Luís Aguiar: “A poesia tem essa obrigação de ajudar a aprimorar a democracia”

Luís Aguiar (Direitos reservados)
Luís Aguiar nasceu em Oliveira de Azeméis, no ano de 1979. É mestre em Línguas e Relações Empresariais pela Universidade de Aveiro. É sócio do P.E.N. Clube Português. Estudou Música Clássica, Guitarra Portuguesa de Coimbra e Fotografia. Além de, em 2021, ter vencido a “3.ª Bienal de Arte da Vila de Fânzeres”, na categoria de Fotografia, algumas das suas obras fotográficas figuram na capa de diversos livros de poesia. Foi coordenador da antologia “São Cravos, 50 Anos de Abril, 100 Poemas”. É autor de quinze livros de poesia. Os seus poemas integram, tal-qualmente, várias antologias e revistas literárias. Foi galardoado com dezenas de prémios literários nacionais e internacionais, com destaque para o “Prémio de Poesia Judith Teixeira” (em 2016 e em 2024), bem como para o “Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage” (em 2016 e em 2022), o “Prémio Literário Cidade de Almada” (em 2021) e também para o “Premio del Concorso Internazionale di Poesia Castello di Duino”, em Trieste, na Itália (em 2005).

fizeram”, considera Luís Aguiar. (Direitos reservados)
Lurdes Breda – sinalAberto (sA) – O Luís Aguiar possui uma educação artística bastante eclética, onde a Música Clássica se cruza com a Guitarra Portuguesa de Coimbra e com a Fotografia. A estas áreas, junta-se também a Literatura, nomeadamente, a Poesia. As artes, de uma forma geral, fazem parte do seu ADN?
Luís Aguiar – Não creio que as artes façam parte do meu ADN, não nasci com elas. No entanto, posso assumir, com uma certa humildade, que as mesmas se tornaram, ao longo do tempo, uma espécie de necessidade fisiológica. Acredito que também poderão ser vistas como manifestações poéticas. Em momento algum desvinculei a Música, a Fotografia, o Cinema, o Teatro e etc. da Poesia. Aliás, admito até que esta última é a essência de todas as artes, a respiração que as mantêm vivas.

sA – O seu livro “Alfarrabista” – distinguido com uma Menção Honrosa na 2.ª edição do “Prémio de Poesia Victor Oliveira Mateus” – reflete uma linguagem poética que, justamente, dialoga com outras formas de arte, como é o caso do Cinema, da Escultura, da Literatura, da Pintura, da Dança Contemporânea, da Fotografia e da Música. Num tempo em que os conceitos e as ideias se vão repetindo e no qual a inovação artística se torna mais desafiante, acha que esta interdisciplinaridade é capaz de gerar obras com maior riqueza e originalidade?
LA – A Poesia tem essa obrigação de traduzir numa outra linguagem o que o Cinema, a Dança e a Fotografia alcançaram com as suas significações estéticas. Recordo-me que escrevi um poema, há muitos anos, sobre uma fotografia de Sebastião Salgado. Admito que quando a visualizei, a dor que me causou foi atenuada, apenas, com a escrita de um poema. É uma imagem que ainda hoje me agride – um homem transporta nos braços uma criança subnutrida e que aparenta estar morta. Talvez seja o próprio pai da mesma, visto que o olhar dele é de extrema desolação, de alguém que deixou de acreditar na Humanidade. A arte tem esse dever. Ou seja, deve registar o presente, mesmo que este presente tenha um peso infernal. É importante que o façamos, para que o futuro não seja apenas um fio de tempo inacessível, inalcançável.

ditadura perfeita, o que não invalida que a população e os artistas em questão
ofereçam o seu contributo para termos um país cada vez mais aprazível”, expressa
Luís Aguiar. (edicoesesgotadas.com)
sA – A Arte Contemporânea é, cada vez mais, uma súmula de técnicas experimentais e da interseção das múltiplas áreas artísticas. Na sua perspetiva, os autores e os artistas estão suficientemente recetivos a esta partilha e junção de saberes ou, pelo contrário, preferem não abdicar do seu espaço próprio?

