O cerco à Assembleia Constituinte nos idos de novembro de 1975
Um dos episódios marcantes da História da Assembleia Constituinte (1975-76) foi o cerco ao Palácio de São Bento, de 12 para 13 de novembro de 1975 – onde decorria a sessão da Assembleia Constituinte (AC), em resultado das eleições de 25 de abril de 1975 –, por enorme manifestação dos sindicatos da construção civil, vinda do Ministério do Trabalho (à Praça de Londres), que reteve os deputados durante 36 horas. O episódio, atual após o autarca lisbonense ter declarado que todas as datas são importantes, é o tema do livro “Cerco ao Parlamento – Quando a Assembleia Constituinte e a Democracia foram tomadas de assalto”, de Isabel Nery.
Isabel Nery é jornalista, ensaísta e autora de obras de não-ficção, como a biografia “Sophia de Mello Breyner” (2019, 3.ª edição), “Chorei de Véspera – Ensaio sobre a Morte por Amor à Vida” (2016), “As Prisioneiras – Mães Atrás das Grades” (2012), “Política e Jornais – Encontros Mediáticos” (2004) e outros, como adiante se verá. Doutorada em Ciências da Comunicação, com tese sobre Jornalismo Literário e Neurociências, foi vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas e é membro do comité executivo do projeto Literacia para os Media e Jornalismo. Colabora com publicações internacionais, como o jornal holandês De Correspondent. Passou pela televisão, diários e semanários, tendo trabalhado, 15 anos, na revista VISÃO, onde escreveu para as secções de Sociedade, Internacional e Política. Integrou a equipa que criou a VISÃO Júnior, de que foi editora. Publica ensaios na área do Jornalismo e apresenta comunicações em instituições portuguesas e estrangeiras, entre elas a Universidade de Harvard e o King’s College, Canadá. Foi distinguida com vários prémios, como o Prémio Mulher Reportagem Maria Lamas, o Prémio Jornalismo pela Tolerância, o Prémio Paridade Mulheres e Homens na Comunicação Social, e o Prémio Jornalismo e Integração, da UNESCO.
O livro em referência reconstitui os factos que, segundo a autora, foram a antecâmara da tentativa de golpe de Estado de 25 de Novembro, que ditou o fim do processo revolucionário em curso (PREC) e o início da normalização da democracia portuguesa. Efetivamente, a 12 de novembro de 1975, enorme manifestação, constituída maioritariamente por trabalhadores da construção civil em luta pela assinatura do contrato coletivo de trabalho, cercou o Palácio de São Bento, onde decorriam os trabalhos da AC. Os cerca de 100 mil manifestantes, segundo a imprensa, impediram os deputados de sair, durante 36 horas. E a residência oficial do PM, contígua ao Palácio, foi controlada, sequestrando o então chefe do governo, Pinheiro de Azevedo.
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Em entrevista ao Diário de Notícias (DN), publicada a 15 de outubro, Isabel Nery considera que, naquele mês de novembro, a situação era de “pré-guerra civil”, sendo o sequestro da AC “uma espécie de pêndulo de Foucault”, pelo que, depois daquilo, na ótica da autora, “algo tinha de se clarificar”. O livro, agora dado à estampa, é um encadeamento do anterior, “Os Cinco Homens que Mudaram Portugal para sempre” (Mário Soares, Álvaro Cunhal, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ramalho Eanes).
Na pesquisa para esse livro, sobre a transição para a democracia, sentiu o mês de novembro importante, devido ao 25 de Novembro e por não haver dia em que não houvesse algo. Havia manchetes diárias, com assuntos políticos novos. Assim, quis ir fundo na questão da AC, por ser a Assembleia e por se dever aprofundar o tema do cerco.
Já tinha abordado a questão na biografia de Sophia de Mello Breyner (“Sophia de Mello Breyner Andresen”). De facto, ao aprofundar o máximo que pôde o papel político de Sophia na democracia, descobriu que “ela tinha sido uma das reféns do cerco”. Por isso, dedicou um capítulo ao episódio. Depois, aconteceu-lhe o mesmo com “Os Cinco Homens”. O tema do cerco era importante, mas não central. Porém, ao começar a escrever o livro, surgiu-lhe o nome da pessoa que pilotara o helicóptero para levar comida aos deputados da AC e que não estava em jornal nenhum. O Diário de Lisboa “tem imagens do helicóptero, mas nunca diz quem o pilotava”. E nunca esse aspeto tinha sido tratado por jornalistas, nem por historiadores. E considerou isso “interessante, porque não é fácil darmos novidades ao fim deste tempo todo”. Assim, a autora e o editor acharam que “o assunto merecia um livro à parte”: tinham notícia “do ponto de vista jornalístico” e do ponto de vista “histórico”; e havia “um testemunho que nunca tinha sido recolhido”, pelo que valia a pena destacá-lo e detalhá-lo.
