Jogar à “raspadinha” no SNS

(Créditos fotográficos: Usman Yousaf – Unsplash)

Quantas viagens terá um doente de fazer para encontrar quem ouça as suas queixas e trate dos seus males? Haverá calendários à venda com os meses e os dias da semana em que os serviços de saúde estejam em pleno funcionamento?
Já lá vai quase um ano de mandato e não há meio de o governo acertar o relógio do funcionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Nuns dias, é a obstetrícia, noutros é a pediatria ou as urgências, ou o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), ou as listas de espera, ou a falta de médicos, ou as demissões, ou a substituição das direcções das unidades locais de saúde (ULS), há sempre qualquer coisa – e esta qualquer coisa não é a falta de pensos nem de seringas – que faz do SNS um lugar imprevisível, uma espécie de raspadinha, em que cada doente almeja que lhe caia em sorte o dia em que vai ser contemplado com um atendimento. Não sendo isto a regra, as excepções são tantas que fazem delas outros tantos acontecimentos que não se deviam verificar.

Quando o libanês e pioneiro na matéria Avedis Donabedian escreveu um tratado sobre avaliação da qualidade em saúde (“The definition of quality and approaches to its assessment”. Ann Arbor, MI: Health Administration Press, 1980), ensinou-nos que tanto a estrutura como o processo e os resultados deviam obedecer a critérios previamente fixados, estabelecidos por quem dispõe do conhecimento para se pronunciar sobre eles. E que, sendo o modelo de avaliação sistémico, devia ser ajustado aos contextos em que iria ser aplicada a avaliação.
É inquestionável que, uma vez entrados no circuito de tratamento, os doentes são tratados segundo a legis arte, já o mesmo não se pode dizer da estrutura. E é esta que, por défices constantes, ocasionais ou crónicos, acabam por condicionar tanto o processo como os resultados. Afinal, o que mais interessa às pessoas.

Nestes, devem-se distinguir:
- os processos que correram bem – o tratamento foi adequado à doença, resultando numa recuperação completa da saúde, ou no controlo de uma situação crónica;
- os processos que correram mal – o diagnóstico da doença foi mal feito, o tratamento foi errado, ou verificaram-se intercorrências evitáveis durante esse período;
- a estrutura foi incapaz de responder às necessidades explícitas, acabando por agravar a situação de doença ou, em casos extremos, verificando-se a morte da pessoa.

Quando se mede o desempenho das instituições de saúde do lado dos resultados, compete ao governante de ocasião incluir não só aqueles que decorreram do processo institucional, mas também dos que ficaram à porta. Isto porque o SNS é universal, passando, portanto, a ser da sua responsabilidade tanto os que conseguem entrar no circuito do tratamento como os que demoraram a entrar para além do tempo que é admissível, ou que nunca chegam a entrar.
É por falta de um sistema de informação que esteja formatado para monitorizar toda a fileira da procura que existe um viés nos valores dos resultados atribuídos aos serviços de saúde, pecando, por isso, por defeito. É por isso, que a prevalência de doença na população portuguesa é a mais elevada da UE27.

Feito o diagnóstico de que é na estrutura do SNS que residem as maiores desconformidades relativamente ao desejável, é sobre ela que recai toda a responsabilidade dos governantes. E tendo estas desconformidades vindo a agravar-se, significa que se transformaram num problema crónico.
Ora o que se está a verificar é a abordagem de um problema crónico como se fosse ocasional, ao contrário do que Avedis Donabedian preconiza: os problemas crónicos exigem mudanças estruturais para que as queixas deixem de existir, ou diminuam substancialmente, e para que os resultados observados se aproximem dos resultados esperados e contribuam para a satisfação de quem esteve exposto a riscos para a saúde.

Se nada disto se está a verificar, se cada episódio indesejável não é avaliado como uma manifestação de um problema crónico, a tendência é considerar o episódio como ocasional e tratá-lo como tal. Daí estar-se a verificar o recurso crescente ao sector privado para acorrer às aflições que o SNS enfrenta. Quando alguns partidos políticos denunciam a entrega do SNS às empresas do sector, é disto que se está a tratar, de o sistema público de produção de cuidados se ter tornado incapaz de satisfazer as necessidades da população.

É difícil descortinar o dia em que um governo tenha a coragem e seja capaz de proceder às mudanças estruturais de que o SNS carece. E não é por falta de enquadramento legislativo que tal ainda não se verificou, é por opção política. Na Lei de Bases da Saúde está lá tudo o que se deve fazer. Bastaria aplicar o que lá está previsto para que a situação mudasse e ninguém mais precisasse de recorrer à raspadinha para ver os seus problemas de saúde resolvidos.
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06/03/2025