“Fanny e Alexander”
Antes do Natal, perguntei aos meus amigos mais cinéfilos quais eram os filmes que viraram costume nas suas famílias, produções que poderiam sugerir para uma sessão especial na Noite Santa. As sugestões eram múltiplas e a maioria delas coerentes com a temática: “Sozinho em casa”, de Chris Columbus (1990), “Feliz acaso”, de Peter Chelsom (2001), “Charlie e a fábrica de chocolate”, de Tim Burton (2005), “O Grinch”, de Ron Howard (2000) e a assim seguia.
Numa lista secundária, estavam as recomendações que divergiam um pouco das primeiras, sinalizando que havia ritualísticas fílmicas adversas que fugiam um tanto do clima natalício usual. Surgiram filmes como “2046”, de Wong Kar Wai (2004), “Música no coração”, de Robert Wise (1965) e até a trilogia de “Regresso ao futuro”, de Robert Zemeckis (1985, 1989 e 1990). No meio destas listas, um filme em particular intrigou-me. Era “Fanny e Alexander”, de Ingmar Bergman (1982), uma subversão dos contos natalícios tradicionais, a partir do olhar autêntico deste grande realizador. Esse foi o meu escolhido.
Fanny (Pernilla Allwin) e Alexander (Bertil Guve) são um casal de jovens irmãos, membros de uma família de aristocratas suecos, no início do século XX. A meio das tradições familiares natalícias, acontece a morte de Oscar (Allan Edwall), o pai das crianças. O acontecimento gera problemas para o clã dos Ekdahl e para o seu modo de vida burguês, mas traz consequências ainda mais drásticas para Fanny e Alexander, que veem a sua infância correr riscos por conta das más decisões da sua mãe, Emilie (Ewa Fröling), e das relações impostas pelos novos ambientes aos quais estão inseridos.
A narrativa foi, primeiramente, escrita para ser transmitida pela televisão sueca, mas logo ganhou um corte para exibições nos cinemas. Não é gratuito que muitos considerem o filme a obra prima de Bergman, pois contém uma realização impecável, detalhista ao milímetro, com uma composição cinematográfica intencionalmente pictórica e um universo narrativo que se interliga de maneira coesa e coerente em prol do enredo e da experiência fílmica. Além da mise-en-scène arrojada, o filme consegue aproximar-se sensivelmente de temáticas peculiares a toda obra do realizador, como é o caso da sua abordagem sobrenatural, em contraposição com uma realidade naturalista. Bergman faz uso do cinema para transmitir os seus pontos de vista reflexivos e para partilhar algumas de suas vivências autobiográficas. E ele faz isso como ninguém.
No decurso da trama, o espectador precisa estar em alerta constante, pois só assim terá acesso a pormenores que mostram rápida, minuciosa e pontualmente elementos que influenciam a nossa percepção da estória. Juntamente a uma montagem rigorosa, cada detalhe é hermeticamente pensado para que consigamos ter acesso àquela realidade por camadas, tal qual é referido no próprio filme.
Aqui, temos mundos sobrepostos, onde tudo – inclusive, objetos cénicos e de decoração – tem alma e vida. Há um orbe (ou universo) tangível, a materialidade, e camadas extraordinárias, espirituais e (ou) imaginativas, que coexistem e se complementam. Desde a cena inicial, já somos avisados previamente: ou Alexander tem a mente fértil, quando percebe a estátua mexendo-se, ou ele consegue enxergar coisas que nem toda gente pode entrever. A realidade e a fantasia confundem-se. Mas, a visão mediúnica não é um privilégio apenas de Alexander, pois Bergman permite-nos tal partilha.
Nós, espectadores, somos convidados a interpretar tais “migalhas cénicas” e participar da construção da narrativa a partir de uma postura vidente, pressagiando os eventos à nossa frente. O filme inteiro tem um caráter de previsão, uma construção que vai antevendo os acontecimentos, logo mais. A partir das nossas percepções e dos conhecimentos prévios, podemos fazer conexões entre os pontos da trama.