LA – Não sei responder, confesso. Acredito que seja algo completamente intrínseco a cada criador. Pessoalmente, prefiro os clássicos, não só na Literatura, mas também na Música, no Cinema, na Fotografia. Para sermos modernos é importante compreendermos o que os grandes génios fizeram. E está tudo lá. É impossível não recorrer, até com uma certa regularidade, aos filmes de Godard, de Fellini, de Tarkovsky ou de Ingmar Bergman. Também visito com muita frequência as obras de Mozart, de Rachmaninoff, de Liszt, de Ansel Adams, de Dorothea Lange, de Man Ray, de Henri Cartier-Bresson, de Caravaggio, de Rembrandt, de Ovídio, de Camões e de Homero. Por vezes, nem sequer os contemplo como músicos, fotógrafos, pintores ou poetas, encaro-os como criadores de obras-primas, dantescas, quase, e apesar de serem antigas, estão, na realidade, repletas de modernidade. Ser contemporâneo é um lugar difícil, por vezes inacessível. É como mergulhar no “silêncio das águas”, pensamento que Rimbaud descreveu com mestria no poema “Angoisse”.
sA – Tem ganhado inúmeros concursos e prémios literários. O mais recente foi o “Prémio de Poesia Judith Teixeira”, com o livro de poesia erótica “Afrodite de Cnido”. A propósito deste género de poesia, a escritora Maria Teresa Horta afirmou, numa entrevista, que “O erotismo é o corpo da poesia”. Compartilha desta opinião?
LA – É uma perspetiva muito própria da Maria Teresa Horta, que era, incontestavelmente, uma poetisa do erotismo. E como era enorme e única ao colocar de forma subentendida pequenas nuances de erotismo nos seus poemas. Há muito para aprender com ela. Apenas poderei acrescentar, se me for permitido tal ousadia, que encaro o erotismo como um pequeno eco, frágil e ardente, mas que traz um certo desassossego ao leitor.

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sA – Igualmente associada à poesia erótica, temos a Natália Correia. Outra autora marcante, desde logo, por ter desafiado o Estado Novo, com a publicação da “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, a qual coordenou. Abarcava desde composições trovadorescas, até autores como Mário Cesariny, David Mourão-Ferreira, António Botto, Herberto Helder, Eugénio de Andrade ou Maria Teresa Horta, por exemplo. A obra foi censurada, banida e a própria Natália Correia foi acusada e condenada. A verdade é que este e outros livros, nas mesmas condições, chegaram até nós, como consequência do 25 de Abril. Terá sido a Democracia a libertar a(s) voz(es) da Poesia ou terá sido o inverso?
LA – Talvez se tenha contemplado os dois exercícios. Isto é, a poesia tem essa obrigação de ajudar a aprimorar a democracia, já que aponta e sugere o que está errado numa sociedade em que se exige que seja cada vez mais justa e equitativa. Por seu turno, esta dimensão também permite que determinadas vozes surjam e se insurjam contra as injustiças que encaramos na vida, muitas vezes com estupefação. Sempre defendi que é preferível viver numa democracia frágil do que numa ditadura perfeita, o que não invalida que a população e os artistas em questão ofereçam o seu contributo para termos um país cada vez mais aprazível.

sA – Paradoxalmente, o próprio Luís Aguiar coordenou a antologia “São Cravos, 50 Anos de Abril, 100 Poemas”, alusiva às comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril. Uma data a partir da qual, entre tantas outras áreas, a Literatura, a Música e as artes, em geral, se puderam expressar livremente. Será correto designar esta antologia como um conjunto de poemas sem “mordaça”?
LA – Talvez, não sei. Sei sempre muito pouco. Defendo que a antologia “São Cravos, 50 Anos de Abril, 100 Poemas” é, particularmente, um manifesto, um grito sobre o que foi e ainda é o 25 de Abril de 1974. Esta antologia tem características interessantes que eu defendi, desde que o editor da “Labirinto”, na pessoa de João Artur Pinto, me convidou para coordenar a mesma. Passo a explicar: num país em que as antologias poéticas têm mais de 70% de poetas do género masculino, que é algo incompreensível, pelo menos para mim, esta antologia contempla 50 poetas e 50 poetisas, 100 autores, portanto. Posso acrescentar, também, que alguns destes autores apenas publicaram o seu primeiro poema nesta mesmíssima obra. Ou seja, ela também serviu como uma oportunidade para as “novas vozes”. Tive esse cuidado de ter o mesmo número de poetas e de poetisas; autores consagrados e autores desconhecidos do grande público, mas que não descuram na qualidade poética. Assim como ter tido a capacidade de inserir autores de todas as regiões de Portugal, ilhas incluídas.

sA – O livro inclui cem poemas, escritos por cem autores diferentes. Para além da vertente poética óbvia, sente que este projeto simboliza, principalmente, um ato de cidadania, um grito a cem vozes, em nome da Liberdade?
LA – Não diria melhor, é esse ato de cidadania de que fala e que está muito presente. É um manifesto em nome da Liberdade.
sA – Vivemos numa época conturbada. Conflitos, diferentes ondas migratórias, homofobia, indiferença, falta de empatia da(s) sociedade(s) e ainda, em vários países, o crescimento dos partidos políticos de extrema-direita. Até que ponto nos devemos preocupar com um potencial regresso ao passado?
LA – O Mundo é um lugar perigoso para se viver. Em pleno século XXI, não deveríamos estar a conjugar esforços para guerras infundadas, desnecessárias. E falo de todo o tipo de guerras, não só as bélicas. Somos uma espécie ferocíssima, agressiva, conflituosa. Neste tempo, deveríamos ter resolvidas todas as questões de que fala. É inconcebível continuarmos a sermos racistas, xenófobos, homofóbicos, misóginos, bélicos, fundamentalistas e meros instrumentos de ódio. Evoluímos substancialmente ao nível tecnológico, mas continuamos a ter os mesmos problemas desde que há registos da atividade humana. Atrevo-me a dizer que um dia farão dissertações a defenderem que o ser humano do século XXI não era muito diferente, ao nível comportamental, do ancestral comum dos símios.

