O ainda presidente do Brasil pode estar a braços com a Justiça
Um grupo de quase 200 procuradores do Ministério Público Federal (MPF) enviou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, a 1 de novembro, pedido de investigação sobre eventual omissão do presidente Jair Bolsonaro sobre os bloqueios nas rodovias do país por camionistas apoiantes do chefe do Executivo. Citam suspeita de “instigação” e pedem que sejam investigadas outras autoridades com foro privilegiado: “É inadmissível que qualquer autoridade, diante de uma escalada que quer suplantar a legitimidade do voto popular pela força e pela desordem, assista impassivelmente a esse cenário, sem qualquer consequência.”
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Como presidente, Bolsonaro tem direito, por prerrogativa de função, ao foro especial ou foro privilegiado, o que garante que só pode ser alvo de investigações criminais com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, só a Procuradoria-Geral da República (PGR) pode apresentar denúncia contra ele na Justiça e, para a denúncia ser aceite, tem de ser autorizada pela Câmara dos Deputados. Só então poderia ser julgado pelo STF e a consequência de eventual condenação seria, além da pena correspondente ao crime, a perda do cargo.
Isto vale para os crimes comuns cometidos no exercício do cargo, pois crimes de responsabilidade (que apenas o presidente pode cometer), cuja consequência é um impeachment, têm procedimento diferente, com julgamento exclusivo pelo Congresso.
Atualmente, além do indicado como requerido acima, Bolsonaro está a ser investigado em quatro inquéritos-crime sob autorização do STF e enfrenta as acusações de crimes feitas pela comissão parlamentar de inquérito (CPI) da covid-19, que estão em apuração pela PGR.
Porém, com a derrota nas eleições de 30 de outubro, de que resultará a perda do cargo a 1 de janeiro, estará fora do foro privilegiado, pelo que passará a responder por todas essas suspeitas na Justiça comum. Ou seja, a Polícia Federal (PF) pode continuar as investigações sem autorização do STF, as apurações que estão sendo feitas pela PGR passam para a competência de instâncias inferiores do Ministério Público (MP) e os processos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passam para o Tribunal Regional (TRE) da região onde surgiu a suspeita. Por isso, se o MP decidir fazer denúncia contra Bolsonaro, ele será julgado por um juiz de primeira instância e perderá o direito ao Advogado-Geral da União (AGU), pelo que precisará constituir advogado particular.
Estão em curso no STF quatro inquéritos em que Bolsonaro é investigado: divulgação de notícias falsas relativamente às vacinas contra covid-19; vazamento de dados sigilosos sobre ataque ao TSE; fake news sobre ataques e notícias falsas contra ministros do STF; e interferência na PF.
A divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 é um dos crimes de que a CPI da Covid o acusa. O pedido de abertura do inquérito foi feito após o presidente haver lido uma notícia falsa numa transmissão ao vivo nas redes sociais, a 21 de outubro de 2021, referindo que pessoas vacinadas contra a covid no Reino Unido estavam a desenvolver a síndrome da imunodeficiência adquirida (sida/AIDS), o que não é verdade, e citando notícias falsas sobre o uso de máscaras.
O Facebook e o YouTube, plataformas em que Bolsonaro fez a transmissão, retiraram do ar a live (transmissão ao vivo de áudio e vídeo na Internet), para evitar a disseminação da desinformação.
O caso foi investigado pela PF sob supervisão do STF, concluindo que tais ações se enquadram no crime de incitação pública à prática de crime, já que o discurso teve potencial de alarmar espectadores e de os incentivar ao descumprimento de normas sanitárias compulsórias na época.
Assim, em agosto deste ano, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, enviou o pedido de indiciamento ao Procurador-Geral da República. E o processo teve algum andamento, mas a PGR ainda não fez denúncia contra Bolsonaro. Porém, quando este perder o foro especial, o caso deixa de ser competência da PGR e passa para o MPF, que pode enviar denúncia à Justiça Federal.
Em agosto de 2021, Bolsonaro foi incluído no “inquérito das fake news”, a tramitar no STF desde 2019, apurando notícias falsas, falsas comunicações de crimes e ameaças contra os ministros do Supremo, com ligação ao inquérito à atuação de milícias digitais para atacar a democracia.
A inclusão de Bolsonaro na investigação aconteceu a pedido do TSE, que enviou notícia-crime ao STF após a transmissão ao vivo em que Bolsonaro divulgou notícias falsas que questionavam a confiabilidade do processo eleitoral. Para Alexandre de Moraes, “observou-se, como consequência das condutas do Presidente da República, o mesmo modus operandi de divulgação utilizado pela organização criminosa investigada” no inquérito das fake news, “pregando discursos de ódio e contrários às Instituições, ao Estado de Direito e à Democracia”. Apesar de ter algumas decisões divulgadas, o inquérito é sigiloso e tramita no STF em segredo de Justiça.
Jair Bolsonaro também é investigado em inquérito de 2021 como desmembramento do inquérito das fake news. A partir de uma notícia-crime enviada pelo TSE, o ministro Alexandre de Moraes determinou a abertura de uma investigação separada.
O inquérito desmembrado tem por objeto a divulgação de dados de investigação sigilosa sobre ataques ao TSE, divulgados por Bolsonaro e pelo deputado Filipe Barros com o envolvimento do delegado da PF, Victor Neves Feitosa Campos. Segundo o TSE, o objetivo do vazamento era contribuir para uma narrativa fraudulenta sobre o processo eleitoral, atribuindo-lhe, sem provas nem indícios, caráter duvidoso sobre a lisura do sistema de votação.