Num outro momento do filme, logo após a ceia de Natal, Helena Ekdahl (Gunn Wållgren) sente que só quer chorar, mas não consegue. Ela e Isak Jacobi (Erland Josephson), seu amigo e amante, sentem cheiro de querosene, às três horas da manhã. “Só a morte nos espera”, diz Helena, choramingando as suas tristezas a Isak. O horário e o cheiro sinalizados têm uma relação com a cultura religiosa e popular, pois é possível fazermos uma relação com o horário cristão em que forças malévolas costumam se apresentar. Isso pode ter indicado que alguma presença espiritual perturbadora se aproximava, talvez para tirar a vida de Oscar, que não tem as razões da sua morte explicitadas.
O engajamento que o filme nos suscita faz-nos questionar se o nosso ambiente material é deveras tão inanimado quanto cremos. O filme acaba por demandar do espectador que acessemos não somente aos nossos conhecimentos, mas a sensações e a intuições – principalmente, no que tange às relações entre personagens – e criarmos uma lógica causal extraquotidiana.
Por isso, talvez seja explícita a forma em que Bergman cria uma representação do clima natalício bastante vinculada a uma abordagem teatral – mais especificamente, shakespeariana. A primeira imagem do filme é, justamente, Alexander brincando com um pequeno teatro, abrindo as cortinas e divertindo-se com bonecos que representam atores.
Temos também repetidas referências à Hamlet e ao seu enredo ligado a fantasmas e a forças do além: “Não brinque de Hamlet meu filho. Eu não sou a rainha Gertrude, Edvard é o seu amável padrasto, não o rei da Dinamarca, e este não é o castelo de Elsinore, mesmo que pareça bastante sombrio”, Emilie adverte Alexander para que não crie mais problemas com o seu padrasto autoritário.
O filme é perpassado por essa aura cénica e somos sensibilizados com o contexto teatral em que a família Ekdahl vive. Pois, eles são donos de uma companhia de teatro que, não por acaso, está encenando Hamlet. Posteriormente, descobrimos que Isak e a sua família são marionetistas e que as suas personagens são mais bem esmiuçadas numa altura do filme em que as habilidades mediúnicas de Alexander parecem estar cada vez mais fortes. E com esses poderes, Alexander consegue aceder à presença do fantasma do seu pai Oscar. Este perambula pelos espaços, zelando pelos seus filhos, aparecendo nos momentos certos para dar avisos e para comunicar as suas preocupações.
Num outro momento, fantoches ganham vida e Alexander demonstra estar a acostumar-se a essas aparições. Ora bem, após ter passado por momentos difíceis, ao segurar a mão do seu pai no exato momento em que ele desencarna, parece que Alexander acaba por perder o medo irracional da morte, justamente por tomar consciência de que há um outro lado. Este é o crescimento da personagem, no seu arco narrativo, em que ele passa de um medo infantil para uma abordagem madura perante as aparições. Ao mesmo tempo, Bergman parece estar a sinalizar-nos que as personagens da narrativa são títeres muito bem manipuladas pelo mundo sobrenatural – no qual ele nos inclui. É interessante encontrar um filme em que toda a sua energia fantasmagórica nos puxa para dentro da sua narrativa, como se também fôssemos fantasmas, que em alguns poucos momentos são conjurados no espaço narrativo, com as breves quebras da quarta parede.
Num aspecto societal, podemos perceber as relações de carinho e de afeto entre os criados e a família, marcada pelos momentos de dança conjunta e cantorias. Além disso, vemos Gustav Adolf (Jarl Kulle) cortejar a jovem babá ou ama Maj (Pernilla August) para passar a noite com ela, bem em frente dos olhos da sua esposa, Alma (Mona Malm), demonstrando o formato das relações naquela época, com os casamentos sendo uma entidade pública machista e desequilibrada, uma fachada para negociações financeiras entre famílias influentes distintas e um espaço de segurança feminina – desde que a mulher aceitasse as traições masculinas.
