Diário de guerra (VII)
1 – A acreditar nas últimas sondagens, que não devem andar longe da realidade, bastaram seis meses para o Partido Socialista regressar àquilo que vale, mesmo no seu melhor. Os eleitores que, em Março, foram votar para se livrarem de um governo de aliança da direita com a extrema-direita já se foram embora, andam a ver no que dá este governo. Regressámos, pelos vistos, às vésperas daquelas eleições.
Tudo isto porque uma combinação de soluções erradas e de erros de governação estão a levar a população a recolher ao seu lugar habitual as expectativas que tinham depositado na maioria absoluta. O raspanete público a Pedro Nuno Santos nunca devia ter existido e as circunstâncias da demissão de Marta Temido vieram expor as fragilidades do primeiro-ministro quando confrontado com uma campanha atiçada pela direita. Estes dois acontecimentos lançaram a dúvida sobre a capacidade de o governo conseguir proteger os seus ministros.
O mais decisivo, porém, para este deslizamento do governo terão sido as medidas que adoptou para enfrentar os efeitos da inflação e sobre os bens essenciais. Se o valor deste indicador ainda não parou de aumentar, prevendo-se que, em 2023, atinja valores inimagináveis, o meio mês de salário e o aumento dos salários previsto acabarão por ser derretidos por ela. Tudo, ou quase tudo, porque de Bruxelas só nos chegam histórias mirabolantes de conquista e de reconquista.
Aliás, o último episódio destas histórias é passado no fundo do mar, quiçá fazendo parte de um manuscrito esquecido de Júlio Verne. Não é que mergulharam a 60 metros de profundidade, segundo as notícias, e com um alicate cortaram os tubos que serviam para abastecer a Europa de gás? E ninguém viu? Estando já certa a autoria da malandrice, a União Europeia virou a cara para o céu, estava um avião a passar. Ou terá sido avisada para virar a cara porque o gesto ia ser feio e não se queriam testemunhas? Humilhação por humilhação, terá preferido ser humilhada por um dos seus. Fica tudo em casa, é só mais uma humilhação. Hannah Arendt havia de dizer que, neste gesto, se juntou a pior das combinações: o acontecimento moral (o insulto aos Europeus) e o acontecimento político (a manifestação de arrogância para com os países europeus). Entretanto a extrema-direita avança, de cima para baixo, e de baixo para cima. Tudo porque o centro-direita e o centro-esquerda estão a dar o berro.
2 – Estamos ainda recordados da reacção do governo de Madrid ao referendo realizado na Catalunha pela independência, em que os independentistas ganharam. Ainda temos na memória as cargas policiais sobre quem desejava querer ir exercer o seu direito de voto. Ainda estamos lembrados do estado de sítio a que aquela região ficou praticamente sujeita durante bastante tempo, das prisões de dirigentes políticos e da fuga a que outros se viram obrigados. Tudo porque os Catalães não se consideram Castelhanos e querem seguir a sua vida sem terem de prestar contas ao governo central, seja ele de direita ou de centro-esquerda, não era isso que estava em causa.
Perante os resultados dos referendos realizados, nos últimos dias, pelas forças pró-russas nas regiões de Kherson, de Zaporizhia, de Lugansk e de Donetsk (ou seja, no Donbass ucraniano), veremos se a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) decide tirar a sua máscara e invadir aqueles territórios. Os dirigentes do Kremlin sempre afirmaram que as suas intenções se limitavam àquela região, maioritariamente russófona e sujeita sistematicamente aos massacres das autoridades de Kiev. Embora os publicitários ocidentais queiram mostrar uma caricatura do que ali está a acontecer, a verdade é que a afluência às mesas de voto converge com a vontade sentida por aquelas populações de manifestarem a sua escolha.
Se, com a contagem dos votos, o Ocidente mostrar, por uma vez desde 24 de Fevereiro, alguma clarividência e aceitar a vontade expressa pelos residentes, pode ser que estejam criadas as condições para se chegar a um entendimento pacífico do conflito. Esse é um preço que o presidente ucraniano não deseja pagar? Não sei, só depois de ouvir o que tem a dizer o Pentágono, pela voz de Joe Biden.
Não foi por acaso, certamente, que, na mesma altura, se verificaram dois acontecimentos: a tentativa de contra-ofensiva ucraniana sobre os territórios que agora estão a ir a votos e que redundaram num fracasso; e, do lado russo, a mobilização dos reservistas, não vá o par Joe Biden/Ursula von der Leyen lhe dar para se pôr aos tiros na fronteira. É que a tal guerra de conquista da Ucrânia, afinal, não passava de um golpe publicitário dos peritos ocidentais para manterem a opinião pública de dentes afiados. Vai-se a ver e é 20% que não deseja ser governada por Kiev. São estas as semelhanças entre a Catalunha e o Donbass.
3 – Após algumas semanas de descanso, eis que a propaganda regressa às primeiras páginas dos jornais e as televisões voltam a abrir os seus noticiários com a guerra na Ucrânia. O detonador foi a contra-ofensiva sobre os territórios do Donbass e, agora, o anúncio da mobilização de 300 mil reservistas do exército russo.
Como aconteceu anteriormente, a comunicação social aguardou pelo mote que o Pentágono estudou para intoxicar as populações e passou a fazer dele notícias. Sobre a contra-ofensiva, estaria por dias a derrota dos Russos; quanto à mobilização, representaria, em cima da derrota, uma humilhação. Porém, tudo leva a crer que o avanço do exército ucraniano parou em Izyum. E nem o Ocidente tem conseguido melhorar o panorama dessa reconquista, mau grado todo o equipamento de guerra que diariamente atravessa as fronteiras da Ucrânia e os milhares de combatentes recrutados e pagos para se meterem pela boca do canhão, fazendo tempo para que os valores da inflação na Europa atinjam os dois dígitos.
Quando o aumento do custo de vida chegar à fronteira do suportável, não vai haver esmola nem esmolinha que consiga deter a ira da população. Depois, vamos ver!
No que à mobilização diz respeito, para surpresa dos publicitários, a crer nas imagens transmitidas, o que eles designam por ditadura russa, deixou que se formassem extensas filas de viaturas em direcção à Geórgia, tendo de parar na fronteira, de mostrar os passaportes e de seguir viagem. Não sei que argumento os guardas fronteiriços engoliram para deixarem passar tantos reservistas. Foram subornados, dirão os publicitários.
O certo é que, desde há muitas semanas, o conflito passou a ser entre as forças da NATO e a Rússia, foi para esse nível que o Ocidente o levou. Estando as coisas neste pé, agora sim, com toda a propriedade, só um louco não se defenderia de uma ameaça em movimento que, em caso de menosprezo, em poucos dias estaria às portas de Moscovo. O sonho, afinal, de qualquer inquilino da Casa Branca. Com tudo isto a acontecer sob os seus olhos, ao fim de sete meses, a Assembleia Geral das Nações Unidas passou o dia a lançar gasolina sobre o conflito sem uma palavra, sequer, sobre a paz. Depois, dizem que o louco é o outro.
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Nota do Director:
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06/10/2022