Em fevereiro, a delegada da PF que supervisiona a investigação enviou um relatório ao STF com a conclusão de que Bolsonaro cometeu crime de violação de sigilo funcional. No entanto, não poderia indiciar Bolsonaro por causa do foro privilegiado. E, em agosto, a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, pediu o arquivamento do inquérito, mas Alexandre de Moraes negou o pedido, porque a PGR não tem poder para impedir o prosseguimento de uma investigação policial que não foi requisitada pelo próprio órgão. Com a prerrogativa do foro privilegiado, é improvável a denúncia a Bolsonaro por esse crime, já que isso teria de ser feito pela PGR, que pediu o arquivamento do caso. Porém, ao perder o foro, Bolsonaro poderá ser indiciado pela PF e denunciado à Justiça comum.
A investigação à interferência indevida na PF foi aberta após denúncia de Sergio Moro, ex-ministro de Bolsonaro (agora senador eleito), que, ao deixar o governo em 2020, afirmou que o presidente tentou interferir na atuação daquela polícia. Entretanto, o caso deve ser arquivado, já que a PGR afirmou não haver provas suficientes para imputação de crime e pediu o arquivamento. E, como só a PGR pode denunciar o presidente, a praxe é que o STF aceite o pedido. Todavia, o inquérito está em tramitação e, não sendo arquivado até janeiro, pode passar à Justiça comum.
Além dos inquéritos no STF, Bolsonaro tem acusações contra si, resultantes do relatório final da CPI da Covid, apuradas pela PGR. Contudo, o procurador-geral da República é tido como aliado do ainda presidente. Bolsonaro não foi denunciado pela PGR e é improvável que tal aconteça agora.
Com efeito, a PGR pediu arquivamento ao STF para cinco apurações preliminares de possíveis crimes: acusação de causar epidemia resultando em morte (por suspeita de propagar o vírus), prática de charlatanismo (com incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia), infração de medida sanitária preventiva (por realizar aglomerações e não usar máscara), uso irregular de verbas públicas (por utilizar recursos públicos na compra de medicamentos ineficazes) e prevaricação (por não ter mandado investigar denúncias de corrupção na compra de vacinas). Com o arquivamento, podem ser reabertas pelo MP, somente se houver novas provas.
Já as apurações que não forem arquivadas podem se tornar investigações da PF ou do MP. Atualmente, há duas em curso; uma sobre incitação ao crime (por incentivo à aglomeração e por não uso de máscara); e outra sobre falsificação de documento particular (por ter apresentado uma falsificação como sendo um documento oficial do Tribunal de Contas da União, que provaria ter havido excesso na contabilização de mortes por covid-19).
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Um dos maiores anseios dos brasileiros é o derrube dos 100 anos de sigilo que o presidente decretou. Entre os temas sigilosos estão o seu cartão de vacinação, em que constaria se tomou ou não as vacinas contra a covid-19 e em que data; a entrada de pastores no Planalto; dados de crachás dos filhos; documentos de Laura Bolsonaro, a sua filha mais nova; processos contra Pazuello; mensagens após a prisão de Ronaldinho; e o processo das “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro. Isto sem contar com o fim do orçamento secreto, prática legislativa em que parte do orçamento público se destina a projetos definidos por parlamentares sem a identificação destes.
Durante a pandemia de covid-19, Bolsonaro foi criticado por não ter feito combate eficiente contra a doença, que chegou a matar mais de 600 mil pessoas no Brasil. Entre os seus erros mais graves, destaca-se o posicionamento contrário à imunização por vacinas contra a doença, enquanto apoiava o uso da cloroquina (e de hidroxicloroquina) como tratamento precoce. E evitou que se soubesse se teria sido vacinado ou não contra a covid-19, tendo mesmo decretado sigilo de até 100 anos ao seu cartão de vacinação, pois o documento diz “respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem”.
O Palácio do Planalto também decretou sigilo de 100 anos aos encontros entre o presidente e pastores lobistas, como Gilmar Santose Arilton Moura, que são suspeitos de pedir a liberação de recursos do Ministério da Educação para prefeituras em que estavam comprometidos.
A informação sobre o sigilo foi revelada pelo jornal O Globo, após a negação de pedido sobre os registos de entradas e de saídas de Santos e Moura do Planalto, via Lei de Acesso à Informação.
Outra informação que ficou sob o sigilo de 100 anos refere-se às investigações às “rachadinhas”, repasse de salários de assessores para o parlamentar ou secretário, a partir de acordo pré-estabelecido ou de exigência para a função, envolvendo Flávio Bolsonaro, senador e filho mais velho do presidente, quando era deputado estadual do Rio de Janeiro. A justificação do Planalto para este sigilo é de que detinham “informações pessoais” que poderiam colocar em risco a vida do presidente e da família, o que vale para os documentos de Laura Bolsonaro e de outros filhos.
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Não bastava a prepotência e os disparates no exercício presidencial, bem como os atropelos eleitorais. Acrescem suspeitas de crimes comuns. Não sairão mais coelhos da cartola?! Que é feito da Justiça no Brasil? Como em Portugal?
07/11/2022