Dois irmãos muito diferentes
Era uma vez um aprendiz de vidraceiro chamado Domingos. O seu trabalho de todos os dias, como voluntário, naquelas férias de Verão, entre o 11.º ano e o 12.º ano de escolaridade, era aprender a arte de cortar vidro para vidraças de janelas, quadros com gravuras e tudo o mais que precisasse daquela operação. Dos restos que iam ficando, tinha autorização para cortar pequenos rectângulos para molduras que ele próprio fazia, num jeito de brincadeira, para grande satisfação do patrão, que as vendia a bom preço.
A um canto da grande mesa de trabalho, muito plana e lisa, forrada a feltro, onde se esquadravam e cortavam as grandes chapas, além da régua e da fita métrica, estava sempre o riscador, uma espécie de caneta em latão, polida do uso, terminada numa ponta de diamante com que riscava o vidro, o que permitia o corte certeiro.
Bem seguro atrás da orelha e numa imitação do mestre, o Domingos trazia agora, também ele, o lápis muito afiado, com que tomava nota das encomendas, fazia contas ou escrevinhava apontamentos próprios da sua aprendizagem. Só o tirava em casa, findo o trabalho, para voltar a pô-lo, na manhã seguinte, ao sair. Fazer o percurso a pé, de ida e volta, de lápis na orelha, era uma maneira de mostrar ao mundo que era alguém que já trabalhava.
Um belo dia, à hora de ir almoçar, fora do que era o seu costume, o rapaz tirou o lápis da orelha, colocou-o sobre a mesa de trabalho, mesmo ao lado do riscador, e saiu, fechando a porta atrás de si. Foi no silêncio da oficina deserta, que a ponta de diamante, dirigindo-se ao bico do lápis, começou por dizer:
– Até que enfim que te tenho aqui ao pé. Há que tempos que te vejo lá em cima, na orelha do rapaz, sem poder falar contigo.
– É verdade. – Concordou a ponta do lápis. – Os objectos, como nós, só podem falar quando não há ninguém por perto. É por isso que as pessoas nem sonham que nós falamos uns com os outros.
Ao retomar a conversa, a ponta do riscador, com o seu ar de importância, apresentou-se.
– O meu nome é diamante. Nasci, há muitos milhões de anos, lá bem no interior da Terra, a mais de 200 quilómetros de profundidade, onde a pressão é cerca de 60 mil vezes superior à que temos aqui, à superfície, e a temperatura ultrapassa os 1600 ºC. Sou o mineral mais duro que se conhece. Sou quase exclusivamente feito de carbono, o mesmo elemento do vulgaríssimo carvão. Praticamente, nada me destrói. Só o fogo, mas é preciso que a atmosfera seja bem rica em oxigénio e a temperatura atinja valores muito elevados, superiores a 800 ºC. Tenho também o meu calcanhar de Aquiles, a que os estudiosos chamam clivagem perfeita.
– E o que é que isso quer dizer? – Perguntou a ponta do lápis, curiosa.
– Quer dizer que, em algumas direcções da minha rede cristalina, os átomos ligam-se por forças mais fracas, o que faz com que eu me parta facilmente segundo essas direcções. Portanto, se me derem uma pancada com a orientação correcta, lá me separo eu em dois bocados. Mas, tirando esta minha fragilidade, sou indestrutível. O meu nome, que vem do grego antigo adamans, quer dizer isso mesmo. Sou incorruptível, como dizem os mais eruditos.
– É curioso que eu também sou um mineral, mas não tão velho como tu. Sofro do mesmo mal e até mais do que tu. Se me baterem ou apertarem, desfaço-me toda. – Interrompeu a ponta do lápis. – Também sou quase exclusivamente feita de carbono, chamo-me grafite e não sou mesmo nada dura. Pelo contrário, sou quase tão macia como a manteiga, a ponto de ser usada como lubrificante. Também venho do interior da Terra, embora de menor profundidade. Dado o facto de eu ser assim tão escura, quase preta, e de a minha dureza ser muito baixa, desde há muito que me usam para escrever e desenhar sobre o papel. É por isso que me baptizaram de grafite, tendo por base a raiz grega graph, que traduz a ideia de escrever. É essa tua fragilidade, a que chamas clivagem, que, em mim, é um dom que me torna importante. É, precisamente, por eu me separar tão facilmente por esses planos de fraqueza que me torno útil na escrita e no desenho, pois vão ficando no papel esses meus minúsculos bocadinhos, registando o traço.
