Falando de estátuas
Nos dois meses que passei na Madeira para a encenação com a Associação Teatro Experimental do Funchal (ATEF) do espectáculo “Liberdade, Liberdade…”, o escultor António Rodrigues, quem colaborou como cenógrafo e como aderecista, foi uma companhia diária inestimável.
Conheço o Toninho, como lhe chamam os seus amigos, há mais de 40 anos, desde a minha participação como encenador do TEF (Teatro Experimental do Funchal), na Madeira/Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal, no Teatro Municipal Baltazar Dias. Nas muitas conversas diárias, trocámos também opiniões sobre estátuas e, veio à baila, a história – ou mito urbano – de a estátua de Dom Pedro IV, no Rossio, em Lisboa, estar aparentada ficcionalmente com a estátua de Maximiliano de Habsburgo-Lorena, primo de Dom Pedro II e último imperador do México, no momento mais trágico da sua vida.
Será verdade que a estátua do Rossio é, afinal, a do imperador Maximiliano, do México?
Consultada a página electrónica do meio de informação e de entretenimento NCultura, ficamos a saber que a construção da estátua foi um processo, em tudo, muito pouco pacífico nem fácil: “Foram feitos 3 concursos públicos e 2 demolições.”
“O terceiro concurso internacional ocorreu em 1864. Houve 87 proje[c]tos candidatos, tendo vencido o do escultor Louis Valentin Elias Robert e do arquite[c]to Gabriel Davioud. Já em segundo lugar ficou o de António Tomás da Fonseca”, regista o sítio NCultura, adiantando que “D. Pedro segurava na mão a Carta Constitucional, enquanto fitava o bisavô absolutista, D. José I, montado a cavalo e representado no Terreiro do Paço”.
A propósito do mito que se lhe associa, a mesma fonte observa que, “durante muito tempo, foi alimentada a versão de que a estátua de D. Pedro no Rossio seria, na sua génese, uma representação de Maximiliano do México, personagem que acabou fuzilada”. Por conseguinte, o “mito defendia que tinha sido feito uma espécie de reaproveitamento de uma estátua que seria de Maximiliano, mas que, entretanto, já não fazia sentido ser feita e erguida”.
Nota ainda o NCultura que outras versões “falam numa troca de estátua e que, por essa ordem de ideias, a estátua de D. Pedro estaria no México, enquanto a de Maximiliano se erguia no Rossio”. Como se observa no início do mesmo artigo, em alguns casos, “basta apenas uma opinião, um comentário ou uma imprecisão para dar origem a um mito que se pode perpetuar e até ser assumido por muitos como uma verdade absoluta”.
Depois desta história narrada pelo meu amigo António, lembrei-me de uma outra que, de forma similar, é narrada por Gabriel García Márquez, o jornalista e escritor colombiano laureado com o Prémio Nobel de Literatura, em 1982.
Durante muitos anos, especulou-se que o monumento ao General Francisco Morazán, erguido na praça principal de Tegucigalpa (capital das Honduras), seria a estátua do Marechal Ney, comprada em Paris, num armazém de esculturas usadas. Este mito urbano (que poderia ter passado despercebido) foi popularizado pelo escritor colombiano, quando disse: “O monumento ao General Francisco Morazán, erguido na praça principal de Tegucigalpa, é na verdade uma estátua do Marechal Ney, comprada em Paris num armazém de esculturas usadas…”
Contradizendo a pena do autor do realismo mágico latino-americano, Rafael Leiva Vivas, autor do livro “A Estátua de Morazán”, verificou a autenticidade da estátua, após dois anos de pesquisa nos arquivos diplomáticos de Paris, onde encontrou a descrição da obra encomendada por contrato, em 29 de Julho de 1882, entre Ramón Rosa (representando o governo das Honduras) e o engenheiro norte-americano Francisco Durini, o empreiteiro escolhido.
Para obter informação mais pormenorizada sobre este assunto, leia, por exemplo, no blogue Vuelve Al Centro, o artigo “¿Es la estatua de Morazán realmente de él?” e também, na página electrónica Nacer en Honduras, o artigo “Una Farsa que Estatua no sea la de Morazán”.
A estas duas histórias posso juntar mais uma. Mas esta é verídica e está relacionada com o escultor francês Auguste Rodin e o Chile. Para narrar sobre este episódio, cito elementos recolhidos na plataforma OpenEdition Journals, ao consultar o artigo “Historia de dos monumentos: el ascenso del héroe, la caída de un villano y el olvido de Rodin”, assinado por José de Nordenflycht.
A obra de Rodin “La Défense” tem as suas origens no concurso para comemorar a heróica defesa de Paris contra o invasor prussiano, em 1870-1871. Apresentado pelo jovem escultor entre os artistas consagrados da época, fica atrás na selecção porque a sua alegoria simbolista reduziu à dicotomia de género masculino-feminino as diferenças realistas que as figuras, com os seus elementos de vestuário, exigiam, atendendo às taxonomias militares de rigor (isto é, literalmente, por as figuras representadas estarem nuas). Muitos anos mais tarde, o comité holandês da Liga dos Países Neutros, que queria erguer um monumento comemorativo da defesa de Verdun, doou uma cópia do monumento, que foi inaugurado em 1920, naquela cidade francesa.
