João Varela Gomes (1924/2018): a longa luta do “primeiro capitão de Abril”

 João Varela Gomes (1924/2018): a longa luta do “primeiro capitão de Abril”

Coronel João Varela Gomes. (Créditos fotográficos: Gerardo Santos / Global Imagens – dn.pt)

O coronel João Varela Gomes foi um revolucionário, um consequente militante antifascista, um militar com biblioteca, um cidadão singular. Uma figura central do combate à ditadura. João Varela Gomes faleceu há cinco anos. A 26 de Fevereiro de 2018. Tinha 92 anos.

Cresci a ouvir falar de Varela Gomes e da sua luta sem tréguas ao Estado Novo1, mas só o conheci pessoalmente em Maio de 2006. Por essa altura, preparava a edição de “Vasco sempre” e o escritor José Viale-Moutinho, que assumiu a coordenação desse livro-tributo a Vasco Gonçalves, foi quem me proporcionou esse encontro com “o primeiro capitão de Abril”, um dos conspiradores da Revolta da Sé2 e o herói militar do assalto ao Quartel de Beja3.

João Varela Gomes visitou Cuba e foi recebido por Fidel Castro. (Créditos fotográficos: José Paulo-Fafe)

João Varela Gomes recebeu-nos então, na sua modesta casa, no aristocrático Bairro da Lapa. A conversa com Varela Gomes e com a sua mulher, Maria Eugénia4, (e)terna cúmplice de todos os combates, prolongou-se por várias horas e foi, para mim, uma lição de vida.

(Direitos reservados)

Perseguido, preso, torturado, expulso do Exército antes do 25 de Abril, foi depois reintegrado com o posto de coronel. Varela Gomes Começou por dirigir a comissão para o desmantelamento da PIDE5 e da Legião6. Funções que cumpriu energicamente. Mas isso não agradou à Junta de Salvação Nacional. Um dos seus membros, Silvino Silvério Marques7 convocou-o para uma reunião e acabou por ordenar a sua detenção. Alguns dos capitães de Abril reagiram à cilada do general e Dinis de Almeida8 chegou a apontar peças de artilharia ao palácio presidencial. António de Spínola9 atribuiu a responsabilidade do incidente a Silvério Marques e mandou-o libertar. Afastado da comissão de saneamento dos pides, passou a ser o chefe efectivo da 5.ª Divisão do Estado Maior10.

(Direitos reservados)

No dia 11 de Março de 1975, aviões da Força Aérea e uma força de paraquedistas, vinda de Tancos, atacaram o Regimento de Artilharia de Lisboa (Ralis), causando um morto e vários feridos. Mas o Ralis não se rendeu, ganhou tempo e enfrentou o golpe. Na 5.ª Divisão, o coronel Varela Gomes ligou para a Presidência da República e para o COPCON (Comando Operacional do Continente)11 e pressionou-os a tomarem medidas.

A Presidência da República e o COPCON responderam de forma evasiva. Por isso, decidiu mandar uma mensagem para todas as unidades, apelando à resistência e à mobilização popular.  Tais decisões bastaram para ser acusado de “usurpação de funções”, apesar de o país estar na iminência de uma guerra civil. Mais tarde, em 2015, numa entrevista à RTP, assumiu ter cometido uma “usurpação revolucionária”.

(pcp.pt/11marco1975)

João Varela Gomes partiu para o exílio quando “o mês de Novembro aqui chegou”. E abriu alas para o regresso dos velhos “donos disto tudo” (DDT). A eles e aos novos DDT que hoje mandam no país. Uns e outros odiavam João Varela Gomes e nunca lhe perdoaram o seu combate por uma sociedade livre dos “vampiros” que “comem tudo e não deixam nada”. E, também, nunca esqueceram o facto de Varela Gomes, à frente de um exército constituído por centenas de operários da SOREFAME (Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas, S. A. R. L.)12, ter retirado o nome de Salazar da ponte sobre o Tejo e de lhe ter atribuído o nome de “Ponte 25 de Abril”.

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NOTAS:

Sé de Lisboa. (caminhosdamemoria.wordpress.com)

1 – Estado Novo foi o regime ditatorial que vigorou no nosso país, desde a aprovação da Constituição de 1933 e até 25 de Abril de 1974.

2 – Protagonizada por civis e militares, a Revolta da Sé, cuja conspiração começou na Sé Patriarcal de Lisboa, paredes-meias com a então Prisão do Aljube, foi impulsionada, sobretudo, por católicos progressistas. O golpe, que deveria ter acontecido na noite de 11 para 12 de Março de 1959, foi abortado pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).

3 – O Golpe (Revolta) de Beja teve lugar na passagem de 31 de Dezembro de 1961 para 1 de Janeiro de 1962. A revolta tinha como objectivo o derrube do regime fascista a partir da tomada de assalto do Regimento de Infantaria n.º 3, sediado naquela cidade alentejana.  Após o seu falhanço, o Estado Novo sentou no banco dos réus 86 antifascistas. Entre eles estava Manuel Serra, destacado dirigente da Juventude Operária Católica (JOC), que também já tinha participado na Revolta da Sé (1959).

