Como andar de bicicleta

 Como andar de bicicleta

(Imagem de domínio público gerada por IA)

Todos os anos, desde que a utilização de meios informáticos se vulgarizou, sempre por altura das provas de aferição ou dos exames dos ensinos básico e secundário, lá surge de novo a questão da realização dessas importantes provas numa plataforma informática. “Este ano é que vai ser!”, dizem os mais entusiastas, excitados com a perspetiva de deixar para trás os arcaicos exames em papel. Infelizmente, também todos os anos, acontece sempre algo que ou leva ao cancelamento dos planos ou faz com que a experiência crie tantos problemas que o entusiasmo se transforma em amarga desilusão. Mas porque será que não conseguimos, de uma vez para sempre, atingir o tão almejado objetivo? As razões são muitas e dizem respeito a várias áreas, mas eu destacaria, aqui, apenas três tipos de razões: técnicas, organizacionais e pedagógicas.

A percentagem de aplicações informáticas desenvolvidas sem que sejam observadas regras fundamentais da engenharia é muito mais elevada do que o que se julga, o que conduz, inevitavelmente, a uma grande quantidade e frequência de problemas técnicos. Aplicações que bloqueiam e têm de ser reinicializadas, que encravam constantemente, que são lentas ou que têm comportamentos erráticos ou não previstos são em grande número. Para não fugir à regra, estes são, também, problemas que afetam as plataformas que têm sido utilizadas nos exames.

(Créditos fotográficos: Desola Lanre-Ologun – Unsplash)

O desenvolvimento de uma aplicação informática é uma atividade de engenharia e, como tal, deve estar sujeito a uma especificação rigorosa, ser realizado de acordo com um projeto sólido que responda a todos os requisitos, ter uma execução controlada e ser alvo de testes exaustivos que garantam que o sistema se comporta de acordo com o esperado em todas as situações, sejam elas frequentes ou menos frequentes, incluindo situações de carga elevada. A avaliar pelos resultados, nada disso foi feito até agora, o que parece indicar que, à boa maneira tradicional, se acredita que tudo vai correr bem, apesar dos inúmeros imprevistos e improvisos.

Depois de desenvolvidas de acordo com as boas práticas de engenharia, as aplicações têm de passar por um processo de instalação, visando a sua utilização em ambiente real. Esta é, essencialmente, uma fase organizacional que, em rigor, também faz parte de qualquer processo de engenharia. No caso de uma aplicação para realização de exames, isso significa que, após a instalação do software, tem de ser verificada a disponibilidade da aplicação e as condições de uso em todos os locais onde vai ser utilizada e tem de ser feita formação do pessoal de apoio técnico, dos professores e, sobretudo, dos alunos. Todas estas ações exigem esforço e tempo consideráveis, não podendo ser menosprezadas, sendo indispensável que seja elaborada uma calendarização. Naturalmente, essa calendarização não pode basear-se no pressuposto de que não existirão problemas e, portanto, tem de acomodar ações de afinação, de ajuste e de consolidação da aplicação e da sua utilização.

(Créditos fotográficos: John Schnobrich – Unsplash)

Por fim, sem que isso signifique que tenham menor importância já que, de facto, são estes os aspetos mais importantes, há que considerar as questões de natureza pedagógica. Aliás, é estranho que, no processo de transição para a utilização de plataformas digitais nos exames, se refiram como objetivos de grande importância a eliminação do suporte de papel e a generalização da adoção das novas tecnologias, para além de aspetos complementares relacionados com a acessibilidade às provas e a facilidade de correção. Mais uma vez, concentramo-nos na importância dos meios e esquecemo-nos dos fins! O principal e mais importante motor de qualquer alteração no ensino deve ser o benefício pedagógico, mas, infelizmente, pouco ou nada se diz sobre isso. Assim, as questões devem ser: qual o benefício pedagógico da realização dos exames numa plataforma informática? O que ganham os alunos com isso? O ensino e a aprendizagem tornam-se mais efetivos e eficazes? Porquê? Não vi, ainda, resposta a estas questões.

(Créditos fotográficos: Mimi Thian – Unsplash)

Qualquer processo de aprendizagem passa por uma fase em que temos de nos concentrar nas ferramentas ou nos mecanismos que utilizamos para atingir os fins. É assim quando, por exemplo, começamos a aprender a escrever e a ler. Só depois de sabermos escrever e ler bem é que nos podemos abstrair de como se escreve e como se lê, para nos concentrarmos naquilo que queremos escrever e nas ideias que nos são transmitidas por aquilo que lemos. É também assim quando aprendemos a conduzir, a tocar música, a pintar ou a cantar. E o mesmo se passa com a utilização das tecnologias no ensino, em geral, e nos exames, em particular.

Sem a necessária familiarização, a carga cognitiva associada à utilização de uma plataforma informática durante os exames compete com os recursos cognitivos dos estudantes, necessários para o pensamento crítico e para a resolução de problemas. Esta competição compromete o desempenho dos alunos e é um obstáculo a que demonstrem os seus verdadeiros conhecimentos e capacidades. Para nos assegurarmos de que os alunos se podem concentrar no conteúdo dos exames realizados numa plataforma informática, temos de garantir que eles atingiram um estado no qual se podem esquecer da própria plataforma. Mas isso só se atinge com uma utilização que se prolonga ao longo de um período considerável – por exemplo, um ou dois anos letivos, durante os quais a plataforma é intensamente usada nos seus testes correntes – e não nalgumas sessões de treino, nas quais a própria plataforma está em teste. No fundo, precisamos que os alunos se sintam como se estivessem a andar de bicicleta, esquecendo-se de como manter o equilíbrio e concentrando-se, apenas, no destino que querem alcançar. É esse destino que mais importa.

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11/07/2024

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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