Num século em que se apregoa a fraternidade morre-se de atentado

 Num século em que se apregoa a fraternidade morre-se de atentado

(www.bbc.com)

A 8 de julho, às 11 horas e 30 minutos, horário padrão do Japão, Shinzō Abe, com 67 anos de idade, foi baleado duas vezes, pelas costas, enquanto proferia um discurso de campanha eleitoral, em Nara, num comício com vista às eleições do dia 10. Os dois tiros que vitimaram o ex-primeiro-ministro – atingindo-o, o primeiro, no pescoço e o segundo, no coração – eram de arma de fogo artesanal manipulada pelo assassino, presumivelmente Tetsuya Yamagami, de 41 anos, ex-oficial da Força Marítima de Autodefesa do Japão, que foi preso após o tiroteio. 

Abe foi levado à pressa para o Hospital Universitário Médico de Nara, em Kashihara, onde foi, mais tarde, declarado morto pelas 17 horas. Antes da chegada ao hospital, um homem de 41 anos já não apresentava sinais vitais. Apesar da transfusão de 100 unidades de sangue, a hemorragia foi muito grande e as tentativas de ressuscitação falharam.  Segundo a agência espanhola EFE, o LDP (Partido Liberal Democrático), por que militava a vítima, anunciou a sua morte, após os serviços de saúde terem comunicado que Abe fora levado para um hospital, em paragem cardiorrespiratória.

Vários líderes mundiais atuais e antigos expressaram as suas simpatias e apoio a Abe. Boris Johnson, o ainda primeiro-ministro do Reino Unido, declarou, em mensagem na rede social Twitter, estar “incrivelmente triste por Shinzō Abe” e disse que “muitos se lembrarão da liderança mundial que mostrou em tempos difíceis”.

Olaf Scholz, chanceler alemão, admitiu estar “atordoado e profundamente triste” com a notícia da morte de Shinzō Abe e sublinhou estar “ao lado do Japão nestes tempos difíceis”.  Por sua vez, Mario Draghi, primeiro-ministro italiano, assegurou que o seu país está “devastado pelo terrível ataque” que custou a vida ao político japonês, frisando que Abe foi “um grande protagonista da vida política japonesa e internacional nas últimas décadas, graças ao seu espírito inovador e à sua visão reformadora”.

(© RTP)

O presidente francês, Emmanuel Macron, referiu que “o Japão perdeu um grande primeiro-ministro”, enquanto o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, condenou “o assassinato”, lamentando a perda de um “líder visionário”.

O presidente russo, Vladimir Putin, lamentou a “perda irreparável” e enviou um telegrama à mãe e à viúva de Shinzō Abe, desejando-lhes “coragem face à perda irreparável”.

O presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol, enviou condolências à família do ex-primeiro-ministro e denunciou um “crime inaceitável”, enquanto o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, declarou o dia 8 de julho como “de luto” e afirmou-se “comovido e aflito” pela trágica morte.

Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, “chocado com o vil assassinato do antigo primeiro-ministro do Japão, Shinzō Abe, apresenta ao Estado japonês as suas respeitosas condolências e repudia esta lamentável manifestação de violência”.

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Shinzō Abe,nascido em Tóquio, a 21 de setembro de 1954, foi um político que serviu quatro mandatos como primeiro-ministro. Membro do grupo nacionalista Nippon Kaigi, foi um político conservador, populista e nacionalista. As suas políticas, sobretudo na área económica, conhecidas como Abenomics, apostam no livre mercado, nos pilares de flexibilização quantitativa, no estímulo à produção e ao equilíbrio fiscal, bem como ao ajuste estrutural. Enfim, mantêm e expandem o bem-estar social japonês.

Shinzō Abe estudou Ciência Política na Universidade de Seikei, graduando-se em 1977. Ingressou na carreira política em 1982, seguindo os passos do pai, Shintaro Abe, e do avô, Kan Abe. E foi eleito pela província de Yamaguchi, em 1993.