sA – Em Portugal, a Música e a Poesia ficarão para sempre associadas à “Revolução dos Cravos”. Gostaria de destacar algum nome dos chamados “Poetas de Abril”?
LA – Não tenho dúvidas de que Zeca Afonso, na Música; Sophia de Mello Breyner Andresen, na Poesia, e Eduardo Gageiro, na Fotografia, serão sempre recordados como figuras que estiveram associadas à Revolução dos Cravos. Mas há mais nomes que não podem e não devem ser dissociados desta Revolução, a título de exemplo: Sérgio Godinho, José Carlos Ary dos Santos, Natália Correia, Manuel Alegre, Carlos Gil, Alfredo Cunha, José Mário Branco e etc.

mesmos problemas desde que há registos da atividade humana”, reconhece Luís
Aguiar. (Direitos reservados)
sA – No seu entender, existe, atualmente, uma verdadeira democratização da cultura e do acesso à mesma? Ou seja, por exemplo, em relação aos autores e aos artistas: morar numa aldeia ou numa vila é o mesmo que morar numa grande cidade, em termos de oportunidades e de ofertas culturais? Que tipo de medidas poderiam ser implementadas, de forma a esbater as assimetrias?
LA – As assimetrias influenciam, evidentemente, a democratização da cultura. As ofertas culturais e as oportunidades são diferentes entre quem vive numa vila em relação a quem vive numa grande metrópole. E quem defender o contrário não estará a ser intelectualmente honesto. Estas assimetrias não se verificam apenas nas questões culturais, infelizmente. Também são visíveis no acesso à Saúde, no acesso ao Emprego, na desertificação de muitas regiões, na falta de habitação e nos transportes públicos. O que, por sua vez, leva e agrava as desigualdades sociais. A Poesia também tem essa função, identificar e registar essas desigualdades. Daí a importância da mensagem poética. Pode servir para alertar, para sensibilizar e para corrigir as diferenças. Não obstante, a desigualdade não reside apenas nas assimetrias. As redes sociais, hoje, funcionam como palco para a vulgaridade, tem-se promovido a mediocridade como se esta fosse algo extraordinário. Há autores que são exímios ao explorarem a sua imagem até à exaustão nas redes sociais e são, muitas vezes, convidados para festivais literários e para editoras de renome, apenas porque são populares. Há uma diferença substancial entre ser popular e ser um exímio escritor. Compete, também, aos organizadores dos festivais, assim como a alguns editores, terem a capacidade de distinguir o joio do trigo, caso contrário podemos correr o risco de promovermos o que tem pouca ou nenhuma importância, assim como venderem-se livros que não têm relação com a Literatura.

sublinha Luís Aguiar. (Direitos reservados)
sA – Entre as múltiplas atividades nas quais tem participado, destacamos o “Encuentro de Iberoamericanos – Salamanca”, em Espanha. Qual a importância de um evento como este, em que a Poesia se sobrepõe à Língua, às origens, às ideologias e é ponte de união entre os povos e os poetas?
LA – Este evento ocorreu em outubro de 2024, através de um convite pessoal feito pelo notável poeta Alfredo Pérez Alencart. O Encontro teve, para mim, uma enorme importância. Não só pela ponte que existiu entre outros povos, culturas e poetas, como bem refere, mas também porque encontramos autores de uma simplicidade que causa espanto e inquietação. No entanto, como são enormes, têm a qualidade dos grandes poetas, aqueles que foram laureados, por exemplo, com o Prémio Nobel de Literatura. Não estou a exagerar. Recordo-me de poetas que conheci em Salamanca que têm uma obra belíssima, nomes como Omar Aramayo, Harold Alva Viale, Gloria Díez, Vito Davoli, Giovanna Benedetti, Homero Carvalho Oliva, Lizette Espinosa, Jose Antonio Santano, Mónica Velasco, Yordan Arroyo, Hugo Francisco Rivella, Omar Ortiz Forero, Elena Díaz Santana, Valentín Navarro ou até Antonio Colinas, entre outros. Poetas e poetisas que têm uma sobriedade e uma qualidade poética que não deixa ninguém indiferente e que também me ajudaram, de forma inconsciente, decerto, a ser melhor poeta. Mas, principalmente, a encontrar a sabedoria para ser melhor humano, num mundo que aparenta ser um barco sem remos e que está completamente à deriva em pleno mar.

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03/04/2025