Divina IA

 Divina IA

(Imagem de domínio público gerada por IA)

É já inegável que a inteligência artificial (IA) se instalou definitivamente no nosso mundo, sendo que a sua utilidade e campos de aplicação crescem a cada dia. Tratando-se de uma ferramenta útil e poderosa, era perfeitamente expectável (ia dizer “natural”, mas, depois, arrependi-me) que tal acontecesse, à semelhança do que ocorreu com tantas ferramentas que estão na base do extraordinário nível de desenvolvimento da nossa sociedade.

De entre todas essas ferramentas, destacam-se, claramente, os sistemas informáticos, que nos permitiram automatizar todo o tipo de tarefas e, também, aceder a, trocar e processar enormes volumes de informação. A inteligência artificial não é mais do que o passo seguinte no processamento, na automatização e no acesso à informação.

São variadas as áreas de aplicação da IA. Temos alguns exemplos como a saúde, os transportes, o ensino, a economia, os processos de fabrico, a segurança, o ambiente, as cidades e edifícios inteligentes, a arte e o entretenimento.

Na saúde, a inteligência artificial é já utilizada para diagnóstico, para a definição de planos de tratamento personalizados, para o processamento e na análise de imagens médicas ou, ainda, para a implementação de assistentes virtuais de aconselhamento médico. É claro que, nesta fase do desenvolvimento, nenhuma ferramenta de IA substitui o pessoal médico, mas é, apenas, uma questão de tempo até termos sistemas inteligentes cuja taxa de erro e utilidade ultrapasse a dos humanos, por muito que nos custe admitir isso.

(Imagem de domínio público gerada por IA)

Outra área na qual a IA está a desempenhar um papel cada vez mais importante é a dos transportes, mais especificamente no que diz respeito à condução autónoma. Os atuais sistemas de condução autónoma, quer de veículos privados quer de transportes públicos, são capazes de reconhecer todo o tipo de situações e de tomar decisões complexas num tempo que é muito inferior ao do tempo de resposta dos humanos, salvando muitas vidas. Além disso, não se distraem com conversas ao telefone nem com os restantes ocupantes dos veículos. Para além da condução propriamente dita, estes sistemas podem ser utilizados na otimização dos percursos, bem como nas tarefas de manutenção preditiva dos veículos, detetando problemas muito antes de que eles ocorram, o que contribui para a minimização de gastos e de acidentes.

(Imagem de domínio público gerada por IA)

Muitos outros exemplos se poderiam referir nas citadas áreas do ensino, da economia, dos processos de fabrico, da segurança, do ambiente, da arte e do entretenimento, mas questões de espaço levam-me a referir só mais duas: a justiça e a religião.

Recentemente, foi notícia a suposta utilização de inteligência artificial na elaboração de um acórdão, o que teria resultado em vários erros ou imprecisões. Veja-se as peças jornalísticas “Erros crassos em acórdão levam advogados a suspeitar de inteligência artificial”, de Ana Henriques, na edição de 24 de novembro de 2025 do jornal Público, e ainda “Artigos e jurisprudência que não existem. Acórdão da Relação gera polémica. Advogados dizem que foi feito por inteligência artificial”, da autoria de Rita Pereira Carvalho, na edição de 25 de novembro de 2025 do Observador. Independentemente de ter ou não sido utilizada IA nesse caso, existe já a convicção de que a utilização de inteligência artificial nesta área tem grande potencial, tal como é referido no artigo “Inteligência artificial na justiça – A IA tem o potencial de melhorar significativamente a eficiência e precisão da justiça, mas também apresenta desafios significativos”, de Paulo Lona (secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público), em 2 de maio de 2023).

É certo que existe ainda um longo caminho a percorrer, todavia, tal como nas outras áreas de aplicação, também aqui se chegará a uma situação na qual a IA será uma ferramenta fundamental para todos os intervenientes neste campo.

(Imagem de domínio público gerada por IA)

Por incrível que pareça, a inteligência artificial está, igualmente, a ser utilizada na religião. Com efeito, uma igreja católica suíça disponibiliza agora um “Jesus Cristo” gerado por IA que ouve e responde aos fiéis no confessionário. Apesar de se tratar de um projeto controverso, muitos fiéis estão a aderir a esta solução, que possibilita elevados níveis de interatividade. Afinal, muitos de nós precisamos, somente, de “alguém” que nos ouça, compreenda e responda a dúvidas e a anseios.

Percebemos, assim, que as aplicações e as possibilidades da IA são praticamente ilimitadas. Isso, de facto, é o que muitos especialistas de inteligência artificial mais temem. Especificamente, existe o receio de que os sistemas de inteligência artificial desenvolvam soluções e plataformas de SIA (superinteligência artificial), fazendo com que as máquinas ultrapassem as capacidades da inteligência humana em todos os domínios. Com efeito, os sistemas de IA têm capacidade para desenvolver código de forma autónoma e para melhorarem o seu desempenho. Teme-se, por isso, que a IA desenvolva software tão avançado que ninguém seja capaz de o compreender ou controlar, algo que poderá já ter acontecido. Esses sistemas poderão, por sua vez, ser utilizados para o desenvolvimento de soluções ainda mais avançadas, num ciclo sem fim. Os objetivos dessas ferramentas deixariam, então, de estar alinhados com os objetivos e os valores humanos. Os sistemas de IA passariam a ter comportamentos imprevisíveis e incompreensíveis para nós, e fugiriam completamente ao nosso controlo.

Em última análise, esses sistemas poderiam tomar controlo de todos os aspetos da sociedade e tornarem-se totalmente independentes, olhando-nos como ameaça à sua própria existência e desencadeando ações que poriam em risco a nossa sobrevivência como espécie. Pura ficção, dirão muitos. Nunca, no entanto, estivemos tão perto de tal acontecer e, segundo vários cientistas de renome mundial, trata-se de uma ameaça cada vez mais real.

(Imagem de domínio público gerada por IA)

Estamos ainda a tempo de limitar a utilização de inteligência artificial aos casos e às situações em que ela é verdadeiramente útil. Para isso, é necessário dedicar muito tempo e esforço de investigação para o desenvolvimento de soluções de IA alinhadas com a ética e os valores humanos. Há, também, que desenvolver legislação regulatória nacional e internacional aplicável quer ao desenvolvimento quer à utilização de soluções de IA, tornando-as transparentes, explicáveis, controláveis e auditáveis. Naturalmente, tal requererá a colaboração de países, regiões, cientistas e da própria indústria. Por fim, há que educar o público em geral – jovens e menos jovens –, alertando-o para as vantagens e para os riscos da inteligência artificial. Só assim poderemos evitar uma divina IA, que tudo saiba, tudo controle e tudo decida, sem que nada possamos fazer para a deter.

.

05/12/2024

Siga-nos:
fb-share-icon

Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

Outros artigos

Share
Instagram