Porta-voz e ministro-chefe do gabinete de Junichiro Koizumi, derrotou Sadakazu Tanigaki e Taro Aso, na disputa pela presidência do LDP, a 20 de setembro de 2006, o que lhe garantiu a indicação para o cargo de primeiro-ministro, ao fim do mandato de Koizumi. Seis dias depois, foi eleito, com 339 dos 446 votos na Câmara Baixa e 136 dos 240 na Câmara Alta, além de contar com o apoio popular de quase 70%, mas era tido por analistas como político inexperiente. Aos 52 anos, seria o mais jovem ocupante do cargo desde a II Guerra Mundial.

O principal objetivo de Shinzō Abe erro conduzir uma reforma constitucional no Japão. (Créditos: Mariana Fernandes – Unsplash)

O seu principal objetivo era conduzir uma reforma constitucional. E um objetivo tão importante como o primeiro era o de restabelecer relações com a República Popular da China e com a Coreia do Sul, prejudicadas pelas visitas do antecessor (Koizumi) ao Santuário Yasukini, em Tóquio, que homenageia mortos da II Guerra Mundial. Assim, em outubro de 2006, Shinzō Abe deslocou-se à China, visita histórica para as relações entre os dois países, e a Coreia do Sul.

Porém, o primeiro mandato (de um ano) foi marcado por escândalos de corrupção política e gafes dos subordinados. Assim, Genichiro Sata, vice-ministro de Reforma Administrativa, renunciou, devido a envolvimento em fraude. Abe repreendeu o ministro da Saúde, Hakuo Yanagisawa, por ter dito que as mulheres são “máquinas de ter filhos”. Após a polémica defesa do exército japonês, acusado de recrutar mulheres estrangeiras como escravas sexuais na II Guerra Mundial (Mulheres de conforto), Abe teve de o reconhecer e pedir desculpa. Envolveu-se numa nova controvérsia com a República Popular da China e a Coreia do Sul, ao despachar uma oferenda floral para o Templo de Yasukuni.

A nível interno, Toshikatsu Matsuoka, ministro da Agricultura demissionário e acusado de envolvimento com a cobrança de comissões de empresas construtoras, cometeu suicídio. Outro ministro de Estado a renunciar ao cargo foi o ministro da Defesa Fumio Kyuma, devido a polémica pelas suas declarações, em que reputou de “inevitáveis” as bombas atómicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Esses casos culminaram com a derrota do LDP nas eleições para o Senado, perdendo para a oposição a maioria na casa. 

Políticos oposicionistas e até correligionários pediram a renúncia de Abe, que se recusou a entregar o cargo. Entretanto, a Câmara dos Representantes norte-americana aprovou uma resolução recomendando que o Japão pedisse desculpas pela prática de escravidão sexual na II Guerra Mundial, o que irritou Abe.

Exonerou o ministro de Agricultura Norihiko Akagi, por envolvimento em escândalo de corrupção. Em resposta à queda de popularidade do seu governo e à derrota eleitoral sofrida pelo partido, Abe reformulou o gabinete ministerial. Porém, uma semana após tal reformulação, o ministro da Agricultura, Tokohiko Endo, renunciou, acusado de corrupção. Enfraquecido, Abe anunciou que renunciaria, se não conseguisse prorrogar a Lei Especial de Medidas Antiterroristas, que expiraria no 1.º de novembro de 2007 e que é responsável, entre outras coisas, pela missão japonesa no Afeganistão. E, a 12 de setembro de 2007, anunciou a renúncia, por não contar com o apoio da população e por não conseguir estender a Lei Antiterrorista.

Cinco anos depois, as eleições parlamentares de 16 de dezembro de 2012 deram ao LDP a maioria da Câmara Baixa da Dieta (Parlamento), com o apoio de 328 dos 480 membros da Câmara dos Representantes. Assim, em 26 de dezembro, reconduzido ao posto de primeiro-ministro, Abe garantiu: “Com a força de todo o meu gabinete, implementarei uma política monetária ousada, uma política fiscal flexível e uma estratégia de crescimento que incentive o investimento privado e, com esses três pilares da política, alcançarei resultados”.

Abe procurou o equilíbrio fiscal e estimular a economia japonesa. (mundo-nipo.com)

E, sim, buscou equilíbrio fiscal e pacotes de estímulo à economia. No âmbito externo, manteve linha dura com a Coreia do Norte e com a China, embora buscasse melhores relações com os seus vizinhos. E tentou revogar o artigo 9.º da constituição pacifista para expandir as forças armadas e aumentar o seu papel no país, permitindo ao governo mobilizar tropas, até para o exterior, em missões não pacifistas.

