Lavandarias de moralidade duvidosa

(Pinterest/reprodução – megacurioso.com.br)
Somos capazes de imaginar a dor e o desespero de uma adolescente ou de uma jovem forçada, pela própria família, ao desterro no seu país, porque engravidou fora dos conceitos puritanos e da moralidade conservadora? Temos a coragem de nos indignarmos quando nos dizem que se contam aos milhares as raparigas da desgraça cujos filhos nasceram no interior das paredes conventuais e que, se não morreram pelas péssimas circunstâncias dos partos, os deixariam de ver pouco tempo depois? Que fé nos assiste quando essa realidade aterradora foi protagonizada por outras mulheres que fizeram votos de oração a um Deus que fechou os olhos e que não se mostrou irado contra essas vozes que não admitem o erro?

São muitos os testemunhos e surpreendentes os resultados das investigações que envolvem os lugares em que, disfarçados pela oração e pela hipocrisia, foram praticados os mais aviltantes crimes contra as mães solteiras que ali eram acolhidas. Por exemplo, a 4 de Junho de 2014, a jornalista Patricia Tubella escrevia na edição brasileira do El País que o governo irlandês estava a ser pressionado para que fosse, então, aberta uma investigação oficial sobre “a suposta existência de uma fossa com os restos de quase 800 crianças – a maioria bebés – num antigo convento” que recebia e escravizava essas mães ainda meninas.
A velha notícia refere-se ao convento de Bon Secours que “guardava os registos de morte de 796 crianças”, “cujos corpos foram enterrados escondidos, sem caixão ou lápide” e que, segundo os especialistas, “foram vítimas da negligência e das precárias condições de vida nesta instituição gerida, como tantas outras na época, por freiras católicas entre 1925 e 1961”.

É também inadmissível que, apesar de descoberta em 1975, a existência da vala comum, na localidade irlandesa de Tuam, tenha sido ocultada durante décadas do domínio público. Deve-se à historiadora Catherine Corless a divulgação da verdade escondida nos arquivos do convento de Bon Secours (Lar St. Mary, da Congregação das Irmãs do Bom Socorro) sobre o falecimento dessas quase 800 crianças desnutridas, doentes e pouco cuidadas, confirmando as “condições de vida miseráveis das mulheres internadas e de seus filhos, a alimentação insuficiente, a falta de higiene e os maus-tratos”.
Esses centros (incluindo lares e orfanatos) que internavam compulsivamente as “raparigas perdidas” também recebiam vítimas de abusos sexuais e mulheres pobres, quase sempre obrigadas a trabalhar como escravas, a troco de escassas condições de sobrevivência, como sucedeu nas lavandarias de Madalena, estabelecimentos que existiram entre o século XVIII e o final do século XX, não só em Dublin.

Vem tudo isto a propósito de dois filmes que vi recentemente e que aconselho.
“Philomena”, realizado por Stephen Frears e produzido em 2013, com uma interpretação desconcertante da actriz Judi Dench, baseia-se na história verídica de uma mãe (Philomena Lee, que engravidou na adolescência, em 1952) tida em “desgraça” e que foi enviada para o convento de Roscrea, onde as freiras lhe retiraram o filho para ser adoptado por norte-americanos.

O outro filme que também destapa as chagas sociais da opressão católica e do conservadorismo nessas instituições irlandesas onde terão morrido nove mil crianças é “Small Things Like These”, realizado por Tim Mielants, com base no livro de ficção histórica homónimo “Pequenas Coisas como Estas”, escrito por Claire Keegan.

Nesta longa-metragem escolhida para a abertura do Festival de Berlim de 2024, que é protagonizada por Cillian Murphy, na pele de um vendedor de carvão, somos conduzidos por um olhar que nos faz meditar e espantar com as repercussões sociais de um conjunto de valores instituídos (ou da sua ausência) nas lavandarias de Madalena e nas casas de trabalho administradas pela Igreja Católica, na Irlanda do Norte, onde mulheres solteiras e grávidas “envergonhadas” davam à luz em segredo.
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 23 de Março) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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24/03/2025