Apesar de nos apresentar uma aclimatação infantil, mostrando cenas que facilmente formariam boas memórias nas crianças da casa, há uma série de insinuações de aliciamento e de sexualidade velada, que parecem ser algo comum entre membros da família e seus subalternos, inclusive com os infantes. Chamo a atenção para a atuação de Jan Malmsjö, que interpreta o bispo Edvard Vergérus. A sua postura passivo-agressiva arrogante e falso-benevolente, tenta forçar os outros a fazer o que ele deseja, para que, no fim, ele se sinta um ser poderoso e divino – e não a marioneta, que as forças divinas (ou demoníacas) querem que ele seja. A sua presença traz tons de invasividade e de dominação, um “lobo em pele de cordeiro”. Ele tem uma postura dissimulada, na frente de Emilie, e outra distante dela. Dadas as suas feições, tenho a certeza de que não deve ter sido fácil a construção da personagem.
Um aspecto que acrescenta força à diegese ou narração é a cinematografia, que se divide entre cores quentes – com tons avermelhados, durante as festividades natalícias, num sentido de ternura e de calor, quando a família está reunida – e esverdeadas – durante o período em que Fanny, Alexander e Emilie estão vivendo encarcerados na casa de Edvard, o novo marido de Emilie e bispo da região. Sven Nykvist, o diretor de fotografia, produz uma série de composições feitas por níveis distintos de posicionamento dos atores, coreografando os seus movimentos como se fosse balet, o que acaba por agregar mais uma camada de significados à construção que fazemos da narrativa e ajuda-nos a crer, cada vez mais, nas entidades fantásticas.
O filme apresenta cenas quotidianas de uma família aristocrata nos anos 1900, mas certamente representa muito do espírito natalício que ainda encontramos hoje. “Fanny e Alexander” é um real conto de Natal, mas o olhar de Ingmar Bergman transforma-o numa história única. Assim como no filme, todos nós vivemos entre mundos materiais e fantasmagóricos, e as celebrações de fim de ano são um gatilho para a sensibilização.
Todos acabamos sendo tocados pelos feriados deste período, seja por questões religiosas, culturais ou particulares, e essa comoção, inevitavelmente, faz-nos “enxergar fantasmas” do passado e pensar nos nossos futuros. Realmente, é difícil caminhar pela cidade e não nos influenciarmos com a sua ornamentação e as festas comunitárias. Somos encorajados a refletir sobre a natureza das nossas experiências no ano que está chegando ao seu fim e sobre os nossos anseios para o ano que está por vir. Talvez, até, seja por isso que haja pessoas que gostam de fins de ano e aquelas que odeiam. Do filme, podemos tirar uma lição que pode acalentar e confortar os nossos corações: “Tudo pode acontecer. Tudo é sonho e verdade. Tempo e espaço não existem. Sobre a frágil base da realidade, a imaginação tece a sua teia e desenha novos destinos”, anuncia Helena Ekdahl, enquanto lê a peça “O Sonho”, de Strindberg, em determinado ponto da estória.
Se Bergman crê que somos acompanhados espiritualmente por universos invisíveis, não nos podemos considerar apenas fantoches dos objetivos de seres maldosos de outro mundo. Tenho a certeza de que somos acompanhados por entes queridos e por seres de luz, como Oscar, para nos guiar nas nossas jornadas rumo ao nosso crescimento, tal qual ocorreu com Fanny e Alexander. Assim, gostaria de fazer agradecimentos especiais a Bernardo, por aconselhar “Fanny e Alexander”, a Daniel, Vicente, Bernardo, Mónica, Cátia, Nicole e à minha família, pelas outras sugestões de filme de Natal e pela presença. Espero, de coração, que toda gente tenha passado um ótimo Natal e que, ao contrário do sonho/pesadelo de Alexander, os espíritos tenham trazido bons augúrios. Agora, que venha um lindo ano de 2025 para todas e todos nós!
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26/12/2024