Lisboa – Paris, no Sud-Express

 Lisboa – Paris, no Sud-Express

Comboio Sud-Express na estação de Vilar Formoso. (pt.wikipedia.org)

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A meio da estadia em Paris, mais precisamente no Verão de 1963, viemos, eu e a Isabel, gozar um mês de “vacances” com a família e aproveitar a estadia para uma curta deslocação a Ponte de Sor, a fim de colher mais algumas amostras para o trabalho que ali tinha entre mãos. O regresso à capital dos Franceses, fizemo-lo, um mês depois, no Sud-Express. Com saída de Santa Apolónia, cerca do meio-dia, esta composição chegava invariavelmente à Gare d’Austerlitz, pelas dezoito horas do dia seguinte. Aguardavam-nos trinta intermináveis horas de “pouca-terra” e imensos silvos sonoros, numa noite ao longo do vasto planalto de Castela-a-Velha e numa manhã vencendo os profundos vales e escarpados Cantábricos.

(christopheriedel.wordpress.com)

Pouco comum para a época, o dia começara e ia manter-se chuvoso e ventoso, o que me impedia de fazer o que tanto gostei desde criança: permanecer, quilómetros e quilómetros, debruçado numa das janelas do corredor do comboio, sentir a velocidade e o vento e apreciar a extensão daquela gigantesca serpente de ferro, sempre que as curvas tinham a concavidade do meu lado.

Acomodados num compartimento de primeira classe, sem outra companhia que não fossem um adequado farnel e uns livros para matar o tempo, tínhamos, a confortar-nos, o prazer de regressarmos ao trabalho que ali desenvolvíamos.

Num outro compartimento da mesma carruagem viajava – soubemo-lo porque ele próprio no-lo fez saber – um agente da Polícia Internacional de Defesa do Estado, mais conhecida pela sigla PIDE. Nesse tempo, era regra que o percurso ferroviário entre Lisboa e Vilar Formoso, e vice-versa, fosse acompanhado por um funcionário desta odiada instituição, que, juntamente com a Censura, constituíam dois poderosos suportes do poder ilegítimo que nos asfixiava e amesquinhava aos olhos do mundo esclarecido. Era função deste agente verificar passaportes e, certamente, proceder a acções de vigilância política dos passageiros.

(arquivos.rtp.pt)

Passados uns minutos da partida, o tempo suficiente para colocar as malas nos incómodos e altos alojamentos destinados ao arrumo da bagagem, o agente surgiu-nos à porta do compartimento, ainda aberta. Depois de um respeitoso boa tarde, e de mostrar a identificação, pediu-nos os documentos. O meu era, como referi atrás, um passaporte oficial, de capa vermelha, que o distinguia dos do comum dos passageiros, passado pela mesma polícia que o credenciava e isso deve ter-lhe dado o ar cordial com que estabeleceu um primeiro e curto diálogo. Iria connosco, disse-nos, até à fronteira, onde ficaria para, no dia seguinte, regressar a Lisboa no Sud que vinha de Paris.

Com gabinete improvisado num outro compartimento, o agente começava por percorrer todo o comboio, recolhendo os passaportes dos viajantes com destino ao estrangeiro. Instalava-se, depois, no seu espaço e, um a um, verificava todos aqueles documentos, entre os quais não era raro aparecerem algumas contrafacções. A troco de uns contos de réis, organizações à margem da lei vendiam passaportes falsos a emigrantes clandestinos ou a familiares daqueles que já se haviam fixado nos locais onde trabalhavam.

A meio da tarde, estávamos nós no corredor da carruagem, olhando para o temporal através dos vidros, o agente aproximou-se, trazendo consigo, na mão, meio aberto, o que logo me pareceu um passaporte.

– Só uma extrema ignorância faz com que alguém pague uma fortuna por uma coisa destas que se vê logo que é falsa. – disse. – É a capa, é o papel, são as letras. É tudo falso! Acabei de o receber das mãos de uma passageira. Carregada de cestos e de sacos e, ainda por cima, doente, vai, assim, sozinha, para França, onde tem o marido e o único filho. E dá-me isto para as mãos, ingenuamente, na ilusão de que está em ordem.

