“Espero que Molly esteja bem”
XXX Festival Caminhos do Cinema Português (3)
Após as celebrações de abertura do XXX Festival Caminhos do Cinema Português (FCCP), confesso ter precisado de um momento para absorver todo o conteúdo afetivo envolvido naquele momento emocionante. Quando retornei ao evento, a primeira sessão competitiva Caminhos estava no fim, acabando a exibição do filme “Grand Tour”, atual sensação do cinema português.
Na sua sequência, estava programada uma conversa entre o seu realizador, Miguel Gomes, e o professor universitário Osvaldo Silvestre (da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), com um auditório cheio. Como já havia visto o filme algumas vezes, estava a esperar pelo encontro posterior à projeção, concentrado na escrita reflexiva sobre a homenagem a Luís Miguel Cintra. Quando dei por mim, estava com Miguel Gomes ao meu lado, esperando para entrar no cinema. Apertei a sua mão – e confesso nunca antes ter apertado a mão de um vencedor do Festival de Cannes – e ele, gentilmente, trocou algumas palavras comigo. São noites emocionantes as do FCCP e de muita importância para os que estão a chegar agora, certamente.
Contive a minha admiração e, logo, todos entrámos na sala do Teatro da Cerca de São Bernardo, pois rapidamente se iniciou a conversa sobre o filme. “Grand Tour” passa-se em 1918. Edward é um noivo em fuga. Molly, rejeitada, persegue-o pela Ásia, tentando reatar. Sinteticamente, este é o enredo do filme que galardoou Miguel Gomes com o prémio de Melhor Diretor de Cannes, em 2024, e é o indicado português para o Oscar 2025. Entretanto, esse breve resumo da trama não consegue captar todas as “nuances” sensoriais embutidas no filme, pois há nele diversos mecanismos narrativos que exploram a história com inventividade.
A narração de vários locutores, no idioma nativo dos lugares em que os personagens se encontram, ajuda a audiência a compreender um pouco do contexto cultural de cada lugar. Acabei por concordar com o professor Osvaldo Silvestre, quando propôs a possibilidade de o filme tornar-se um dispositivo que converte o espectador em estrangeiro, ao suscitar-nos uma dificuldade de identificação plena com todas as culturas e idiomas que são ali expressos. A experiência idiomática funciona como catalisador de uma experiência fílmica. Hipótese confirmada presencialmente por Miguel Gomes, o qual considera que a identificação advém da necessidade de que as personagens também se sentissem estrangeiras.
Na sua construção, há um desencontro entre Edward e Molly e ambos não conseguem absorver totalmente as mudanças que o ambiente propõe durante a viagem, justamente por conta dessa vivência exótica. Para o realizador Miguel Gomes, o espectador é sempre um estrangeiro. Assim, recordou o filme “O grande combate” (“Cheyenne Autumn”, de 1964), em que o seu próprio realizador, John Ford, conta que, em certa ocasião, alguns indígenas estavam a assistir à projeção e começaram a rir-se. Quando perguntados da razão dos risos, disseram que, no filme, havia disparates no idioma cheyenne.
O cineasta crê que o mesmo pode até acontecer em “Grand Tour”, porque ele não tem como comprovar se os nativos contratados para atuar no filme interpretaram exatamente o que ele pediu. “E isso faz parte da experiência do filme”, diz ele, resignado com a sua escolha – e, sinto, que almejando replicar tão boa história em seu filme. “Aos poucos, nós fomos criando uma espécie de narrador coletivo, como se fossem diversos locutores anónimos, testemunhas daqueles acontecimentos, da mesma forma que acontece com as pessoas que contam histórias”, reconhece. Na sua visão, Edward e Molly são marionetas do ambiente em que se encontram e, talvez, do relato dos seus possíveis narradores.
Por essa razão, no filme, somos amplamente expostos a apresentações teatrais ou circenses, considerando a produção também como um diário de viagens – e, talvez, até um estudo sobre as peculiaridades de cada tipo de espetáculo e a sua relação com a narrativa. “O cinema asiático é o que atualmente me interessa mais”, afirma Miguel Gomes, demonstrando a sua afeição e, ao mesmo tempo, indicando as suas referências de inspiração para esta produção. O uso de imagens que, à primeira vista, não parecem ter relação com a narrativa, logo mostram ter funções afetivas importantes, pois são as imagens das viagens de Miguel Gomes aos sítios do filme – um vínculo extradiegético importante para a criação da história.
