “Nô Rapada Ambiente”, o projeto ou movimento “Educar Mentes para a Democracia” e a Casa da Cultura da Guiné-Bissau. Estes novos movimentos sociais são, todos, formas de expressividades sociopolíticas que vão muito para além de fenómenos de reivindicação como eram feitos, por exemplo, por rappers (em que a palavra cantada se assume como denunciadora das dificuldades e misérias sociais sentidas pelos jovens no quotidiano) ou por bankadas, que expunham a sua condição no espaço público para confrontar a sociedade com a sua precariedade.

Bijagós, na Guiné-Bissau. (discoverybijagos.com)

sA A sua obra sobre redes antirracistas é central para o debate sobre o legado colonial. Que paralelismos traça entre as dinâmicas raciais na Guiné-Bissau e em outros contextos africanos e internacionais? Que papel a educação e as políticas públicas podem desempenhar na desconstrução do racismo estrutural?

MdB – Tecendo redes antirracistas é um projeto coletivo inserido num processo de pesquisa colaborativa e intervenção pedagógica, quer através do ensino como da arte, através do ativismo contracolonial. Nele estão integrados pesquisadores, artistas e lideranças dos movimentos sociais de países como o Brasil, Cabo Verde, a Guiné-Bissau e Portugal, que têm promovido pensamentos e debates em torno de intervenções públicas, tanto na academia como nas periferias, servindo o livro de instrumento de síntese e de renovação conceptual das nossas propostas teóricas e metodológicas.

O colonialismo, como muitos sabem, não foi apenas um sistema de dominação territorial, mas um modelo que fragmentou sociedades, destruiu culturas e perpetuou cicatrizes que persistem até aos dias atuais. Ao olharmos para o mundo de hoje, vemos desigualdades económicas e sociais profundamente enraizadas nessas estruturas coloniais. Portanto, não é suficiente reconhecer o impacto histórico dessas práticas. É urgente que trabalhemos ativamente para reparar os danos, tanto nos territórios vítimas da colonização como em sociedades que perpetraram esses crimes e violências.

Bijagós: sob a autoridade das sacerdotisas Okinka, na Guiné-Bissau. (matricien.wordpress.com)

Por isso, é importante que esta e as próximas gerações possam olhar ao seu redor a partir de uma perspetiva alternativa que lhes possibilite uma nova compreensão dos processos históricos que estão na base da nossa formação sociocultural e capacidade económica. Deste modo, a restruturação das políticas públicas é fundamental para a restituição da nossa autoestima e dignidade como povo e para reparação dos danos e perdas seculares causados pelos colonialismos que instituíram as formas mais diversas de racismo. Pois são esses processos estruturais e institucionais de (re)produção do racismo que fazem com que no interior dos nossos países, mesmo em África, o entendimento sobre as desigualdades étnico-raciais se manifeste com os pobres e migrantes, por exemplo. Na Guiné-Bissau, podemos ver isso com os mauritanianos que chamamos de “Naares”, guineenses de Conkry que reduzimos a “Nánias” ou, por exemplo, em Cabo Verde, onde se referem a todos os migrantes oeste-africanos como “Mandjakus”.

Capa do livro “Tecendo Redes Antirracistas III”, fruto de uma
colaboração transatlântica, organizada por pesquisadores do Brasil
(Renísia Cristina Garcia Filice e Leandro Santos Bulhões de Jesus), de
Cabo Verde (Redy Wilson Lima) e da Guiné-Bissau (Miguel de Barros),
esta é uma obra pensada para a formação de professores e de
pesquisadores não só da área das Humanidades. (Direitos reservados)

Daí que assumir a Educação como projeto político emancipatório que promova a verdade, a solidariedade, a justiça, a equidade e o equilíbrio histórico é fundamental, se tomarmos em conta que a descodificação da dimensão colonial tem estado ausente do debate dentro do nosso sistema educativo, do ensino primário ao universitário, e isto inclusive nas sociedades com passados coloniais. Daí que é crucial olhar para os planos curriculares, reconstruir os manuais escolares, trabalhar sobre as representações dos professores e dos dirigentes educativos, assumir novos protocolos éticos sobre os documentos oficiais e mudar a política linguística atual nos sistemas de ensino e de aprendizagem, oficializando, por exemplo, o ensino da língua guineense ou cabo-verdiana nas escolas públicas, bem como a introdução de estudos literários nacionais e de autores nacionais nos currículos.