Questionada pelo entrevistador, Rui Miguel Godinho, se o episódio, com as devidas diferenças, “foi a nossa invasão ao Capitólio”, admite que a situação é “semelhante na ideia de sequestrar o poder”, como sucedeu nos Estados Unidos da América (EUA) e no Brasil. Ressalva que “as razões são diferentes”, mas “o modus operandi, é semelhante”. Se o caso de Portugal fosse agora, “o paralelo era evidente”, mas diferentes as razões, os contextos e as consequências.
Isabel Nery explicita: “No fundo, o cenário e a ideia de contestar o poder de uma forma quase totalitária – não é o poder a ser quase totalitário, é a contestação –, porque impede movimentos, saídas e entradas, sequestra deputados e um presidente da Assembleia, ministros… Nesse aspeto, até é mais chocante do que o Capitólio ou [do que] o Planalto, no Brasil. É evidente que tem o seu simbolismo, porque, no fundo, estamos a falar do edifício dos poderes. Mas, no caso português, foram os próprios protagonistas que ficaram reféns. Há aí, de facto, um paralelo.”
Confrontada com o facto de não ter havido, durante o cerco, quase entrada e saída de pessoas e de alimentos e questionada sobre como se dá a trégua ao fim de 36 horas, explana alguns detalhes, em prol da exatidão das coisas: os deputados do Partido Comunista Português (PCP), da União Democrática Popular (UDP) e do Movimento Democrático Português (MDP) podiam entrar e sair. Os que não podiam eram os da maioria, isto é, do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) e do partido do Centro Democrático Social (CDS).
O ato de fazer os deputados reféns tinha várias alas, além da dos jornalistas, que garantiam a comunicação. No fundo, segundo a entrevistada, “não há bem uma trégua, mas sim uma cedência total da parte do governo, que aceita dar aumentos salariais nunca vistos aos trabalhadores da construção civil”. E o que vinha nos jornais “era um bocadinho extremado”. Escrevia-se que os trabalhadores tinham “toda a razão” e que a invasão do Parlamento se justificava por terem razão nas “suas reivindicações laborais”. E a investigadora julga “inaceitável” que tenham usado “isso para fazer um protesto tão extremado” e diz que “nem muitos dos que apoiavam a reivindicação apoiaram, depois, essa atitude”.
De facto, para a entrevistada, a reivindicação laboral era “muito justa”, mas havia a ideia de que “os trabalhadores estavam manipulados pelos partidos”. Porém, a manifestação começa pelos sindicatos, “que se organizaram e que decidiram vir até à Assembleia”. Decidiram-no, porque o ministro do Trabalho, capitão Tomás Rosa, “não os recebeu”. A escalada aconteceu, porque o governo “não soube responder ao problema” e porque já tinha sido dito a esses trabalhadores, quando levantaram o problema antes, que seria resolvido.
Chegou-se a uma situação-limite, à rutura, mas que não justificava a invasão da AC. A base é de reivindicação laboral. Depois, houve “um aproveitamento quase momentâneo”, provavelmente sem um plano para fazer o sequestro da AC. Exaltaram-se os ânimos. “Eram trabalhadores que viviam de forma absolutamente miserável, havia gente em barracas”, tendo a maior parte vindo do Norte e de outras zonas. A parte social “é compreensível”, mas não “a escalada de tensão”.
Além do sequestro, houve a tentativa de resgatar o presidente da Assembleia Constituinte, Henrique de Barros. Chega a entrar no helicóptero, mas é retirado. Foi um momento “muito crítico”, pois alguns trabalhadores tentaram agarrar os pés do helicóptero, para ele não levantar voo, de modo que não fizesse o resgate e não cumprisse a missão, “que era trazer comida, sandes e vinho, para os deputados sequestrados”. E, “se não fosse a destreza do piloto, o helicóptero tinha sido atirado abaixo”, visto que, estando rodeado de pessoas, “se tombasse ou caísse, poderia ter sido uma mortandade, sobretudo porque, depois, teria de haver uma reação”.
