Editora de poesia: uma profissão de alto risco

(Créditos fotográficos: Jeremy Thomas – Unsplash)
Mudei várias vezes de profissão, mas, aos trinta anos, tinha a certeza de que queria dedicar o meu trabalho à Poesia. Não só os tempos livres, mas todo o meu tempo de cidadã e mulher trabalhadora: a ler e a editar poetas.

Quando, em 1991, deixei a Gazeta do Interior, perante o espanto geral de todos, e me instalei em Coimbra, cidade universitária, era o projeto que levava comigo.

Meses antes, não por acaso, fui ao encontro de Sophia de Mello Breyner Andresen. E, no dia 1 de junho de 1991, na Feira do Livro de Lisboa, com o primeiro volume nas mãos da “Obra Completa” que a Editorial Caminho começava a editar, estava em frente de Sophia.
Disse o meu nome, que muita gente não percebe à primeira, e ela olhou para mim, fixou-me como se exclamasse: “Ah, és tu!” Sem perguntas, escreveu o nome e o apelido no livro, sem errar, marcando, com data e assinatura, um encontro de olhares e de silêncio.
Só muitos anos mais tarde lhe escrevi, de Coimbra. Já tinha editado os poetas Jorge Melícias, Cidália Fachada, Valter Hugo Mãe, António Salvado, Diogo Cabrita, José Guardado Moreira, Paulo Ramalho e muitos outros, levando assim à falência o meu projeto editorial, que realizei com todas as minhas forças e os meus parcos haveres (até ao último tostão) na editora A Mar Arte.

A editora que se orgulhava de só editar poesia, acolheu ainda uma revista na qual publiquei textos de Fernando Madaíl, de José Luís Peixoto, de Nuno Garcia Lopes, de Maria Manuel Viana, de Rui Manuel Amaral, de Isabela Figueiredo e dezenas de outros autores que se transformaram em amigos.
O fim da editora A Mar Arte foi um desgosto que me coube como a qualquer ser humano que se preze, só comparável ao sofrimento pela perda dos avós e dos pais.
Valeu-me, na altura, a poesia, salvando-me dos escombros, como só ela consegue (é uma das suas funções vitais).
Conheci, no calvário da perda, o professor George Steiner, que me apresentou Paul Celan e outros autores que também começaram a ser meus; e, com os livros de María Zambrano, organizei pensamento.

Na casa aberta e sem fronteiras que era a editora A Mar Arte, já tinha conhecido pessoalmente Antonio Gamoneda (“falar desde a pobreza não é igual que falar sobre a pobreza”), futuro Prémio Cervantes; e o Al Berto, numa noite inesquecível em Lisboa, onde, num cacilheiro ancorado no cais do Tejo, jantámos os três, rodeados de dezenas de poetas que já tinha lido. Essa noite permanece na minha vida como um dos milagres em que a poesia também é pródiga: superar a capacidade do sonho.
Pelo caminho, já tinha igualmente recebido cartas de Herberto Helder, postais de Eugénio de Andrade, conhecido o Mia Couto, bem como Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, no Edifício Chiado. E lido “Os Pés Luminosos”, de Jorge Sousa Braga, numa edição da Centelha, de Coimbra, onde cooperei com o que restava dela: a Fora do Texto, lugar onde ajudei a editar a Ana Luísa Amaral, Jorge de Sena e António Ramos Rosa.

Retomando o fio à meada, após ter amaldiçoado a edição de Poesia pela perda irreversível da A Mar Arte, voltei à edição com a Alma Azul, produtora que criei e que me ajudou a cicatrizar as feridas (já o contei, a Alma Azul nasce após um encontro com Agustina Bessa-Luís, que convidei para apresentar um livro de Camilo Castelo Branco, na Livraria Lello, no Porto).
É como editora (missão ou vício, não sei), mas também como produtora de atividades literárias, que envio a Sophia de Mello Breyner Andresen uma carta com o pedido de autorização para a incluir no “Livro de Cabeceira da Poesia Portuguesa” que a Alma Azul dedicou aos poetas do século vinte.
Na carta, explicava que o meu primeiro livro de poesia foi uma antologia sua, editada na Moraes Editores, do António Alçada Baptista, que desconheço, ainda hoje, como me veio parar às mãos. É um livro de 1970 e, nessa data, tinha apenas nove anos; mesmo que a edição me chegasse um par de anos atrasada, não tinha idade para conhecer a importância de Sophia na Poesia Portuguesa.

A verdade é que sem a leitura da sua “Arte Poética”, em três partes, editada nesse livro – e sem os versos: “E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro / Baloiça nos pinheiros.” (no poema “Praia”) –, eu nunca teria chegado ao poema “O Minotauro” e aos seus dois versos finais: “Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto / Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.”

E nunca teria chegado à edição de Poesia que continua a ser o meu projeto de vida. Porque não conheço ofício mais importante do que a Poesia para o apuro da nossa humanidade.
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27/03/2025