Homo sapiens sapiens

 Homo sapiens sapiens

Casey Schackow (Unsplash)

Tal como o Inferno, a História da Humanidade está cheia de boas intenções – muitas delas utópicas – que não deixaram de ter a sua quota-parte de consequências negativas. À semelhança do que acontece com a força da gravidade, que nos puxa inexoravelmente para um ponto de equilíbrio de energia mínima, também a natureza humana nos pode fazer descer do cume montanhoso e solarengo das utopias para os vales sombrios da anarquia ou do crime, por um lado, ou do autoritarismo e das ditaduras, por outro.

Não vou, no entanto, falar neste texto de ciência política mas, sim, de algo muito mais próximo da minha formação, ou seja, de tecnologias de informação e comunicação (TIC) e, mais concretamente, da tão falada Internet. Mas, afinal, o que é que este tema tem a ver com o parágrafo introdutório? Muitos dirão que nada tem a ver, mas se nos lembrarmos de que a natureza humana desempenha um papel central quer num quer noutro, talvez a ligação fique mais clara.

Pouco tempo depois do seu desenvolvimento – e à medida que a sua utilização se generalizava – a Internet revestiu-se de todos os ingredientes de utopia. Por um lado, o acesso a meios computacionais passou a ser possível de forma simples e barata, independentemente da localização quer dos utilizadores quer dos computadores. A comunicação quase instantânea entre pessoas abriu um enorme leque de possibilidades. Quase de um dia para o outro, impensáveis volumes de informação passaram a estar disponíveis à escala global, com apenas alguns cliques. Surgiram incontáveis ferramentas, aplicações e serviços, para todo o tipo de sistemas – fixos ou móveis – mudando radicalmente a sociedade e impulsionando a economia.

Claro que as indispensáveis ferramentas de comunicação e computação dos nossos dias são armas poderosíssimas e, como qualquer arma, podem ser utilizadas para o bem ou para o mal. Não nos surpreende, assim, que seja tão fácil descobrir na Internet o bom e o mau, o melhor e o pior. Encontramos informação de grande qualidade mas, também, ignorância e notícias falsas. Comunicamos e interagimos com pessoas reais e legítimas, mas não são raros os casos de roubo de identidade. Recebemos manifestações de apoio e encorajamento mas, também, mensagens de escárnio e ódio. Usamos ou disponibilizamos serviços de grande utilidade mas, também, somos impedidos de o fazer devido a ataques que têm por único objetivo causar incómodo e destruir. Neste contexto, uns clamam por regulação e outros por mais liberdade e responsabilização.

Poder-se-á fazer algo para mudar esta situação? Pessoalmente, duvido. Vivemos, de facto, num mundo fortemente tecnológico, altamente sofisticado, com ferramentas inimagináveis há tão só um século. No entanto, apesar de toda essa civilização, continuamos, em essência, exatamente iguais aos homo sapiens sapiens de há 100 mil anos e conservamos ainda muito da herança dos nossos antepassados de alguns milhões de anos atrás. A natureza humana não mudou. Podemos usar telemóveis muito mais potentes que os supercomputadores de há algumas dezenas de anos, fazer viagens intercontinentais em alguma horas, ou colocar satélites no espaço, mas continuamos a ser homens das cavernas.

02/11/2020

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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