Entretanto, em 1883, “Rodin decidiu enviar o modelo de La Défense para o Chile, no contexto do concurso para a construção em Valparaíso de um monumento às Glórias Navais, que representaria cinco heróis da Guerra do Pacífico, incluindo Arturo Prat”1. Escusado será dizer que o projecto de Auguste Rodin foi rejeitado, pelas mesmas razões. Ou seja, por apresentar o herói nacional da Guerra do Pacífico desnudado. Foi no final da década de 1950 que o presidente (alcalde) da cidade vizinha de Viña del Mar comprou uma cópia da obra, que foi instalada em frente da Câmara Municipal.
Mas a história não acaba aqui. Em 2003, o director do Museu Nacional de Belas Artes de Santiago do Chile, Milan Ivelic, e o subdirector do Museu Rodin de Paris anunciavam, orgulhosos, que, entre Março e Julho de 2005, 40 esculturas de Auguste Rodin (1840-1917), considerado o “pai da escultura moderna”, seriam expostas no museu chileno. Dois anos depois, cumpriu-se a promessa: a 5 de Maio de 2005, foi inaugurada a exposição com um conjunto de 62 esculturas, algumas delas icónicas, como “O Beijo” e “O Pensador”, bem como de cerca de 30 desenhos e de 28 fotografias. No entanto, passado pouco mais de um mês de exibição, um acontecimento causaria consternação dentro e fora do museu chileno.
Na tarde de 16 de Junho, o pequeno bronze “Torse d’Adèle” desapareceu de uma das salas, a Sala Matta. Consternados, os responsáveis do museu comunicaram o roubo à polícia, que recuperou a peça em menos de 24 horas. Foi devolvida por um estudante de Arte da Universidade Arcis, Luis Onfray Fabres, de 20 anos, que disse tê-lo encontrado despejado nos jardins do Parque Florestal, nas imediações do museu. Algum tempo depois, ele próprio admitiria tê-la roubado, embora se justificasse dizendo que fazia parte de um “projecto artístico”.
E, para finalizar, volto ao início deste artigo para falar de uma obra de arte pública do escultor António Rodrigues2, a qual se encontra abandonada na garagem (ou armazém) da Casa da Cultura de Câmara de Lobos, esperando pelo seu lugar público há 25 anos. Estou a referir-me à obra “Rendimento Diário, que é uma peça de arte pública realizada em três tipos de pedra vulcânica local (basalto, tufo de lapilli ou bagacina e traquito) e criada pelo escultor madeirense na década de 1990, como homenagem aos chamados “miúdos das caixinhas”. Eram crianças que, nas décadas de 1980 e de 1990, eram obrigadas a mendigar dinheiro na ilha da Madeira. Muitas delas foram raptadas e abusadas sexualmente devido às suas circunstâncias desesperadas. Em vez de cumprir o seu papel de obra de arte pública, a escultura está guardada ou ocultada pelo município de Câmara de Lobos, há um quarto de século.
No YouTube, podemos aceder a um singular documentário sobre este assunto intitulado “Uma escultura deixada ao esquecimento | Performance”.
Uma outra peça deste escultor madeirense, intitulada “Varadouros”, com data de 2004, situada na Avenida do Mar, na cidade do Funchal, encontra-se também maltratada, precisando de restauro e de maior cuidado e atenção relativamente à sua localização e enquadramento, pois, está, literalmente, cercada ou blindada por postos de venda de sorvetes e similares, impedindo que seja vista e apreciada.
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Notas:
1 – Arturo Prat Chacón (1848-1879) destaca-se, com lugar único, na História Naval do Chile. Morreu no dia 21 de Maio de 1879, nos primeiros dias da Guerra do Pacífico. Prat era, então, um oficial de trinta anos que estava ao comando da corveta La Esmeralda.
2 – António Rodrigues é natural do Funchal. É licenciado em Artes Plásticas/Escultura, na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e colaborou com o mestre Lagoa Henriques em esculturas públicas. Está representado no Museu de Arte Contemporânea do Funchal (com desenhos) e no Museu Etnográfico da Madeira (com baixos-relevos). Foi distinguido pelo Governo Regional da Madeira com o Galardão de Mérito Cultural, em 1995, pela criação da BD (banda desenhada) “Malta do Manel”, publicada entre 1993 e 2000, no Diário de Notícias-Madeira.
É co-autor do projecto “Museu Virtual APA” (Artur Pestana Andrade), conjuntamente com os professores Norberto Gomes e Filipe Gomes, www.museuapa.com (2012), sendo o curador responsável pelos instrumentos musicais idiofones.
Actualmente, está aposentado do ensino, por antecipação e vontade própria. Foi professor na Universidade da Madeira, leccionando Arte e Design e Ciências da Educação. Leccionou também no Instituto Superior de Administração e Línguas (ISAL), na Escola de Hotelaria e Turismo da Madeira (EHTM) e na Escola Secundária Francisco Franco, onde foi delegado do agrupamento de professores de Artes Visuais.
Como explica o meu amigo António Rodrigues, o motivo escultórico intitula-se “Varadouros” porque era ali naquela zona da avenida do mar, então praia de calhau, que antigamente varavam os barcos de cabotagem, para carregar e descarregar mantimentos transportados de e para outras zonas da ilha, e
também pessoas, que eram transportadas ao colo e em ombros conforme retrato no relevo. Daí a ideia de representar o embarque (positivo) e desembarque (negativo).
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15/07/2024