Em 24 de dezembro de 2014, Abe foi reeleito para o cargo de primeiro-ministro pela Câmara dos Representantes. A única mudança que fez, ao apresentar o seu terceiro gabinete, foi substituir o ministro da Defesa Akinori Eto, envolvido numa controvérsia de financiamento político, por Gen Nakatani. No discurso de fevereiro, enquanto o Gabinete resistia a um escândalo na escola Moritomo Gakuen, Abe pediu que a Dieta promulgasse “as reformas mais drásticas desde o fim da II Guerra Mundial” nas áreas da economia, da agricultura, da saúde e de outros setores.

Na eleição de 2016 para a Câmara dos Vereadores, que já permitiu que cidadãos japoneses com 18 anos votassem, Abe liderou o pacto LDP-Komeito à vitória, possuindo, com a coligação, a maioria na Câmara dos Vereadores, já que ganhou em 242 lugares. Os resultados abriram o debate sobre a reforma constitucional, particularmente na emenda do artigo 9.º da constituição pacifista do Japão, com os partidos pró-revisionistas ganhando a maioria de dois terços necessária para a reforma, ao lado da maioria de dois terços na Câmara dos Representantes, o que, em última análise, levou a referendo nacional. Abe permaneceu quieto sobre o assunto pelo resto do ano, mas, em maio de 2017, anunciou que a reforma constitucional entraria em vigor em 2020.

Pessoas caminhando no bairro de Asakusa, em Tóquio. (mundo-nipo.com)

A 22 de outubro de 2017, realizar-se-iam as eleições gerais, mas o primeiro-ministro convocou eleições antecipadas para 25 de setembro, enquanto a crise da Coreia do Norte era proeminente nos meios de comunicação social. Os oponentes disseram que a eleição fora projetada para evitar questionamentos na Dieta sobre supostos escândalos. A coligação de governo de Abe obteve quase a maioria dos votos e dois terços das cadeiras. A campanha e a votação de última hora ocorreram quando o tufão Lan, o maior tufão de 2017, causava estragos no Japão.

Tufão Lan, no Japão. (© Euronews)

Abe focou-se na preparação dos Jogos Olímpicos de Tóquio, que ocorreram (por força da pandemia) em 2021, já depois de ter renunciado.

A colite ulcerosa de Abe ressurgiu e piorou em junho de 2020, vindo a redundar na deterioração da sua saúde no verão. Após várias visitas ao hospital, anunciou, a 28 de agosto, que pretendia renunciar ao cargo de primeiro-ministro, alegando a incapacidade de desempenhar as funções enquanto buscava tratamento, mas recusando indicar sucessor.Entretanto, permaneceu no cargo até o LDP escolher um sucessor. E Abe, que deixou o cargo a 16 de setembro, sendo sucedido por Yosshihide Suga, lamentou não ter cumprido totalmente os seus objetivos políticos, devido à sua demissão antecipada.

Abe, que foi primeiro-ministro em 2006, durante um ano, e novamente de 2012 a 2020, batendo recordes de longevidade na liderança do Japão, é internacionalmente conhecido, sobretudo pela política económica, a Abenomics, lançada em fins de 2012, combinando flexibilização monetária, estímulos fiscais maciços e reformas estruturais.

Cidade de Tóquio. (Créditos: Pedro Lima – Unsplash)

Shinzō Abe conseguiu êxitos, como o aumento significativo da taxa de participação das mulheres e dos cidadãos idosos na força de trabalho, bem como maior recurso à imigração, face à escassez de mão-de-obra. No entanto, sem reformas estruturais suficientes, a Abenomics só produziu êxitos parciais. A sua ambição última era a revisão da Constituição pacifista de 1947, escrita pelos ocupantes norte-americanos e não mais alterada, para recuperar o direito do país a ter forças armadas.

Curiosamente, o primeiro-ministro que mais tempo tinha ficado no cargo antes de Shinzō Abe foi seu tio-avô, Eisaku Sato, também do LDP, que governou entre 1964 e 1972.

14/07/2022

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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