O 10 de Junho: rombos no racismo, no nacionalismo, na mediocridade

 O 10 de Junho: rombos no racismo, no nacionalismo, na mediocridade

(Créditos fotográficos: Miguel Figueiredo Lopes / Presidência da República – presidencia.pt)

(ensina.rtp.pt)

No Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, a escritora algarvia Lídia Jorge, presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho, em Lagos, e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, estiveram em consonância, no ataque ao ultraconservadorismo racista, xenófobo, nacionalista e medíocre, que nos pode precipitar no abismo, com difícil retorno.

Num discurso de cerca de 30 minutos, em que afrontou o racismo, a escravatura e a cultura da mediocridade, a escritora referiu que, “em pleno século XVII, cerca de 10% da população portuguesa teria origem africana”. Aliás, só nos finais do século XX e no dealbar do século XXI é que Lisboa se tornou tanto ou mais cosmopolita do que nos séculos XVI e XVII.

Olhando para Lagos, onde rapidamente se instalara o mercado de escravos, sustentou que nós “somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou”. E contemplando as sociedades hodiernas, alertou contra a possibilidade de loucos atingirem o poder e contra “a fúria revisionista que assalta pelos extremos”.

(Créditos de imagem: Veridiana Scarpelli – revistapesquisa.fapesp.br)

Citou William Shakespeare, Luís de Camões e Miguel de Cervantes, “três autores que perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência”. E foi contundente (talvez pensando em Donald Trump, em Vladimir Putin e em muitos dos seus sequazes), ao enunciar: “O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que, a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra é disputada. E os cidadãos são apenas público que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos, hoje, regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas.”

(© David Horsey/Los Angeles Times – latimes.com)

Depois, numa crítica ao racismo, a também conselheira de Estado referiu que, “em pleno século XVII, cerca de 10% da população portuguesa teria origem africana, população que os Portugueses tinham trazido arrastados”. E deduziu: “O que significa que, por aqui, ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.”

“Por aqui, ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única
não tem correspondência com a realidade”, afirma Lídia Jorge.
(Créditos fotográficos: Alfredo Cunha – fundacao-mvg.pt)

Por conseguinte, criticou “a fúria revisionista que assalta, pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte”, e põe em causa “os fundamentos institucionais científicos, éticos, políticos”. E apontou: “O princípio da exemplaridade – essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre dignos – está a ser subvertido pela cultura digital. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.”

Numa alusão tácita ao presidente norte-americano, frisou que “o chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, disse: Adoro-vos, adoro os pouco instruídos.” E, completou, com amarga ironia: “E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois qual é o conceito, hoje em dia, de ser humano, como proteger esse valor que, até há pouco, funcionava e não funciona mais.”

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Obviamente, a escritora havia de falar de Camões, pois o ilustre poeta – grande na lírica e na épica – serviu Portugal pelas armas, frequentou os salões cortesãos, viveu a vida como grande parte dos escudeiros e dos populares, sofreu as vicissitudes da vida (conheceu o cárcere, a deportação / emigração e a penúria), exaltou a Pátria e a suas gestas, criticou os vícios de tanta gente e cultivou a Língua Portuguesa, modernizando-a, modelando-a e dando-lhe sonoridade.    

N.º 139 da Calçada de Santana, em Lisboa. (getlisbon.com)

De Camões a escritora salientou que, “tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo”. Com efeito, ele adivinhou a decadência do Império; e nós vemos que os perigos espreitam a democracia, em Portugal e no Mundo, com os conflitos a arrastarem-se uns aos outros. E Lídia Jorge falou de um “novo tempo, que está a acontecer à escala global”.

“Camões nasceu e nunca mais morreu”, proclamou a oradora, parafraseando um dito similar a propósito de Beethoven. E “provam-no a forma como tem sido representado nos últimos 500 anos”, reforçou.

Segundo a oradora, o ilustre vate, n’ Os Lusíadas, “expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia”. Também hoje, “o poder demente aliado ao triunfalismo tecnológico faz que […] sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque”, lamentou, vincando: “É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as comunidades portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.”

Réplica da caravela Boa Esperança. (pt.wikipedia.org)

Para Lídia Jorge, “Lagos, a cidade dos sonhos do infante de que Sagres é a metáfora promove a consciência do que somos capazes de fazer uns aos outros”. “Essa população [africana] não nos tinha invadido. Os Portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. […]  Cada um de nós é uma soma”, advertiu.

Todavia, para a escritora, a consciência dessa aventura antropológica “talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte”.

“Agora, que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela, a cada manhã que acordamos, sem sabermos como irá ser o dia seguinte a pergunta é esta: Quando ficaram em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina, entrar em um novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?”, questionou.