– Nós, os da minha espécie, – retomou o diamante – somos, no geral, quase incolores. Mas há diamantes de quase todas as cores e, até, pretos –acrescentou. – Somos todos muito apreciados pelo excepcional brilho que temos. Tão especial que lhe foi dado o nome de adamantino. Temos também, depois de facetados e polidos, uma dispersão da luz e uma cintilação únicas entre os minerais! Ninguém nos fica indiferente! Eu, como não era assim muito branquinho nem muito transparente, não fui parar à bancada do lapidador, não tendo sido usado para fazer jóias. Mas, dada a minha grande dureza, viram-me utilidade na indústria, e aqui estou!
Seguro da sua importância, o diamante não parava de falar das qualidades que a mãe Natureza lhe dera.
– Duros, indestrutíveis e com este brilho, muito valorizado pela lapidação, há muito que somos tratados como pedras preciosas, ao lado das esmeraldas, das safiras e dos rubis. Temos grande procura como uma das gemas de maior cotação no mercado e lapidam-nos desde o século XIV.
– De facto, – anuiu a grafite – eu pertenço a uma espécie mais humilde, mas muito trabalhadora. Não ando nas coroas nem nas tiaras de reis e rainhas nem nos colares nem nos anéis das estrelas de cinema, mas tenho muita utilidade em importantes indústrias, como são as do aço, dos refractários, dos lubrificantes, das baterias eléctricas e a dos lápis, claro. – Respirou fundo, como que a tomar folgo, e continuou. – Ficas agora a saber que as minas dos lápis de escrever são feitas com grafite. Do bico do lápis já saíram grandes obras de arte no desenho e na escrita. Olha, os desenhos originais de, Leonardo da Vinci ou os de Pablo Picasso são tão valiosos que, em leilão, rivalizam com os melhores diamantes! A lápis, muitos arquitectos como Vitúrbio, Le Corbousier, Oscar Nimeyer ou o português Eugénio dos Santos, esboçaram projectos de grandes obras que fizeram história. Olha – disse por fim –, ficas também a saber que ainda hoje, na América, os alunos, nas escolas, e os adultos, no seu trabalho, preferem o lápis à caneta.
– Alto aí! – Interpôs a ponta do riscador. – É verdade que alimentamos a vaidade dos poderosos e ricaços, mas também é certo que evitamos a fome em países como a Namíbia e o Botswana. É verdade que temos sido causa de guerras, de roubos e de grandes crimes contra inocentes, mas nem te passa pela cabeça a importância dos diamantes na indústria, em especial, na de equipamentos de corte e perfuração e de abrasivos. Não há nada, desde o aço à pedra mais dura, que nós não consigamos cortar, perfurar ou desgastar. São as serras diamantadas, as cabeças das sondas que procuram as águas subterrâneas ou o petróleo, são as lixas especiais e muitas outras moderníssimas aplicações.
Entusiasmado com esta também sua utilidade entendeu acrescentar: – A nossa importância é tal neste sector da sociedade moderna que a extracção de diamantes naturais não chega para as necessidades do consumo. Há, pois, que os produzir industrialmente, o que já se faz desde meados do século passado. Até te digo que, actualmente, a produção de diamantes artificiais ou sintéticos ultrapassa, de longe, a sua exploração na Natureza. E já somos produzidos para outros fins, tirando partido de outras propriedades que temos. O nosso muito baixo coeficiente de expansão térmica e a elevadíssima condutividade térmica faz-nos ideais como dissipadores de calor em sistemas computorizados de alta “performance”; se formos tratados com boro, tornamo-nos semicondutores e isso coloca-nos numa posição privilegiada para os novos “chips” informáticos. E mais: já nos fazem em placas transparentes com alguns milímetros de espessura que são ideais para janelas em diversas indústrias, desde a aeroespacial à investigação de ponta em Física.
