Contra os muros da injustiça e da soberba

Rua do Benformoso, em Lisboa. (jf-santamariamaior.pt)
Há assuntos sobre os quais temos de tomar posição bem clara e de assumir sem subtilezas, quando temos necessidade ética de o fazer, apesar de sabermos que existe muita gente que pensa o contrário e que, por isso, procura fazer-nos calar com ataques pessoais velados ou com abuso de poder. Sempre assim foi ao longo dos tempos em que a incompreensão e a ignorância mancharam de sangue o chão das cidades e das aldeias do Mundo e que encostaram aos muros da injustiça e da soberba todos aqueles que, em circunstâncias próximas ou condições iguais, têm recusado receber tratamento desigual.

No sábado à tarde (11 de Janeiro), milhares de pessoas eram esperadas em Lisboa para, em marcha, a partir da Alameda Dom Afonso Henriques, se manifestarem solidárias com os imigrantes que, recentemente, no Martim Moniz (sobretudo, na Rua do Benformoso), foram alvo de uma acção policial que nos deixou mais atónitos ou mais perplexos do que a surpresa declarada do primeiro-ministro.
Na sexta-feira, as televisões já tinham exibido a reconstituição, mas na Avenida de Roma, da “operação especial de prevenção criminal” realizada, a 19 de Dezembro, naquele bairro aparentemente incómodo no “coração da cidade” e autêntico espaço de encontro cultural de indivíduos de diferentes etnias e origens. Ou seja, os organizadores da manifestação intitulada “Não nos Encostem à Parede”, enquanto intervenção cívica e sinal de alerta contra o racismo e a xenofobia, apelando à liberdade e à dignidade, quiseram demonstrar como seria essa acção dos agentes da polícia numa zona de Lisboa onde, geralmente, as rusgas não ocorrem ou não ostentam tal aparato, admitindo tratar-se de um território urbano de pessoas supostamente mais abastadas e que ainda se recordam da época em que era chique viver nas “avenidas novas”.

A discriminação apresenta, de facto, raízes históricas, mas agora renova-se e ganha uma robustez que muito preocupa quem não aceita que determinados seres humanos ou grupos sociais não tenham acesso aos mais variados recursos económicos, culturais, ambientais ou, até mesmo, políticos, mais de meio século depois de a Revolução de 25 de Abril ter marcado o início da vida democrática, na intenção de terminar com o regime autoritário do Estado Novo.
Sendo a Terra um “caldeirão étnico” ou “melting pot” em que se formam os mais espantosos cruzamentos entre as populações, há, todavia, acérrimos defensores de que a assimilação cultural é imprescindível (e, assim, a impõem) para a manutenção da unidade nacional e de um traço comunitário distinto ou singular. Em lado oposto, o receio de uma aculturação que limita ou praticamente anula os factores culturais de uns povos no relacionamento com outras sociedades – ao serem forçados a assimilarem novos comportamentos – gera, realmente, conflitos que os políticos têm de regular, rejeitando as decisões maniqueístas. A realidade não pode ser concebida, apenas, num ponto de vista dualista, quando os governantes têm ou deveriam ter ao seu dispor uma paleta de cores para os mais diversos quadros sociais.

“Para citar uma frase que não me pertence”, como escreveu Albert Camus, no prefácio à edição italiana do seu livro “Cartas a Um Amigo Alemão”, também “direi que amo demais o meu país para ser nacionalista”, acreditando nas vantagens da abertura “a uma sociedade mais ampla”. Mas, tal como o escritor nascido na Argélia e que participou na Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, eu “só abomino os carrascos”. Por essa razão, junto-me às fileiras dos que lutam contra a violência – quaisquer que sejam os seus instrumentos – e contra a injustiça e as desigualdades que quebram as energias ou a força vital de quem, afinal, só procura ser feliz.
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 12 de Janeiro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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13/01/2025