Baía de Lagos (marinadelagos.pt)

Prestes a terminar o seu discurso, afirmou que “nós, Portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos, mas, ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças, e criámos uma comunidade de países de Língua Portuguesa e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz”.

E concluiu: “Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força. Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque, se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.”

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Por seu turno, o Presidente da República acentuou que “Lagos é um lugar simbólico de História”, dizendo que ali somos chamados a “recordar os quase 900 anos da pátria comum e o orgulho daqueles que a fizeram, vindos de todas as partes”.

Centro histórico de Lagos. (pt.wikipedia.org)

Na sua intervenção, de cerca de 10 minutos, Marcelo Rebelo de Sousa recordou o passado, propôs a recriação do país e agradeceu a todos os povos que fizeram a pátria portuguesa. “Nós somos portugueses porque somos universais e somos universais porque somos portugueses”, proclamou o chefe de Estado, numa tirada verdadeiramente ecuménica.

O Presidente da República lembrou os combatentes, dizendo que ganhámos a independência e recuperámos a independência, “por causa da sua intervenção”; e que “somos a pátria que vive em liberdade e em democracia, feita por esses soldados”.

Contra os nacionalismos em Portugal, o chefe de Estado recordou os “quase 900 anos da pátria comum”, onde conviveram “vindos de todas as partes, Gregos, Fenícios [Cartagineses, Iberos, Celtas e Celtiberos], Romanos, Germânicos, Nórdicos, Judeus, Mouros, Africanos, Latino-americanos e Orientais, e, desde as raízes, Lusitanos [Suevos e Visigodos], Lioneses, Borgonheses, Gauleses, Saxões, os mais antigos aliados políticos” e os “muitos mais que fizeram uma mistura”, de modo que “ninguém possa dizer que é mais puro do que qualquer outro”.

Encerramento das cerimónias oficiais do Dia de Portugal, na cidade de Lagos. (Créditos fotográficos: Miguel Figueiredo Lopes / Presidência da República – presidencia.pt)

Considerando que é preciso olhar para “as independências que ganhámos” e para “aquelas que perdemos, mas que conseguimos recuperar”, no seu último discurso do 10 de Junho, o Presidente da República salientou a necessidade de “recordar as epopeias que vivemos e os seus combatentes, desde há mais de cinco séculos, e o que delas soubemos acertar, aprender, converter em futuro nosso e da Humanidade” pedindo que se tire também “o que errámos, o que desperdiçámos, o que não fizemos, em continentes e oceanos”. É “tudo isto”, disse, “e muito mais”, que “definiu o que somos” como país. “Somos Portugueses, porque somos universais; e somos universais, porque somos Portugueses”, sentenciou.

No seu discurso, o chefe de Estado pediu que se cuide “mais” dos que “ficaram para trás ou estão a ficar”, sustentando que estes são “intoleravelmente muitos, são de mais”, repetindo, por várias vezes, a necessidade de “cuidar dos nossos compatriotas” e da “pertença” de Portugal à Europa.

“Somos Portugueses, porque somos universais; e somos universais, porque somos Portugueses”, sentenciou o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. (Créditos fotográficos: Miguel Figueiredo Lopes / Presidência da República – presidencia.pt)

“Temos o dever de nos recriar, de nos ultrapassar, de cuidar melhor da nossa gente, para que seja mais numerosa, mais educada, mais atraída a ficar nesta pátria, feita de um retângulo e dois arquipélagos, se quiser ficar, ou a partir, para voltar, e nunca perder a saudade da terra, se quiser partir. Cuidar mais do que puder e dever ser feito, produzido, inovado, investido, exportado e, sobretudo, proporcionado a quem é nela a viver. Cuidar dos que já ficaram para trás ou estão a ficar, e são sempre entre dois e três milhões, e são muitos há muito tempo”.

Numa crítica às desigualdades sociais que permanecem, “regime após regime, situação após situação”, o Presidente da República apelou a que se cuide dos “nossos compatriotas que todos os dias criam Portugal, por todo o Mundo”.

Na semana em que decorre, entre os dias 9 e amanhã (13 de junho), a 3.ª Conferência das Nações Unidas sobre Oceanos, na cidade francesa de Nice, após a celebração, a 8 de junho, do Dia Mundial dos Oceanos, o chefe de Estado pediu que se cuide “do mar, dos oceanos, essa valia que é muito nossa, portuguesa e universal, universal e portuguesa, mas temos de a não ignorar, temos de não a minimizar”.

 (americadosul.iclei.org)

Marcelo Rebelo de Sousa apelou, ainda, ao cuidado da “fraternidade” de Portugal com os povos e os Estados que, tal “como nós, falam Português e fazem do Português uma grande língua mundial”. E, na semana em que o país assinala os 40 anos de entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE), atual União Europeia (UE), pediu que se cuide da “pertença à Europa, unida, aberta, que acredita em valores humanos, de dignidade, de respeito pelas pessoas, pelos seus direitos e deveres, pela sua pluralidade de cultura e de vida”. “Este recriar Portugal é a nossa obrigação primeira, neste novo ciclo da nossa História”, vincou.

