Jogar à “raspadinha” no SNS

 Jogar à “raspadinha” no SNS

(Créditos fotográficos: Usman Yousaf – Unsplash)

(pt.wikihow.com)

Quantas viagens terá um doente de fazer para encontrar quem ouça as suas queixas e trate dos seus males? Haverá calendários à venda com os meses e os dias da semana em que os serviços de saúde estejam em pleno funcionamento?

Já lá vai quase um ano de mandato e não há meio de o governo acertar o relógio do funcionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Nuns dias, é a obstetrícia, noutros é a pediatria ou as urgências, ou o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), ou as listas de espera, ou a falta de médicos, ou as demissões, ou a substituição das direcções das unidades locais de saúde (ULS), há sempre qualquer coisa – e esta qualquer coisa não é a falta de pensos nem de seringas – que faz do SNS um lugar imprevisível, uma espécie de raspadinha, em que cada doente almeja que lhe caia em sorte o dia em que vai ser contemplado com um atendimento. Não sendo isto a regra, as excepções são tantas que fazem delas outros tantos acontecimentos que não se deviam verificar. 

(Direitos reservados)

Quando o libanês e pioneiro na matéria Avedis Donabedian escreveu um tratado sobre avaliação da qualidade em saúde (“The definition of quality and approaches to its assessment”. Ann Arbor, MI: Health Administration Press, 1980), ensinou-nos que tanto a estrutura como o processo e os resultados deviam obedecer a critérios previamente fixados, estabelecidos por quem dispõe do conhecimento para se pronunciar sobre eles. E que, sendo o modelo de avaliação sistémico, devia ser ajustado aos contextos em que iria ser aplicada a avaliação. 

É inquestionável que, uma vez entrados no circuito de tratamento, os doentes são tratados segundo a legis arte, já o mesmo não se pode dizer da estrutura. E é esta que, por défices constantes, ocasionais ou crónicos, acabam por condicionar tanto o processo como os resultados. Afinal, o que mais interessa às pessoas.

(Créditos fotográficos: Steve Buissinne – Pixabay)

Nestes, devem-se distinguir:

  • os processos que correram bem – o tratamento foi adequado à doença, resultando numa recuperação completa da saúde, ou no controlo de uma situação crónica;
  • os processos que correram mal – o diagnóstico da doença foi mal feito, o tratamento foi errado, ou verificaram-se intercorrências evitáveis durante esse período;
  • a estrutura foi incapaz de responder às necessidades explícitas, acabando por agravar a situação de doença ou, em casos extremos, verificando-se a morte da pessoa. 
(Créditos fotográficos: Parentingupstream – Pixabay)

Quando se mede o desempenho das instituições de saúde do lado dos resultados, compete ao governante de ocasião incluir não só aqueles que decorreram do processo institucional, mas também dos que ficaram à porta. Isto porque o SNS é universal, passando, portanto, a ser da sua responsabilidade tanto os que conseguem entrar no circuito do tratamento como os que demoraram a entrar para além do tempo que é admissível, ou que nunca chegam a entrar.

É por falta de um sistema de informação que esteja formatado para monitorizar toda a fileira da procura que existe um viés nos valores dos resultados atribuídos aos serviços de saúde, pecando, por isso, por defeito. É por isso, que a prevalência de doença na população portuguesa é a mais elevada da UE27. 

(ulisboa.pt)

Feito o diagnóstico de que é na estrutura do SNS que residem as maiores desconformidades relativamente ao desejável, é sobre ela que recai toda a responsabilidade dos governantes. E tendo estas desconformidades vindo a agravar-se, significa que se transformaram num problema crónico.

Ora o que se está a verificar é a abordagem de um problema crónico como se fosse ocasional, ao contrário do que Avedis Donabedian preconiza: os problemas crónicos exigem mudanças estruturais para que as queixas deixem de existir, ou diminuam substancialmente, e para que os resultados observados se aproximem dos resultados esperados e contribuam para a satisfação de quem esteve exposto a riscos para a saúde.

(Créditos fotográficos: Olga Kononenko – Unsplash)

Se nada disto se está a verificar, se cada episódio indesejável não é avaliado como uma manifestação de um problema crónico, a tendência é considerar o episódio como ocasional e tratá-lo como tal. Daí estar-se a verificar o recurso crescente ao sector privado para acorrer às aflições que o SNS enfrenta. Quando alguns partidos políticos denunciam a entrega do SNS às empresas do sector, é disto que se está a tratar, de o sistema público de produção de cuidados se ter tornado incapaz de satisfazer as necessidades da população.  

(pt.wikihow.com)

É difícil descortinar o dia em que um governo tenha a coragem e seja capaz de proceder às mudanças estruturais de que o SNS carece. E não é por falta de enquadramento legislativo que tal ainda não se verificou, é por opção política. Na Lei de Bases da Saúde está lá tudo o que se deve fazer. Bastaria aplicar o que lá está previsto para que a situação mudasse e ninguém mais precisasse de recorrer à raspadinha para ver os seus problemas de saúde resolvidos.

06/03/2025

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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