“Enquanto há liberdade e enquanto há imprensa”

(palavraaberta.org.br)

No sábado, como tem sucedido todos os anos a 3 de Maio, desde que a data foi proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em Dezembro de 1993, foi assinalado o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, na intenção de despertar as consciências e as vontades de cidadania. Mais uma vez, observamos que é uma tentativa praticamente estéril no que toca à sensibilização dos governantes – muitos deles ditadores, que só entendem a linguagem do poder e da força – a comprometerem-se com a liberdade de imprensa. São incontáveis as situações em que os senhores poderosos de toda a espécie procuram ocultar as mortes, as prisões, as ameaças e as agressões físicas a jornalistas no desempenho da sua actividade informativa, essencial para o desenvolvimento das comunidades e para a vivência democrática.

Como diria Paul Valéry, citado pela jornalista Diana Andringa, num texto ensaístico sobre a liberdade de informação e de expressão, “dois perigos ameaçam constantemente o mundo: a ordem e a desordem”. Acerca da euforia do 25 de Abril de 1974, quando “não era ainda certo o resultado do golpe de Estado desencadeado pelo Movimento das Forças Armadas”, a antiga dirigente do Sindicato dos Jornalistas recorda a circunstância em que Raul Rego e Vítor Direito, respectivamente nas funções de director e de director-adjunto do vespertino República, “anunciaram à redacção uma decisão acabada de tomar”. Conta Diana Andringa que coube a Vítor Direito apresentar essa determinação: “Meus amigos, o doutor Rego e eu decidimos que o jornal não vai hoje à Censura! Mais: já pedi ao chefe Jacinto que mandasse compor a frase ‘Este jornal não foi visado por qualquer Comissão de Censura’. Sairá em rodapé, a toda a largura da primeira página!”
Passados 51 anos da Revolução dos Cravos e 50 anos da publicação da Lei da Imprensa, reitero a percepção de João Garcia (ex-director da revista Visão) quando afirma que “vivemos uma época em que a informação e o jornalismo voltam a ter imperiosa necessidade de se repensar”. No mesmo sentido, o atento cartoonista Luís Afonso regista o diálogo de duas personagens na sua rubrica “Bartoon”: “Hoje comemora-se o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. / É de aproveitar duplamente para comemorar. / Aproveitar duplamente? / Enquanto há liberdade e enquanto há imprensa.”

Acabo de ler a versão fac-similada, ou seja, a reprodução fiel à edição censurada, em 6 de Junho de 1966, do livro “O Vinho e a Lira”, com 43 poemas de Natália Correia, cujo relatório do “leitor” Joaquim Palhares, um zeloso agente da Polícia Internacional e de Defesa do Estado, não surpreende na falta de subtileza: “Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más. [sic]”
Note-se que Natália Correia já tinha, em 1966, três obras censuradas e era considerada “persona non grata” para o Estado Novo. Daí que os censores estivessem preparados “a priori” para proibir todas as obras que publicasse.

De facto, o livro “O Vinho e a Lira”, editado por Fernando Ribeiro de Mello, foi condenado pelas expressões eróticas (“imorais” para o relator) supostamente contidas nos poemas. Nada comparável com a relevância da “Antologia da Poesia Erótica e Satírica” (com selecção, prefácio e notas de Natália Correia e ilustrações de Cruzeiro Seixas) nem com o manual indú “Kama Sutra” ou o volume “A Filosofia na Alcova”, da autoria do Marquês de Sade, divulgados no novo livro de poemas de Natália Correia. Essa ousadia irritou o “leitor” Palhares: “Mas o pior mal está no desplante com que se anuncia neste livro a edição e distribuição de livros da maior inconveniência anti-social, já anteriormente proibidos por estes Serviços, facto que a meu vêr justificava uma severa punição. [sic]”
………………………….
.
Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 4 de Maio) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
.
05/05/2025