– Também nós! – Contrapôs a ponta do lápis. – É muito mais a grafite produzida artificialmente do que a que se extrai como minério por esse Mundo fora.
– Deixa-me dizer-te mais uma coisa. – Interrompeu a ponta de diamante. – Há uns anos, já se fazem diamantes sintéticos em muitas cores e com tamanho e qualidade suficientes para serem usados em joalharia.
– Mas eu, – atalhou a grafite – não te esqueças nunca disso, eu tenho tudo o que é preciso para me transformar em diamante, mas não estou nada interessada nisso. Posso, perfeitamente, ser a fonte do carbono utilizada na síntese do diamante, a altas pressões e altas temperaturas, e só de pensar nisso fico com arrepios! Mas o que é facto é que saio de lá como se fosse tua irmã gémea.
– Bem vistas as coisas, – disse o diamante – nós pertencemos à mesma família.
– Para já, temos a mesma composição química. Ambos somos feitos de carbono. – Anuiu a grafite que continuou, explicando. – As grandes diferenças entre nós só têm a ver com a profundidade a que fomos gerados. Eu sei isto – prosseguiu – porque, um dia, o Domingos me deixou em cima da mesa onde costuma estudar, ao lado de um livro de Geologia, aberto precisamente na página em que se falava de nós. É, apenas, a forma e a energia com que se ligam os átomos de carbonos que nos distingue.
– Eu também sei – interrompeu o diamante, não querendo ficar atrás desta sua parente tão chegada. – Lá na mina, na província do Cabo, perto de Kimberley, na África do Sul, onde me apanharam, havia um engenheiro que gostava de explicar tudo isso a quem quer que estivesse por perto. Foi aí que aprendi que, antes de ser diamante, fui, talvez, um simples carvão fóssil que, em conjunto com outras rochas da crosta terrestre, fui arrastado para níveis muito profundos de uma zona do interior da Terra a que se dá o nome de manto. Foi aí que fiquei transformado naquilo que sou. Estava eu muito sossegado, anichado numa rocha chamada eclogito, quando, passados mais alguns milhões de anos, lá vim eu cá para cima numa viagem super-rápida. Percebi, então, que estava a ser arrastado pela lava de um vulcão. Nem tive tempo para me adaptar ao novo clima. Acostumado àquele forno imenso e sob grande pressão, vejo-me, agora à temperatura e à pressão normais à superfície da Terra. Depois de tanta aventura, eu bem gostava de ter sido lapidado e colocado num anel de noivado, ao lado de uma pérola, – desabafou, num doce suspiro – mas, quando dei por mim, ia num grande vapor, a caminho da Irlanda, de onde parti para França, o país da fábrica em que fui cravado nesta espécie de caneta de metal amarelo, tão polidinha, do uso, que mais parece feita de ouro.
Pois olha, – retorquiu a grafite. – A minha história não é muito distinta dessa. A única diferença foi eu não ter sido arrastada lá para tão fundo, como tu foste. Não cheguei a descer abaixo da crosta, tão fundo como tu desceste e é só por isso que não sou um diamante. Mas insisto em afirmar que tenho muito orgulho naquilo que sou e faço.
Nesta fase do diálogo entre as duas pontas de carbono, abriu-se a porta da oficina. Apanhadas de surpresa, calaram-se imediatamente como se a conversa tivesse cristalizado ali. O Domingos dirigiu-se à grande mesa e os seus olhos brilharam, satisfeitos, ao ver o lápis que julgara ter perdido. Pegou nele e, num gesto automático, colocou-o atrás da orelha.
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Nota da Redacção:
Este texto integra o livro “Era uma vez… com Ciência, publicado pela Âncora Editora, em 2012.
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07/11/2024