“Isso não pode acontecer aqui”

 “Isso não pode acontecer aqui”

(Créditos fotográficos: Mohammed Ibrahim – Unsplash)

Que Páscoa é esta, quando Israel se prepara para a ocupação total de Gaza e, sem dó nem piedade, continua a fustigar aquela gente que nasceu e insiste em viver nessa faixa de transição entre a terra prometida, o desespero e o mar Mediterrâneo? Que tempo é este, quando um exército armado até aos dentes esquece o cessar-fogo e não dá tréguas a um povo que não come nem dorme, porque sucessivamente deslocado e esmagado pela desumanidade de Benjamin Netanyahu, sôfrego de mais território nas zonas-tampão e nas outras?

Que mundo é este que se anestesia com os adoráveis ​​coelhinhos de chocolate e se entretém com os cestos de ovos coloridos, simulando estranhos ninhos de pássaros numa Primavera sem esperança, quando sabe de crianças que juntam pedaços de corpos dos pais destroçados pelas bombas?

Que podem aguardar os Palestinianos – muitos deles ainda rapazes – os quais, mesmo sem participarem em manifestações nem atirarem pedras a ninguém, são detidos sem acusação e por tempo indeterminado nas prisões israelitas?

 (Créditos fotográficos: Ronit Shaked –  Unsplash)

“Não ter fé na Humanidade é a pior forma de arrogância”, afirma Ece Temelkuran, comentadora política e autora do livro “Como Perder um País – Os Sete Passos da Democracia à Ditadura”, considerado “um verdadeiro guia de campo para identificar os padrões e mecanismos astuciosos da vaga de populismo que varre o mundo actual – antes que seja demasiado tarde”. Entrevistada por Inês Chaíça, a escritora confessa que ninguém na sua geração via os jovens que nasceram com o regime de Erdoğan “como uma esperança política que pudesse mudar o rumo da História da Turquia”. Por isso, reconhece: “Acho que nos surpreenderam a todos ao sair à rua com tanta coragem e determinação: foi espectacular, inspirador.”

Escritora turca Ece Temelkuran. (booknode.com)

A frase que intitula esta crónica terá sido ouvida, repetidamente, pela turca Ece Temelkuran, nascida em Esmirna, e que, na noite do referendo ao Brexit, foi proferida por britânicos pasmados, mas sensatos, assim como, sobretudo, na primeira eleição de Donald Trump, foi dita por “gente razoável” norte-americana. “Isso não pode acontecer aqui” foi também referido pelas “pessoas racionais” na Turquia, quando Recep Tayyip Erdoğan foi eleito fraudulentamente, sob a suspeita de introduzir votos falsos nas urnas, levando-o a acusar os opositores como terroristas.

Como observa Ece Temelkuran, os “seres humanos não são a coisa mais bela do planeta”, atendendo a que, muitas vezes, por actos e omissões, destroem a nossa fé na Humanidade. “Mas a parte gira da história é que, uma e outra vez, vemos a vertente mágica, inspiradora que refresca a nossa fé”, diz a premiada romancista e comentadora política, pretendendo ajudar-nos a não nos confundirmos com os sinais deste fenómeno absurdo e populista que infecta e deprava as comunidades. Ece Temelkuran sente-se moralmente obrigada a ter fé na Humanidade.

Albert Camus (rtp.pt/)

Tal como a autora turca, Albert Camus – ao escrever, em 22 de Dezembro de 1944, sobre as tragédias então vividas em França, cujo desenlace conhecemos – denunciava “o tempo da separação”, em que poucos se atreviam a pronunciar a palavra “felicidade”: “E[,] contudo[,] milhões de seres há hoje em sua demanda […]. Quem disso poderá censurá-los? Que seria a justiça sem a possível felicidade, de que serviria à miséria a liberdade?”

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Nota:

O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 20 de Abril) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

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21/04/2025

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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