IA e escola
Chegará o dia em que você não lerá palavras como estas, porque se tornou num idiota funcional, ao passo que os sistemas de IA (inteligência artificial) serão capazes de, autonomamente, sob alguns (quais?) marcos éticos, determinar o que se deve ou não fazer, o que é humanamente correcto ou incorrecto, enquadrando a acção humana dentro dos limites da moral das sociedades.
Nessa altura, os sistemas de IA serão mais “humanos” do que nós e mais capazes de distinguir o que é genuinamente humano do que é um produto do ChatGPT, do Gemini, do Copilot, da Claude 3 e de toda a cangalhada que por aí desponta. E a prova é esta: este texto pode ter sido criado num programa de IA. Sente-se o leitor suficientemente capaz de provar que o não é? Ser-me-ia simples introduzir aqui passagens não escritas por mim (ou pedir a um redactor de texto artificial que escrevesse a totalidade do artigo), mas não o farei. Nunca o farei. E não apenas por uma questão de respeito pelo leitor ou por mim. Mas por uma questão de sanidade. Yuval Noah Harari considera que a IA pode originar o fim da democracia e é um perigo à nossa sobrevivência como espécie. Noam Chomsky afirmou, há bem pouco tempo, que a IA foi o pior que nos poderia acontecer. Também não tenho dúvidas.
Para mal dos meus pecados, devo ter sido dos primeiros professores a explicar aos alunos as habilidades do ChatGPT. Tratando-se de linguagem e produção de linguagem, o assunto interessou-me. No mesmo dia em que o fiz, os alunos usaram a aplicação e, não muito tempo depois, recebi testes com formulação de respostas daí saídas. Nem já valia a pena explicar aos alunos que tinham de escolher entre pensar e não pensar. Não quiseram saber. Desde esse dia, criou-se uma cristalização obscena quase impossível de ser dissolvida.
Num dos primeiros dias deste ano lectivo, assisti, com moderada curiosidade, a uma acção sobre IA na escola onde lecciono. Vindo da área da informática, o formador montou o estaminé argumentativo como o vendedor de sonhos: não apenas perigos, mas sobretudo oportunidades. Deslumbrado pelas potencialidades da IA, e esclarecendo sobre as suas inevitáveis consequências, revelou-se, logo de seguida, o burocrata da tecnologia, consumidor insaciável das mais diversas “ferramentas” pedagógicas. Se os seus alunos não eram capazes de suportar a síndrome da página em branco, a IA resolveria isso em segundos, disse. Bastar-lhes-ia formular as perguntas certas. E a IA, nas suas palavras, era uma ferramenta como uma caneta. Acontece que não é. Não pedimos a uma caneta que escreva sozinha. O drama da página em branco há-de acentuar-se mais quando o nosso cérebro se limitar a mandar fazer, por se recusar a querer saber.
Não tirámos cursos superiores para ensinar alunos a fazer as perguntas certas a um programa de IA. Fizemo-lo, pensando que os iríamos ensinar a escrever, a ajudar a pensar e a criar, a fazer perguntas e a dar respostas, e, principalmente, a serem soberanos, ao invés de escravos. De outro modo, com a IA, onde paira o espaço da criatividade e da emancipação intelectual?
Alain (Émile-Auguste Chartier), em “Propos sur les Pouvoirs”, explicou que há três maneiras de se sair de embaraços: uma delas consiste em afirmar, sobre qualquer tendência, “é muito interessante”; a segunda, assegurar que “estamos perfeitamente de acordo”; a terceira, fazer a síntese das anteriores e remeter tudo para os mais reputados técnicos. Creio, porém, que a Educação e o Ensino são demasiado sérios para serem entregues à autoridade dos burocratas da informática. Aliás, dessa gente, cujo discurso e estratégias criaram uma das maiores clivagens sociais da era moderna (os desapossados da cibernética e os outros), não espero outra coisa que não os interesses de oligarquia e de corporação.
Para além de vir a liquidar a consciência individual e colectiva, a IA estimula o processo de indiferença por excesso, excita a ilusão de facilidade, activa a apatia face à pletora de informação espontânea, esvazia o seu conteúdo, rasura a hierarquia dos assuntos (a declaração de um presidente ou o bombardeamento de uma cidade valem tanto ou menos do que uma telenovela ou um jogo de futebol), faz esquecer os privilégios e essências imateriais, desperta as periferias e a dispersão, e despreza o centro: restarão somente estímulos (a que se reage, na linguagem das redes sociais) e opções equivalentes a actos volitivos indiferentes, numa escala muito mais perigosa do que aquela indiferença pós-moderna da híper-solicitação, já prognosticada nos anos de 1980. Além disso, criará as mais extraordinárias dificuldades na esfera da autenticidade. E, de forma simples, transformará o autor em consumidor ou em observador, para não dizer em vítima ou em criminoso.
Desde René Descartes, pensamos contra a Natureza, certos de que a nossa missão é dominá-la, subjugá-la e conquistá-la. Neste momento, preparamo-nos para a servidão. O que a IA nos propõe é a escravidão mental. Só temos de nos entregar.
Mas, pronto, estamos perfeitamente de acordo em que a IA é muito interessante.
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Nota do Director:
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14/10/2024