Carruagem restaurante ex-Pullman tipo Sud-Express da CIWL, na estação de Santa Apolónia, em finais dos anos 50 do século XX. (Colecção privada – pt.wikipedia.org)

Deu-nos, então, aquele “passaporte” a ver. De facto, não passava de um caderninho mal acabado, que não deixava dúvidas quanto à sua origem contrafeita.

– O que é que eu posso fazer com isto? – Disse o agente, em tom de desabafo. – Prendo-a? De prender gostava eu os criminosos sem escrúpulos que roubam estas desgraçadas. Se fecho os olhos e a deixo passar, será presa na fronteira com a França e recambiada.

– Talvez não – ripostei, na intenção de o encorajar. – De todas as vezes que tenho entrado em França, saindo de Espanha, da Bélgica ou da Alemanha, eles nem olham para o passaporte.

Paris (Créditos fotográficos: Chérie King – pinterest.pt)

– Pois é –, respondeu, com ar de manifesta preocupação. – Mas, se der para o torto, sou eu que fico em maus lençóis. – Confidenciou, ao afastar-se.

Ao fim da tarde, estávamos nós a abrir o farnel, começámos a sentir um desacelerar contínuo da marcha e, por fim, a travagem. Com o temporal, um grande bloco de granito caíra sobre a via. Felizmente, alguém dera o alarme a tempo de o maquinista parar a composição. Foi uma sorte! Podíamos ter descarrilado. A longa espera que se seguiu, motivada pela desobstrução da via, terminou com um fortíssimo assobio que atravessou a noite chuvosa, seguindo-se o chiar das carruagens no arranque da marcha.

Parados em Vilar Formoso, à janela sobre a gare, vimos o agente sair do comboio acompanhado de uma mulher de pequena estatura, magra, de aspecto cansado, aparentando uns cinquenta e muitos anos. Ele virou-se para nós e, com um jeito de cabeça, indicou-nos ser aquela a passageira do passaporte falsificado.

Placa de itinerário a bordo: Madrid — Lisboa — Hendaye. (pt.wikipedia.org)

Não mais os vimos. O comboio entrou em Espanha, onde o percurso se fez durante toda a noite. O céu limpara, permitindo a visão de miríades de estrelas, tantas, que mais pareciam partículas de uma poeira iluminada sobre um fundo de breu. Golpes de vento traziam até nós os silvos da máquina, ainda a vapor, sobrepondo-se ao “pouca-terra” dos rodados da nossa carruagem sobre os carris. Procurando recuperar o atraso, todo o percurso neste troço da Meseta Norte foi feito na máxima velocidade, pois o Sud francês não esperaria por nós. Ao romper da manhã, numa curtíssima paragem numa gare perdida na imensidão desértica da paisagem, pudemos saborear os “bocadillos de jamon”, acompanhados de café com leite a escaldar, servidos em grandes copos de vidro. Dois longos apitos do comboio e a voz do revisor, pondo termo a esta que foi a última paragem, fez-nos retomar os nossos lugares e vencer a etapa que nos levaria à Europa democrática.

À entrada, em Hendaye, ninguém se interessou pelos nossos passaportes, confirmando o que eu dissera ao agente. Depois, seguiu-se uma viagem mais veloz, menos ruidosa, sobre carris soldados. Reabrimos o farnel e esperámos, pacientemente, pela chegada à gare de Austerlitz, o que aconteceu à hora certa, como era apanágio dos caminhos-de-ferro franceses.

(Direitos reservados)

Aí, no meio da enorme confusão de gente que descia das carruagens, de malas, cestos e sacos à portuguesa, e dos muitos familiares aguardando os seus, vimos a mulher do passaporte falso, tralha no chão, sorridente, abraçada aos seus homens.

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(*) Este texto integra o livro “Fora de Portas – Memórias e Reflexões”, da autoria de António Galopim de Carvalho e publicado pela Âncora Editora, em 2008.

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22/02/2022

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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