Apesar da situação extremada, houve muita contenção por parte do Presidente da República, Costa Gomes, muito sensato e a tentar negociar com todas as partes. Henrique de Barros não fez alarido pelo que acontecera, voltou pelo seu pé à Assembleia, à espera de sair. E, dali a umas horas, foi de táxi para casa. Houve a noção de que se estava “no fio da navalha” e de que, se houvesse um passo em falso, as coisas descambariam. Alegava-se “um medo de guerra civil”. E a investigadora pensa que “este episódio é mais relevante do que a importância que lhe tem sido dada na antecâmara do 25 de Novembro”.
Na sua interpretação do que investigou, entende que “havia uma necessidade absoluta de clarificação”, mas que não sabemos se iria acontecer a 25 de novembro, se não tivesse sido este episódio ou se tivesse sido mais tarde. Porém, é claro que os principais grupos parlamentares se deslocaram para o Porto. E a perspicácia de Mário Soares, levou-o a sair antes de as portas serem fechadas. Percebeu que as coisas se iam complicar. O PS esteve sempre muito à frente para tentar clarificar a situação. Este episódio da AC tornara claro que não dava para continuar assim. Esteve-se desde 11 de março (golpe de Estado dirigida por António de Spínola) “a ver as coisas aquecer”. Havia cada vez mais bombas e ataques a sedes de partidos. E o sequestro da AC era “uma espécie de pêndulo de Foucault”. Não se podia aceitar que “o sistema político, democraticamente eleito”, ficasse “impedido de funcionar”. Havia partidos que não queriam a Constituição, o que não significa que fossem eles a planear o sequestro.
A escritora já contribuiu para a celebração dos 50 anos do 25 de Abril, embora possa vir a pensar em mais. Os livros “Os Cinco Homens que Mudaram Portugal” e “O Cerco ao Parlamento” tiveram em conta o contexto dos 50 anos do 25 de Abril. O primeiro saiu bastante antes (em 2022), este sai uns meses antes de 2024. São livros com olhar distanciado sobre os anos da revolução.
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O constitucionalista Vital Moreira, ouvindo os comentários de muitos deputados de outros partidos nos corredores, naquela noite, não teve dúvidas de que o sequestro do órgão eleito do poder político aumentava a hipótese de operação para fazer valer a “ordem democrática” contra a “anarquia revolucionária”, que veio a ser o 25 de Novembro, que pôs termo ao PREC.
Concordando, em geral, com a versão dos factos na referida entrevista, Vital Moreira, então deputado do PCP, tem dois pontos de divergência. Pensa que a autora não tem razão, ao escrever que os deputados do PCP, do MDP e da UDP tinham liberdade de saída e de entrada. No atinente, pelo menos, ao PCP – “o qual, embora solidário com a luta sindical da construção civil, não apoiou o cerco” –, os seus deputados, incluindo dirigentes, também sofreram o confinamento, e a exceção foi a saída de uma deputada do Barreiro, que conhecia alguém no piquete sindical e que, na noite do dia 12, foi autorizada a sair para buscar abastecimentos. Aliás, “se esses deputados podiam sair, porque é que haveriam de voltar?”, interroga. Nenhum deixou o Palácio, sustenta.
E discorda da aproximação desse cerco ao assalto e à invasão violenta e destrutiva do Congresso dos EUA e do palácio do Planalto, em Brasília, organizados por forças da extrema-direita, para contestarem os resultados das eleições presidenciais, constituindo “verdadeiras tentativas de golpe de Estado”. Sem desvalorizar a gravidade do caso de 1975, porfia que não houve invasão, muito menos depredação, do Palácio, nem menção dela; e o cerco, protagonizado por sindicatos sem apoio partidário explícito, não punha em causa as eleições, nem operava a subversão das instituições políticas. Aliás, o alvo da manifestação era o governo, pelo que fora cercada a residência oficial do PM, que, no início da manifestação, se dirigiu aos manifestantes a partir da varanda do Palácio, dando lugar às vaias. A AC terá sido “vítima colateral” dos manifestantes.
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O 25 de Novembro ditou a derrota dos extremistas, mas o dia seguinte ditou a derrota dos que pretendiam a aniquilação dos partidos mais à esquerda. Quanto ao cerco, Isabel Nery vê-o com a independência da distância, enquanto Vital Moreira o viveu por dentro. Seriam úteis testemunhos de protagonistas que também o viveram por dentro, mas talvez noutra ótica.
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23/10/2023