Litoral

 Litoral

Santa Cruz, concelho de Torres Vedras. (Créditos fotográficos: Bruno Luz – Unsplash)

Uma definição de “litoral” deu-a Luís de Camões, que, para além de grande poeta, foi homem de muitos saberes, com destaque para a Geografia. No Canto III, de “Os Lusíadas”, pode ler-se1 o verso “Onde a terra se acaba e o mar começa”.

O termo “litoral”, trazido para os léxicos geográfico e geológico, começou por ser palavra do vocabulário vulgar. Como substantivo, corresponde à faixa de terreno junto do mar ou à beira-mar, como também se diz. Como adjectivo, qualifica tudo o que se relacione com esta mesma faixa. Substantivo ou adjectivo, contrapõe-se à palavra “interior”, também ela substantiva e adjectiva.

Litoral entre a Praia da Galé-Fontainhas e a Praia do Pinheirinho. A fotografia mostra a extensa e ininterrupta praia alentejana, entre o arco litoral Tróia-Sines e a foz do Sado. (Créditos fotográficos: Vítor Oliveira – Wikipédia)

Importa não confundir litoral com costa ou orla costeira. Esta deve ser entendida como a linha que, no litoral, separa o mar da terra ou, por outras palavras, que marca a fronteira entre o continente emerso e o oceano, tal como é desenhada nos mapas, respeitando o alcance da preia-mar.

Em linguagem político-administrativa, “litoral” designa a faixa de terra junto à costa, abrangendo uma largura à volta de 50 quilómetros para o interior, variável de país para país.

Em Biologia, “litoral” refere o conjunto de ecossistemas localizados na fronteira terra/mar sujeitos à influência das marés, sendo que, neste bioma, podemos distinguir três unidades:

  • Zona supralitoral, supramareal ou supratidal (um anglicismo vindo do inglês “tide”, maré) – acima da linha da maior preia-mar;
  • zona mesolitoral, intermareal ou intertidal – entre a baixa mar e a preia-mar; e
  • zona infralitoral, inframareal ou infratidal – imediatamente abaixo da baixa-mar.
Zambujeira do Mar, no município de Odemira. (Créditos fotográficos: Sébastien Beauchamp – Unsplash)

Para o largo, com a profundidade a aumentar progressiva e suavemente, segue-se a zona circalitoral, adjacente ao litoral, já na plataforma continental (ou zona nerítica, de “Nerita”, um gastrópode identificado por Lineu, em 1758) que não sofre a influência das marés, penetrada pela luz solar e, daí, também, a designação de “zona fótica”.

Para o geólogo ou para o geógrafo, numa visão muito próxima da do biólogo2, “litoral” é não só:

  • a faixa emersa da linha de costa limitada superiormente (do lado de terra) por um acidente fisiográfico (uma arriba ou uma simples rotura de declive) ou pela ocupação permanente de vegetação não tolerante ao sal, mas também…
  • a faixa imersa, limitada inferiormente por uma linha abaixo da qual o fundo marinho não é significativamente perturbado pela ondulação habitual na região. Na nossa costa ocidental, este limite inferior ronda a profundidade de 10 metros, sendo de seis metros, em média, na costa sul (algarvia).
Porto (Créditos fotográficos: Julia Koblitz – Unsplash)

A adulteração da paisagem física, em nome do desenvolvimento, seja no interior seja no litoral, é um facto que está a atingir proporções preocupantes.

No que respeita ao litoral, os reflexos da intervenção do homem são, hoje, bem visíveis e as soluções encontradas para os minimizar ou eliminar nem sempre são as melhores. A conclusão a tirar desta realidade é a de que “não se pode continuar a planear o litoral de costas viradas para os conhecimentos que a ciência já está apta a fornecer”.

Há, pois, que saber conviver com o mar e respeitar os seus códigos que já conhecemos com razoável pormenor. Sabemos, actualmente, que a geometria e as características dinâmicas desta franja “onde a terra se acaba e o mar começa” resultam de oscilações naturais do nível do mar, demasiado lentas, só referenciáveis à escala geológica, que podem ser:

  • eustáticas – subida ou descida do nível das águas; ou
  • epirogénicas – deformações da crosta, quer epirogénicas quer orogénicas.
Matosinhos (Créditos fotográficos: Gary Walker-Jones – Unsplash)

Deixando de parte um conjunto de factores e de condicionantes próprios da civilização, que, por terem lugar à escala temporal do homem e da sociedade e/ou por serem mais visíveis, não é despiciendo conhecer melhor, interferem na configuração do litoral:

  • a natureza e a estrutura das rochas (e a sua maior ou menor vulnerabilidade à alteração e à erosão);
  • o clima, em especial no que diz respeito à pluviosidade, à temperatura, aos ventos e ao gelo;
  • as vagas (intensidade e orientação);
  • as marés e as correntes marinhas;
  • as decorrentes da alteração química e/ou da dissolução que a água do mar exerce sobre as rochas do litoral, com efeitos variáveis em função das respectivas naturezas.
Azenhas do Mar, no litoral do município de Sintra. (Créditos fotográficos: Luca Bravo – Unsplash)

Em suma, pode dizer-se que o litoral se define pelas leis naturais, ou seja, pelas leis da física e da química, sempre subjacentes aos processos geológicos e biológicos. E os responsáveis pela “coisa pública” ou os técnicos ao seu serviço não podem desconhecê-las.

