Entre a coragem política e a mimetização

(50deabril.com)
Ao longo da vida, mais desigual para uns do que para outros, vamos ensaiando comportamentos e atitudes que – muitas vezes, sem prevermos as ressonâncias – nos classificam sob o olhar de gente que, como nós, também procura a felicidade num novo dia. Neste emaranhado de vivências que nos engrandece ou que nos torna desprezíveis, continuo a apreciar as pessoas que têm a capacidade de agir contra a corrente do rio das ideias feitas.

Na leitura do livro “A Morte Feliz”, de Albert Camus, retenho a frase: “Assim como os cães não mudam de feitio, os homens são como os cães para os outros homens.” Esta afirmação carrega uma certeza, mas simultaneamente inúmeras interpretações, desde logo, fundamentadas na significação que atribuímos à forma como estes animais – que elegemos como fiéis amigos – abanam a cauda ou rosnam. No entanto, para o escritor (que foi um dos fundadores do jornal de esquerda Combat), o absurdo serve de ponto de partida para as suas considerações.
Ao admitir que a relação dos humanos com a Natureza é absurda e inalterável, Camus sugere que precisamos de saber viver com o contraditório e com as situações incongruentes ou com o que, à primeira vista, não tem sentido. Todavia, também é dele a declaração de que a “felicidade implica uma escolha” e, “dentro dessa escolha, uma vontade, constante e lúcida”.

Num tempo enturvado pelos tiranetes do Mundo, a surpresa torna-se banal, a exemplo do recorde de decisões de Donald Trump no primeiro dia em que retoma o poder. Como destaca a revista Veja, recordando o que “já havia acontecido na posse de 2017, mas agora com virulência e contundência ampliadas”, Trump fez da sua investidura um manifesto em que “usa a caneta para empurrar todos os limites”.
Revigorado e sem colete de forças, o reeleito presidente dos Estados Unidos da América (EUA) disse, no seu discurso de tomada de posse, que iria expulsar “milhões e milhões” de imigrantes ilegais, como tinha prometido na sua campanha eleitoral. E foi noticiado que, nas primeiras 24 horas de Donald Trump na Casa Branca, foram detidos mais de 300 imigrantes.

Em entrevista ao jornal Público, António Vitorino reconhece que o anúncio de uma série de medidas anti-imigração, como a limitação da concessão de nacionalidade a crianças nascidas nos EUA, trará “consequências significativas para a generalidade das comunidades de imigrantes”. Contudo, o presidente do Conselho Nacional para as Migrações e Asilo (CNMA), mesmo ponderando que o “direito de cidadania pela nascença é algo que tem expressão importante nos EUA”, não antevê que as políticas de imigração da Administração de Donald Trump venham a ter uma “dimensão muito significativa” na deportação de portugueses.
Não rejeitando o risco de as medidas avançadas pelo presidente norte-americano terem efeitos de mimetização, fazendo “aumentar a pressão sobre os governos para endurecerem as suas políticas”, António Vitorino reitera o líder socialista, quando Pedro Nuno Santos defendeu, ao ser entrevistado pelo Expresso, que o procedimento para dar início à concessão de autorização de residência para o exercício de actividade profissional já não faz sentido.

Na opinião de Vitorino, a manifestação de interesse “subestimou o impacto e o efeito de chamada de um mecanismo mais simplificado, que explica a subida crescente do número de imigrantes num curto espaço de tempo”. Por conseguinte, o presidente da CNMA acredita na iniciativa de o Governo negociar “um mecanismo de imigração regular que permita facilitar a imigração em função das necessidades do mercado de trabalho”. Neste aspecto, Pedro Nuno Santos, ao encarar “com normalidade” as críticas – sobretudo, as de militantes do seu partido –, é categórico quando advoga que a imigração seja regulada através da política e não do mercado.
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 26 de Janeiro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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27/01/2025