Quando interrogado pela plateia sobre a escolha do preto e branco (P&B) como recurso estilístico da fotografia e acerca da sua alternância com algumas poucas imagens a cores, Miguel Gomes é pragmático: “90% do filme foi feito a preto e branco, com película. Mas essa película não era tão boa para filmar à noite. Então, filmámos as partes coloridas para passá-las ao preto e branco, posteriormente. O filme foi montado em preto e branco na sua totalidade. Mas, logo nos cansamos do P&B e, simplesmente, decidimos repor a cor novamente. Sabíamos que iriam perguntar-nos qual seria a lógica disso? Não há lógica alguma, a não ser a busca por beleza, pois colocámos as cenas a cores de maneira selvagem e aleatória. Foi uma decisão por estética.”
Nesta fala, percebemos a pura intencionalidade autoral de Miguel Gomes e a sua confiança e postura bem resolvidas como realizador – atributos muito bem salientados pelo académico Osvaldo Silvestre. A sua montagem é responsável por dar usos autênticos a recursos do cinema clássico: as vinhetas circulares em preto e branco que realçam os objetos em foco nas cenas; os telegramas de Molly, que surgem escritos no ecrã; o uso criativo do som, como nos famosos apitos de censura que encobrem a voz dos atores durante insultos.
Particularmente, também me causou uma ótima impressão o advento da troca entre registos contemporâneos e antigos, que me geraram um sentido de que esta história é, talvez, mais universal do que propriamente datada – há uma valsa de motocicletas e a aparição de telemóveis numa narrativa de 1918, ao passo que também há sobreposição de imagens e emprego de registos documentais, alternando as imagens a cores e a preto e branco. São dispositivos que se arriscam, a meu ver, a criar novos caminhos para a narração de uma boa história.
Quando relacionado por Osvaldo Silvestre com o cinema de Werner Herzog, sobre uma possível busca por uma “imagem pura e virginal”, num mundo em que tudo parece já ter sido visto, Miguel Gomes assenta os seus objetivos: “A inocência do olhar, para mim, é algo importante, tal qual para Herzog. Da mesma forma, para o viajante, parece que tudo já foi cartografado. Gosto de trabalhar com estereótipos, de pegar nos lugares comuns e de levá-los para outros sítios. Começar pelo que é reconhecível e levar para outro lado, tentando recuperar a inocência do cinema, uma primeira vista das coisas”.
Gosto da forma como o realizador vê não apenas o cinema, mas também as suas autorias. Creio não ser gratuito que o filme tenha dado o Prémio de Melhor Realização do Festival de Cannes, em 2024, a Miguel Gomes. Os mecanismos escolhidos funcionam num terreno de percepção e de afeto – o que, a meu ver, deveria ser a real intenção do cinema como arte. Contudo, a minha perspectiva, como espectador, é a de que a narrativa do filme tem, por si só, já muitos matizes autênticos. A utilização de recursos estilísticos ajuda, em grande parte, a ampliar o espectro dessa originalidade. Não obstante, o meu receio é que a aplicação exacerbada de alegorias visuais possa gerar cansaço no espectador, o que é ótimo, em termos gerais, mas pode causar deriva no público mais acostumado ao cinema hollywoodiano.
Pela sua inventividade e uso de conteúdo de viagem, “Grand Tour” recordou-me os filmes-ensaios de Chris Marker e Agnés Varda e, em alguns momentos, trouxe-me a lembrança sensória de “Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera”, de Kim Ki-Duk. Confesso que a produção ganhou outros sentidos para mim depois da breve aproximação com Miguel Gomes. Tal qual Elizabeth Gilbert levanta a hipótese de contaminação criativa, no seu livro “Grande Magia – Vida Criativa Sem Medo”, sinto que o seu breve aperto de mão tenha me trazido inspiração, não apenas pelos afetos envolvidos na produção do filme, mas também pela sua aura artística, uma rápida transmissão de criatividade. Agradeço-lhe imensamente por esse presente, Miguel Gomes. É bom ver uma produção de tão grande requinte em Portugal. Assisti-la gerou-me verdadeira vontade de viajar e de conhecer o itinerário asiático de “Grand Tour”, criando artisticamente. Enquanto isso, vou revendo o filme mais vezes!
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21/11/2024