No sentido de minimizar os inconvenientes causados pelas referidas intervenções, tem-se recorrido a ensaios realizados em tanques especiais, onde, em modelos reduzidos, se procuram simular as condições naturais e as alterações a introduzir, a fim de estudar os seus efeitos. Modernamente, com o desenvolvimento dos meios informáticos, estão a utilizar-se modelos matemáticos com idênticos propósitos.

Sabemos, hoje, que a retenção, nas grandes albufeiras das barragens hidroeléctricas, da maior parte dos inertes em trânsito nos rios, é uma das causas dos recuos verificados em certas linhas de costa, nomeadamente, nas praias. Outra causa reside na extracção industrial de inertes (areia e cascalho) das praias, das dunas e dos rios, incluindo os estuários, na ordem de muitos e muitos milhões de toneladas por ano. O desassoreamento de portos e de barras constitui uma outra causa dos mencionados recuos. A construção de enrocamentos, como sejam os molhes e os esporões, com o fim de proteger determinados sectores da costa, acabam sempre por transferir o mesmo tipo de problemas para jusante e, geralmente, de forma agravada.

(Créditos fotográficos: Silas Baisch – Unsplash)

As vagas, desencadeadas por acção do vento, transmitem até ao litoral a energia que dele recebem e têm a sua acção erosiva grandemente potenciada pelo efeito abrasivo dos materiais (areias, seixos e blocos) que põe em movimento. Em resultado desta acção, formam-se os litorais de erosão, ou catamórficos, caracterizados por arribas, ou falésias alcantiladas, que recuam à medida que aumenta a plataforma litoral ou de abrasão marinha.

A plataforma continental é a continuação desta mesma superfície, arrasada num passado geológico recente (período Quaternário) e hoje submersa, na sequência da subida do nível do mar nos cerca de 20 mil anos que se seguiram à última glaciação (Würm, na Europa; e Wisconsin, na América do Norte), conhecida por transgressão flandriana (descrita na Flandres, no Norte da Bélgica).

Temos exemplos de litorais catamórficos na Costa Vicentina e na que se estende para norte da foz do Douro. Deste recuo restam, como testemunhos, pontas rochosas, como são os cabos ou promontórios, muitas vezes, prolongados mar adentro por pontuações igualmente rochosas (ilhéus, baixios, escolhos, abrolhos, calhaus ou pedras, etc., nos diversos modos de dizer locais), com destaque para os cabos de São Vicente, de Sagres, de Espichel, da Roca e do Carvoeiro, com a conhecida e elegante Nau dos Corvos.

Quando é o mar que recua, o litoral diz-se anamórfico ou de acumulação. Têm aqui lugar a praia – em geral, arenosa (mas, às vezes, cascalhenta) – e as dunas. Na sequência desta regressão do mar, a arriba fica liberta da erosão das vagas, passando a evoluir em ambiente subaéreo, até adquirir um perfil de equilíbrio ditado pela sua natureza e pelas condições climáticas ambientais. Facilmente reconhecíveis na paisagem litoral, estes testemunhos de antigos litorais são considerados arribas fósseis.

(Créditos fotográficos: Clem Onojeghuo – Unsplash)

A praia é, na maior parte dos casos, uma acumulação instável de areia e, algumas vezes, de cascalho, de seixos ou de calhaus (três modos de designar os clastos mais grosseiros), no geral, arredondados pela abrasão. Representa um ambiente onde o binómio morfologia-sedimentação se caracteriza por grande instabilidade. Qualquer modificação natural ou artificial introduzida na morfologia da praia ou no seu conteúdo sedimentar (areias e, eventualmente, cascalho) tem reflexos no balanço erosão-sedimentação. São exemplos de litorais anamórficos todas as nossas praias, de Norte a Sul, de Oeste a Leste (no Algarve).

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Breve glossário:

Eustáticas – Diz-se das variações lentas do nível do mar causadas por modificação do volume das águas (gelo e degelo glaciário) ou por deformações do fundo marinho.

Epirogénicas – Indicam movimentos ascensionais ou descensionais, lentos, da crosta continental, responsáveis por regressões (descida do nível do mar) e por transgressões (subida do nível do mar).

Orogénicas – Diz-se de um conjunto de processos geodinâmicos internos geradores de cadeias de montanhas ou orógenos.

Inertes – Termo técnico, entre os engenheiros, para referir os sedimentos terrígenos, em especial, areia e cascalho.

Jusante – Do termo francês “jusante”, a partir do antigo advérbio “jus” (em baixo). Este termo – inicialmente, empregado em relação com os escoamentos fluviais e afins, em que o sentido do movimento é, naturalmente, o de cima para baixo (de montante para jusante) – acabou por entrar na linguagem corrente com o significado de “para onde” (jusante) em oposição a “de onde” (montante). Na costa ocidental portuguesa, onde o transporte das areias se faz de Norte para Sul, montante fica para Norte e jusante para Sul.

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Nota da Redacção:

1 – Ver, a propósito, o artigo “Falando de praias”, também da autoria de António Galopim de Carvalho, publicado na nossa edição de 25/07/2024.

2 – O autor reitera o que escreveu no artigo “Falando de praias”, publicado na edição da recente quinta-feira (25/07/2024) do jornal sinalAberto.

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29/07/2024

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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