Acredito que, a partir desse quadro descrito, não será mais tolerável que estudantes estudem a história dos impérios grego, romano, austro-húngaro, mas não o façam com os impérios africanos do Gana, do Mali e de Kaabu (Reino de Gabu). É uma questão de verdade e de justiça histórica, pois são civilizações que antecederam o que é apresentado como História, fruto da ocultação e de invisibilidades, para legitimar formas de dominação e a exploração de territórios e povos – nesse caso, em particular, os africanos e o continente africano. É por isso que defendo a necessidade da mudança, na forma como as políticas públicas devem ser emancipadas. E no lugar da Educação no acesso ao conhecimento e à influência de comportamentos, de atitudes e práticas que são decisivas para a formação de seres humanos conscientes, justos e comprometidos com o bem viver de todos em todas as geografias.

Carnaval na Guiné-Bissau. (Créditos fotográficos: gschneusig – Pixabay)

sA O Miguel de Barros tem sido um defensor da mobilização da sociedade civil na Guiné-Bissau. Como vê a evolução desse setor no país, especialmente em termos da sua capacidade de influenciar políticas públicas? Que estratégias têm sido mais eficazes para fortalecer a sociedade civil em contextos de fragilidade institucional?

MdB A sociedade civil constitui o alicerce primordial da estruturação das sociedades para a promoção dos direitos, da justiça, da solidariedade entre os povos e da coesão social. Onde ela é forte, tendemos a encontrar maiores níveis de liberdade, de prosperidade e de bem-estar. Onde ela é fraca ou impedida de se constituir ou de manifestar, encontramos maiores níveis de pobreza, de intolerância, de violação ou de ausência dos direitos e de violência do Estado. Enfim, mais injustiça.

Por isso, defendo uma abordagem conceptual mais ampla, tendo em conta que o protagonismo da sociedade civil supera quer o minimalismo do Estado, em termos de legitimidade e de alcance das suas instituições, quer a própria democracia, com base nos poderes que institui, ao olharmos para a dinâmica da participação cívica dos coletivos sociais.

Intervenção de Miguel de Barros no encerramento da Assembleia Geral da Área Marinha Protegida Comunitária das ilhas Urok (são uma parte da região de Bolama-Bijagós, também conhecida como arquipélagos dos Bijagós), na ilha Formosa, em dezembro de 2023. (Direitos reservados)

Na Guiné-Bissau, o Estado é frágil, descontínuo e, muitas vezes, ausente, tanto dos mecanismos organizacionais como de decisões políticas e ainda da provisão de recursos essenciais para a garantia do bem-estar. A natureza e a inserção das manifestações da sociedade civil, quer as tradicionais como as profissionais, permitem a assunção do papel de provedores de serviços, a diferentes níveis, seja como sistemas de investimento baseados em “abotas” ou através de financiamentos internacionais.

Não é só aqui, neste país, mas as várias crises globais demonstraram que a sociedade civil é, absolutamente, necessária, principalmente nos apoios às pessoas mais carenciadas, cuja exclusão económica, política e social preexistente as torna mais vulneráveis aos impactos das crises: covid-19, guerras na Ucrânia e na Palestina, no Congo, na Eritreia e no Sudão. O ativismo destes atores tem servido, igualmente, para responsabilizar aqueles que tomam decisões, defendendo respostas humanizantes às crises e, ao mesmo tempo, exigindo respeito pelos direitos humanos.

