“Fica com Deus!”
Este é um texto sobre a velhice e sobre migrantes. E é um relato vivo sobre uma amiga a caminho dos 94 anos de idade, divorciada e sem família, a quem lhe valeu uma “família de acolhimento”. “MR”, a protagonista da história que aqui me traz, viveu os últimos trinta anos sozinha. Sobretudo, após a morte da Milu, a pequena cadela com quem dividia o seu T0, em Vila Nova de Gaia.
A partida da Milu, as cataratas e um glaucoma fizeram ruir o seu pequeno-grande-mundo. Deixou de poder ler e isso levou-a ao desespero. Deixou de dizer coisa com coisa, de se alimentar e a sua cabeça foi tomada por uma demência intermitente, que o seu médico de família atestou em letra de forma.
A Elena, a Ana, a vizinha “Nocas” e eu, seus únicos amigos, fizemos aquilo que nos competia: não a abandonámos. Confeccionámos refeições, tratamos-lhe da roupa, fizemos-lhes companhia, durante algumas horas do dia. Mas ela e nós rapidamente percebemos que a cura para o seu mal passava pela sua ida para um lar.
Desdobrámo-nos em contactos. Com a assistente social e com a enfermeira Helena, do centro de Saúde, com o seu médico de família, com responsáveis da Santa Casa da Misericórdia de Vila Nova de Gaia (SCMVNG), com assistentes sociais da SCMVNG. E a Ana passou muitos dos seus dias a contactar lares que pudessem acolher a nossa amiga “MR”.
Uma batalha perdida à partida, pois, a pensão de reforma da “MR” – quatrocentos e poucos euros mensais – só pagava um terço dos valores cobrados pelo mais modesto dos lares de idosos contactados. Lares privados, já que os públicos ou comparticipados pela Segurança Social não têm uma única vaga disponível – há dias, ouvi o padre Lino Maia, presidente da Confederação das Instituições Particulares de Solidariedade Social, afirmar que faltam “20 mil camas” para acudir aos mais velhos de nós.
Perante tal cenário, quase desesperámos. Nós, os amigos da “MR” e a própria. Valeu-nos um telefonema da Dr.ª Dominique, assistente social da gaiense Cooperativa de Solidariedade Social Sol Maior, que nos indicou uma “família de acolhimento” de Lousada, pequena vila do interior, a 50 quilómetros de distância.
Após um telefonema, aprazámos uma visita e conhecemos a Dona Monique. Uma jovem migrante brasileira, que – com o seu marido, duas filhas e um filho – trocou o Rio de Janeiro pelo nosso país, em busca de uma vida melhor. Primeiro, em Leiria. Agora, em Lousada.
Logo a seguir, nova visita a casa de Dona Monique. Desta feita, acompanhados da “MR”, que foi recheada de carinho por Monique e pelas suas filhas. A 1 de Junho, “MR” entrava na sua nova casa. Sucederam-se os nossos telefonemas e as nossas visitas. A nossa velha amiga estava de regresso à vida e até tinha uma pequena gata para afagar…
Agora, “MR” está hospitalizada numa unidade a 50 quilómetros da casa da sua “família de acolhimento”, que não a abandonou e que, ali, a visita com regularidade. Não tem sido fácil recuperar o bom funcionamento de um dos rins da paciente. Mas ela está mortinha para voltar a ter os mimos dos seus novos amigos. Não admira: a Monique, o marido, as filhas e o filho são pessoas de bem. A quem nós, os velhos amigos, estamos gratos. Pelo amor que demonstram pela menina que receberam em sua casa. Por isso, eu, que não sou crente, derreto-me todo quando a Dona Monique se despede de mim, assim: “Fica com Deus!”
Afinal, como um dia escreveu Fiódor Dostoiévski (1821-1881), todos nós “precisamos de Deus, quando a vida está submetida aos impulsos dos demónios.” Isto é, de todos os canalhas que em Portugal, no Reino Unido e, um pouco, por todo o Mundo, perseguem e maltratam aqueles que são obrigados a deixar as suas famílias e países de origem na busca de uma vida menos amarga. Fica com Deus, amiga Monique!
.
15/08/2024