(visao.sapo.pt/jornaldeletras/ideiasjl)

Manuel Serra protagonizou uma espectacular fuga do Hospital Curry Cabral, onde se encontrava internado. Vestiu-se de padre e saiu pelo seu próprio pé da unidade hospitalar, dirigindo-se para a Embaixada de Cuba, onde pediu asilo político. Após o 25 de Abril de 1974, aderiu ao Partido Socialista (PS), a convite de Mário Soares. Apresentou, depois, uma lista à Comissão Nacional tendo perdido para Soares. Saiu do PS e fundou a Frente Socialista Popular que teve vida curta. Morreu a 1 de Fevereiro de 2010, em Setúbal.

4 – Maria Eugénia Varela Gomes (1925-2016) foi a (e)terna companheira do “primeiro capitão de Abril”. Corajosa assistente social, foi sujeita a prisões e a torturas. Esteve detida durante 18 meses em Caxias. Após a sua saída, teve de criar os quatro filhos sozinha e com grandes dificuldades, pois o seu marido esteve preso durante seis anos. Perdeu dois dos quatro filhos e cegou, mas nunca desistiu de lutar nem da vida. Foi, assumidamente, uma batalhadora “contra ventos e marés”, como assinala Manuela Cruzeiro, autora do livro de memórias de Eugénia Varela Gomes.  O ano de 2016 foi particularmente trágico para João Varela Gomes. O seu filho Paulo (Varela Gomes), escritor, critico de arte, professor universitário, cronista, apresentador de documentários televisivos, morreu a 30 de Abril, com cancro. E, a 22 de Novembro, faleceu a sua companheira. Maria Eugénia foi uma figura marcante da resistência antifascista e da solidariedade com os presos políticos.

5 – A Polícia Internacional e de Defesa da Estado (PIDE) encarregou-se de reprimir, entre 1945 e 1969, todas as formas de oposição ao regime salazarista. Após esse ano, passou a denominar-se Direcção-Geral de Segurança (DGS). A PIDE/DGS foi extinta após a Revolução dos Cravos e os seus elementos presos. Muitos deles nunca foram julgados.

Silvino Silvério Marques foi um
militar e alto funcionário
ultramarino.
(ultramar.terraweb.biz)
 

6 – A Legião Portuguesa era uma milícia às ordens do Estado Novo. Dependia do Ministério do Interior.

7 – Oficial do Exército, Silvino Silvério Marques (1918-2013) foi governador de Cabo Verde e governador de Angola. Após o 25 de Abril, integrou a Junta de Salvação Nacional (JSN), presidida por António de Spínola. A JSN manteve-se em funções até à tomada de posse do primeiro Governo Provisório, a 16 de Maio de 1975. Foi extinta após o “11 de Março” de 1975.

8 – Diniz de Almeida (1944-2021) foi um dos mais destacados operacionais do Movimento dos Capitães. Comandou, no 11 de Março, a resistência do RALIS (Regimento de Artilharia de Lisboa). Foi um dos cidadãos vitimados pela covid -19.

9 – António de Spínola (1910-1996) presidiu à Junta de Salvação Nacional. Acabou por demitir-se a 30 de Setembro de 1974, após ter entrado em choque com o Movimento dos Capitães e de não ter conseguido impor o “estado de sítio”, como pretendia. Spínola ainda apelou à “maioria silenciosa”, mas perdeu em toda a linha.

Capa do Diário de Notícias de 12 de Maio de 1974.
(Fonte: Pinterest)

Exilou-se e liderou o Movimento de Libertação de Portugal (MDLP), organização de extrema-direita responsável pelos atentados bombistas que mataram militantes de esquerda. Como o padre Max e a estudante Maria de Lurdes, por exemplo. O MDLP também promoveu o assalto às sedes do Partido Comunista, sobretudo a Norte. Spínola distinguiu-se como chefe militar e como governador militar da Guiné-Bissau. Posteriormente ao seu regresso da Guiné, foi convidado por Marcelo Caetano para ministro do Ultramar, mas recusou. Em Janeiro de 1974, tomou posse como vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e, em Fevereiro desse ano, publicou o seu livro “Portugal e o Futuro”, que acabou por acelerar o Movimento dos Capitães. Foi demitido, em Março de 1974, por se ter solidarizado com o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Francisco da Costa Gomes, que não compareceu ao “beija-mão” levado a cabo pela “brigada do reumático” ao regime marcelista.

10 – A 5.ª Divisão do Estado Maior foi constituída por iniciativa de Francisco da Costa Gomes, em meados de 1974, quando era o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). Costa Gomes também foi responsável pela sua extinção, um ano depois. A 5.ª Divisão promoveu Campanhas de Dinamização Cultural e Cívica com o objectivo de dar corpo à aliança Povo-MFA (Movimento das Forças Armadas).

11 – O Comando Operacional do Continente (COPCON) foi criado pelo MFA, tendo o presidente Spínola assinado o respectivo decreto-lei. Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021) foi o seu comandante. Extinguiu-se após a Crise de 25 de Novembro de 1975.

12 – A Sociedade Reunidas de Fabricações Metálicas, SARL (SOREFAME), foi fundada por Ângelo Fontes. Dedicou-se ao fabrico de equipamentos hidromecânicos e, a partir da década de 1950, assumiu-se como construtor de material circulante ferroviário. Após o “25 de Abril”, foi palco de grande agitação social e entrou em declínio. Acabou por ser extinta em 2001, passando a integrar a Bombardier Transportation.

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Fontes consultadas: Wikipédia, RTP Ensina e blogue Antifascistas da Resistência (antifascistasdaresistencia.blogspot.com).

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23/02/2023

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Nota do Director:

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Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

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