Incertezas instaladas
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Michele Serra, escritor e jornalista que mantém, há anos, no jornal italiano la Repubblica, um espaço de crónica com um público fiel, dedicou uma das crónicas mais ao cancelamento da apresentação, na italiana cidade de Lonigo, do bailado “Lago dos Cisnes”, pelo Corpo Nacional de Baile da Ucrânia, à última da hora instigado pela Ópera Nacional da Ucrânia e pelo Ministério da Cultura de Kiev, a retirar aquele bailado do reportório justificando que “O Lago dos Cisnes” é um bailado da autoria do compositor russo Tchaikovsky.
Serra defendeu, nessa crónica, que impedir os bailarinos ucranianos de dançar “O Lago dos Cisnes” pelo facto de este bailado, escrito há século e meio, ser de um compositor russo, seria sinal de que Putin estaria a vencer a guerra desencadeada na Ucrânia, a 24 de Fevereiro. Mesmo considerando a justificação oficial de tal censura numa reacção aos então recentes e graves factos ocorridos em Bucha, em Hostomel e em Mariupol, três das cidades ucranianas cujas populações civis estavam (em Abril) entre aquelas que já tinham sido vítimas de gravíssimas atrocidades militares.
Independentemente destas leituras, o que quero relevar, aqui e agora, foi a dúvida que se instalou entre os leitores mais atentos com a suspeita de que Michele Serra pudesse estar a veicular uma informação falsa ao dar como garantido que a Ópera Nacional da Ucrânia e o Ministério da Cultura de Kiev tivessem “ordenado” que o Corpo Nacional de Baile da Ucrânia deixasse de dançar o russo Tchaikovsky.
As buscas para confirmar, noutras fontes, tal proibição revelaram-se, numa primeira fase, infrutíferas – a notícia não aparecia em lado algum, o que favorecia a ideia de estarmos a ser vítimas de desinformação, consciente ou inconscientemente, provocada por um escritor e jornalista conceituado como é Michele Serra, intelectual para quem “a memória é como o colesterol”, ou seja, admitindo que há uma memória boa e uma memória má.
Na verdade, tal caso ocorreu como Serra o descreveu e foi tornado público por uma nota do Teatro Comunal de Lonigo, esclarecimento cuja divulgação foi escassa e quase só restringida à imprensa da província de Vicenza (na região do Vêneto) a que pertence a comuna (concelho) de Lonigo. Foi o que bastou para instalar incertezas, apesar do prestígio do jornal e do jornalista que garantiam aquela informação.
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(*) Artigo no âmbito do programa “Cultura, Ciência e Tecnologia na Imprensa”, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa.
15/08/2022