O então primeiro-ministro, Mário Soares, na cerimónia de assinatura do tratado de adesão à Comunidade Económica Europeia, a 12 de junho de 1985, faz hoje 40 anos. (Créditos fotográficos: Comissão Europeia – rr.pt)

“Não há outro país do Mundo que tenha o seu dia nacional escolhido por causa de um poeta”, sinalizou o Presidente da República. Também isso nos torna um povo singular, digo eu.

“Recriar Portugal é, no fundo, ler ‘Os Lusíadas’, a obra máxima do poeta do século XVI”, ou seja, “recordar o passado, mas apostar no futuro”, asseverou o Presidente da República, já que o poeta recordou o passado, mas propôs “a aposta no futuro, em anos em que Portugal parecia condenado a morrer”.

Em jeito de despedida, Marcelo Rebelo de Sousa agradeceu “a esse povo anónimo” que é Portugal, um país que “não é uma ideia abstrata, não é apenas uma paixão, um amor sem conteúdo, [mas] é uma História, é um passado, é um presente, é um futuro, mas é um povo, é gente de carne e osso, com alegrias e tristezas, com júbilos e com dores, com euforias e sacrifícios”.

O elogio aos Portugueses e ao país nos discursos de celebração do 10 de Junho foi, de resto, uma constante do Presidente da República, ao longo dos dez anos de mandato. E o último não foi exceção. “Isto é Portugal, isto é Portugal, os portugueses e as portuguesas, e nele os nossos combatentes, os nossos militares, esses militares que aqui estão, todos os anos, pelo 10 de Junho, mas estão na nossa História desde que nascemos”, enfatizou.

O elogio aos Portugueses e ao país nos discursos de celebração do 10 de Junho foi, de resto, uma constante do Presidente da República, ao longo dos dez anos de mandato. (Créditos fotográficos: Miguel Figueiredo Lopes / Presidência da República – presidencia.pt)

Em dia de cerimónia militar, como chefe de Estado, garante da unidade nacional e comandante supremo das Forças Armadas, Marcelo Rebelo de Sousa agradeceu a todos e a todas, povo anónimo, aos que aqui nasceram, aos que vieram de fora, aos que vivem na diáspora e, claramente, aos heróis, o facto de terem construído esta pátria que emendar os erros, que sabe recriar-se.

Deixou explícito agradecimento aos militares que instauraram a democracia e nos abriram o horizonte da liberdade. E, desta vez, pessoalizou o agradecimento na figura do general Ramalho Eanes, a quem agraciou com o grande-colar da Ordem Militar de Avis (é a primeira personalidade a receber este grau, o máximo, da Ordem de Avis), salientando que serviu Portugal como combatente em África, é um capitão de Abril, foi protagonista do 25 de Novembro, chefe do Estado-Maior do Exército e Presidente da República, com dois mandatos. Foi o primeiro Presidente da República eleito livremente pelo povo.

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(facebook.com/jornalexpresso)

De acordo com o portal das ordens honoríficas, “a Ordem Militar de Avis destina-se a premiar altos serviços militares, sendo, exclusivamente, reservada a oficiais das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, bem como a unidades, órgãos, estabelecimentos e corpos militares”. E, segundo a Presidência da República, é a primeira vez que é atribuído o grande-colar da Ordem Militar de Avis, o mais alto grau desta ordem militar.

Ramalho Eanes foi condecorado com o grande-colar da Ordem Militar de Avis, num dia em que os candidatos presidenciais tiveram opções diferentes: o almirante esteve ausente, com agenda pública, em Lisboa, numa homenagem aos combatentes do Ultramar, ao invés de Luís Marques Mendes, que fez questão de ver e de ser visto pelos jornalistas.

Marcelo Rebelo de Sousa, mais tarde, foi sibilino sobre Henrique Gouveia e Melo, dizendo que não fazia comentários sobre candidatos, mas que os candidatos têm de fazer pela vida.

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Os dois oradores foram consonantes na proclamação da pátria aberta e plural. Não obstante, Lídia Jorge foi mais pormenorizada na denúncia do perigo de descarrilamento do comboio das democracias, embora abrisse a passadeira da esperança; o chefe de Estado foi contundente na escalpelização da desigualdade, mas o resto do discurso sabe a testamento político, ainda que prematuro, pois espera-se que veja, como Presidente da República, alguma reforma no Estado.

(rtp.pt)

Temos de voltar a Camões para vermos Portugal como “quase cume da cabeça” da Europa (ou “rosto”, como queria Fernando Pessoa), em vez de cauda, como tantos apregoam!

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12/06/2025

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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