Crónica do espectador fantasma

 Crónica do espectador fantasma

Filme “A Flor do Buriti”. (caminhos.info)

XXX Festival Caminhos do Cinema Português (1)

Caminhos. Trajetórias. Percursos. Lugares pelos quais passamos e que nos mudam irreversivelmente. Há 30 anos, o Festival Caminhos do Cinema Português (FCCP) olha para as tendências do cinema português e mundial sinalizando as veredas pelas quais as nossas produções e a sociedade estão a adentrar. Mas, além de apenas indicar, também ajuda a dar rumo, pois invoca o passado e o presente para convocar o futuro. São 30 anos do FCCP. Este é o meu primeiro.

(facebook.com/caminhoscinema)

Espero que o caro leitor não considere este “espectador fantasma”1 em termos do gênero de terror, uma assombração ou voz amedrontadora na calada da noite, determinando o que há de certo e de errado no caminho. Um espectador fantasma evita a postura passiva da simples observação, mas busca a contemplação ativa, discretamente tentando ajudar a quem seja nessa tomada de rumos, através do comentário e dos possíveis dialogismos que as suas observações possam gerar. De fantasmagoria, a única coisa que quisera mesmo era ter podido vislumbrar todos os caminhos que o cinema português percorreu ao longo desses últimos 30 anos de festival. Mas, mantenhamo-nos no presente.

“À Mesa da Unidade Popular”, filme luso-moçambicano realizado por Isabel Noronha e Camilo de Souza. (caminhos.info)

Este é, definitivamente, um dos anos em que o Festival Caminhos do Cinema Português faz total jus à escolha do seu título, seja porque realmente sinaliza a direção que o cinema português vem adquirindo, seja por que estamos percebendo quais os sentidos a nossa vida está formando, depois de uma demarcação espácio-temporal tão importante quanto foi a pandemia de coronavírus, entre 2019 e 2022. Quanto mais nos afastamos daquele ponto, mais olhamos para trás e conseguimos enxergar o traçado da nossa movimentação, os caminhos que seguimos e as novas possibilidades.

“Grand Tour”, de Miguel Gomes. (caminhos.info)

Não é à toa que um dos principais filmes desta edição é, justamente, sobre viagens e escolhas. “Grand Tour”, de Miguel Gomes (o grande vencedor de Melhor Direção em Cannes 2024 e o indicado português ao Oscar 2025) é um filme que estabelece mais uma de tantas retomadas pós-pandêmicas, aquela em que há ampliação das coproduções e a recuperação de vínculos, na Europa e em outros países mundo afora. Movimento de reaproximação que também rendeu o restabelecimento de parcerias de produção já antigas, como a de Portugal e o Brasil – representados por “A Flor do Buriti”, de João Salaviza e Renée Nader Messora, e por “Pedágio”, de Carolina Markowicz –, assim como a dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) – representados pelo filme “À Mesa da Unidade Popular”, de Isabel Noronha e de Camilo de Souza.

  Filme “Contos do Esquecimento”, de Dulce Fernandes. (caminhos.info)

De qualquer forma, enxergamos uma seleção de produção muito rica e inventiva em 2024, que explora temáticas bastante pujantes na atualidade portuguesa, europeia e global. Temas como a saúde mental e emocional infantil, a gentrificação e a migração nas metrópoles, bem como a problemática da escassez e o aumento das rendas imobiliárias, estão todas impressas nesta amostra. Neste ano, inclusive, podemos degustar um pouco do poder afetivo do aparato cinematográfico, quando Dulce Fernandes, em “Contos do Esquecimento”, consegue trazer à tona cicatrizes emocionais do período escravocrata português, fazendo uma denúncia visceral, quase sem precisar do fator humano no ecrã. Em contraposição, há uma retomada também de uma mirada autoral, feita pelo jogo entre estilos de fotografia e de manuseio do conteúdo narrativo, cada vez mais ensaístico, que alterna entre o registro documental e ficcional.

(caminhos.info)

Se o Festival Caminhos do Cinema Português já está há 30 anos ajudando a moldar e a indicar as vias mais utilizadas pela produção cinematográfica desta região, estou certo de que os novos caminhos que podemos vislumbrar agora trarão, cada vez mais, bons augúrios. Da mesma forma, se o poder fantasmagórico comentado anteriormente me permitisse, iria espreitar as seleções e as direções tomadas dos próximos anos. Certamente, o ano de 2024 terá imensa importância para o futuro do cinema português.

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Nota da Redacção:

1 – Assim se designa a rubrica que Henrique Denis Lucas agora inicia no jornal sinalAberto, falando de cinema e reforçando as pontes culturais no espaço lusófono.

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14/11/2024

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Henrique Denis Lucas

Henrique Denis Lucas (Rico de Lucas) é natural de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, no Brasil, e é doutorando em Media Artes, pela Universidade da Beira Interior, com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Obteve o grau de mestre em Comunicação e Informação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (em 2018), depois de se licenciar em Comunicação Social – Produção Editorial, pela Universidade Federal de Santa Maria, ambas no Brasil. As suas áreas de interesse estão na intercessão entre a Arte e a Comunicação, com projectos nos campos da realização audiovisual, da música e das artes gráficas. Recentemente, foi distinguido com o Prémio Trajectórias Culturais – Mestra Griô Sirley Amaro, pelo seu trabalho de investigação na comunicação e nas artes, com ênfase no estudo de audiências, e o Prémio da Lei Paulo Gustavo de Santo Ângelo, pela produção do videoclipe “Ricocheto - Quadros e contornos”. Actualmente, está a produzir um filme-ensaio sobre o luto, intitulado “Dormitórios”, no âmbito da sua tese de doutoramento.

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