Irene Papas ou o retrato da tragédia grega…

Irene Papas no filme “Iphigenia”. (mykaleidoscope.ru)



A imagem da tragédia grega!
A minha primeira imagem estará, para sempre, ligada à figura da actriz Irene Papas. Foi ainda pelos anos sessenta (mas já em reposição) que, na minha cidade – a qual, repito muitas vezes, foi um berço para a minha cultura e aprendizagem, a minha Atenas –, vi o filme a preto e branco… Não podia ser a cores, como a versão cinematográfica de Electra, de Eurípides, com realização de Michael Cacoyannis! (*) O filme Elektra participou no Festival de Cannes de 1962, vencendo na categoria de Melhor Adaptação para o Cinema.

Se, por essa altura, eu já tinha lido muitas das tragédias e muitas das coisas gregas, dado o meu pai ser professor de Filosofia, julgo que foi no momento da minha contracena com o ecrã que compreendi aquilo que era uma tragédia e os seus elementos: o papel do coro, os tempos, as pausas na representação, o valor dos figurinos e adereços… Também o despido e despojado dos cenários, a par do idioma grego, que me soava como algo que nunca alcançaria a compreender, mas que era um canto nos ouvidos!
Um ano antes, foi a versão cinematográfica de Antígona, de Sófocles, com a qual obteve o Urso de Prata de melhor actriz em Berlim, sob a realização de Yorgos Tzavellis (em 1961).

E, logo, a lúdica tragicomédia Zorba, o Grego (de 1964), igualmente de Michael Cacoyannis, que entregou a Irene Papas o papel da mulher sacrificada, a viúva, a qual, depois de enviuvar, pertence à aldeia e que nunca mais poderá voltar a pertencer a outro homem… Assim, Irene é o cordeiro degolado, o bode expiatório de uma comunidade que quer e deve manter as regras ancestrais e telúricas que a regem.
Seria cansativo enumerar as múltiplas intervenções desta actriz no cinema e no teatro. Também Manoel de Oliveira se apaixonou pelo seu trabalho, convidando-a participar nos seus filmes.

Como recorda Jorge Mourinha, no jornal Público, a 14 de Setembro de 2022, quando a actriz e cantora grega morre, aos 96 anos, Irene Papas filmou três vezes com Manoel de Oliveira, que lhe chamou “a essência mais profunda da alma feminina” e “a mãe da civilização ocidental”. Foi em Party (de 1996), em Inquietude (de 1998) e em Um Filme Falado (no ano de 2003), tendo este último marcado praticamente o final da sua carreira no cinema.
Escreve ainda Jorge Mourinha: “Capaz de navegar sem problemas entre o cinema e o teatro, Irene Papas interpretou igualmente Helena de Tróia, Ifigénia e Electra no cinema, e em palco, um pouco por todo o mundo, Clitemnestra, Fedra ou Medeia, a par de autores como Dostoievski, Ibsen ou Shakespeare.”
Refira-se também que a sua carreira se estendeu à música. Em 1969, Irene Papas gravou um álbum de canções de um outro artista grego exilado, o compositor Míkis Theodorákis (que tinha escrito a música de Zorba, o Grego).

Politicamente comprometida, Irene Papas, participou em Dulce País (Sweet Country), filme norte-americano de 1987, realizado por Michael Cacoyannis. Baseado no romance semi-autobiográfico homónimo, da autoria de Caroline Richards, publicado em 1979. O filme narra as vicissitudes de um casal americano que vive no Chile durante os dias sangrentos do golpe militar de 1973. O título do filme é uma referência ao coro do hino nacional chileno, com letra do poeta Eusebio Lillo: “[…] Dulce Patria, recibe los votos / Con que Chile en tus aras juró / Que o la tumba serás de los libres / O el asilo contra la opresión […]”
Basta olhar para o retrato inicial desta crónica para ver a beleza da mulher que encarna, por si própria, o espírito da tragédia, inolvidável no ecrã e na minha vida!
24/11/2022