Não obstante isso, este é um processo social e não pode haver evolução, mas, sim, dinâmicas que acabam por colocar vários desafios, não só na Guiné-Bissau, embora cada contexto tenha a sua própria particularidade. Se olharmos em termos de agenda, há questões objetivas das quais não podemos fugir: 1) respeito pelos direitos cívicos e liberdades e garantias democráticas; 2) luta contra a fome, a insegurança alimentar e nutricional; 3) resposta aos desafios demográficos e luta contra a exclusão e a marginalização; 4) revisão do sistema económico e financeiro mundial; 5) renovação e requalificação da cooperação internacional; e 6) resposta à crise climática, com transição energética justa.

Isso implica maior capacidade de estruturação, de sofisticação, de coordenação e de articulação para a produção de impactos desejáveis e necessários, por parte das organizações da sociedade civil, sem, no entanto, se perder o ativismo e sem adotar modelos burocráticos de cariz neoliberal que tendem a impor modelos que seguem as tendências do mercado financeiro no financiamento público.

É reconhecida a imensa pressão que a crise do financiamento da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) e a deslocação dos recursos para a intervenção em contextos de emergência têm colocado ao pessoal das organizações da sociedade civil, principalmente aos países onde o Estado não contribui com recursos financeiros para a intervenção pública destes atores.

Miguel de Barros participa no encerramento da Assembleia Geral da Área Marinha Protegida Comunitária das ilhas Urok, em dezembro de 2023. (Direitos reservados)

O fenómeno da deslocalização das organizações do Norte Global para contextos de Sul Global tem contribuído para a fragilização das parcerias, considerando a perda de mecanismos de solidariedade devido à competição pelos recursos. Na Guiné-Bissau, basta uma organização estrangeira alugar uma casa e fazer a sua sede, passando a ser considerada de nacional. Ora, isso é mercantilismo. Assim, é importante chamar a atenção para a necessidade de investimento sistemático na sociedade civil local atendendo à construção de infraestruturas organizacionais e de políticas, de modo a permitir terem maior resiliência e uma capacidade de consolidar o seu papel relevante no Sul Global, particularmente as que têm desenvolvido competências institucionais na sua relação com o Estado e também com as comunidades.

Pois, sem a ação intensa e consequente da sociedade civil na esfera pública, seria difícil conseguir os progressos tidos, hoje, no campo de novos modelos de protagonismo e na liderança de grupos marginalizados como os da juventude, do feminismo, do movimento camponês e do movimento negro.

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11/11/2024

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Djam Neguin

Djam Neguin (Bruno Amarante) é um artista multidisciplinar da nova geração de criativos contemporâneos cabo-verdianos, expressando-se através da dança, do teatro, do cinema e da música, cruzando várias formas de criação. Djam Neguin, enquanto actual agente da cena artística e cultural de Cabo Verde, vivencia diferentes afectos e domínios artísticos – artes cénicas e visuais –, passando por actividades de gestão e de produção cultural. Assim, tem estado envolvido, como coordenador geral e director artístico, na produção do Festival Internacional de Dança Contemporânea Kontornu e é criador e dinamizador do projecto virtual Rede de Dança da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da Mostra de Dança da Cidade da Praia, em Cabo Verde, entre outros eventos. Coreografou importantes acontecimentos culturais da agenda cabo-verdiana, tendo sido um dos principais dinamizadores das danças urbanas na última década, organizando “battles” e o Concurso Nacional de Hip Hop (em Cabo Verde). Tem leccionado em diferentes cidades do Mundo e também realiza, com regularidade, diversos “workshops”. Foi membro fundador e bailarino do Cabo Verde Ballet. Desde 2015, cria os seus próprios espectáculos e participa em vários circuitos internacionais. Com a sua rubrica quinzenal “Pokas & Boas” no jornal sinalAberto, Djam Neguin procura reforçar os laços culturais e os afectos no espaço lusófono, através de encontros, de vivências, de relatos, de conversas e de entrevistas com “personalidades negras das Artes, Culturas e Saberes da Lusofonia”, como sublinha.

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