O crivo do trabalho do Ministério Público em 2023
A Procuradoria-Geral da República (PGR) divulgou, a 5 de agosto, o Relatório-Síntese do Ministério Público, referente ao ano judicial de 2023, documento que deveria estar pronto a 31 de maio e cuja conclusão atirou para 11 de setembro a audição da procuradora-geral da República, a convite dos deputados da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (CACDLG), mas que não a impediu de conceder uma entrevista à RTP, antes de se explicar na Assembleia da República (AR).
A Comissão requereu o acesso ao documento até 26 de julho, para que os deputados pudessem analisar os dados até à audição, mas o mesmo acabou por ser entregue uns dias mais tarde.
Também desta vez, a procuradora-geral procedeu do mesmo modo, promovendo, antes da audição parlamentar, a publicação do relatório, que os parlamentares querem analisar.
Diga-se, em abono da verdade, que o documento abrange todas as estruturas e todas as áreas onde o Ministério Público (MP) está presente e/ou desenvolve a sua atividade.
Ressalta, no relatório, uma farpa aos tribunais administrativos e fiscais (TAF) cuja situação o Ministério Público (MP) tem por catatónica, o que a presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA) já contestou, classificando de “incorretas e extremamente injustas” as conclusões do documento do MP.
Por outro lado, ficamos a saber que o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) suspendeu, em 2023, sete procuradores. No total, apreciou e decidiu 36 inquéritos e 14 processos disciplinares, tendo aplicado 18 penas disciplinares (sem revelar ao público as razões dos castigos aplicados), das quais oito de advertência, três de multa e sete de suspensão de exercício. O número total de inquéritos de 2023 foi inferior aos 48 abertos no ano anterior e superior aos 29, em 2021. Contudo, as suspensões de procuradores foram bastante superiores aos dois anos anteriores, em que houve apenas a suspensão de um magistrado do MP.
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Atenção especial merece o que se passa com o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), cuja estatística de acusações está “abaixo da média global nacional”, sendo “condicionada pela natureza e complexidade da criminalidade” investigada, no quadro da competência desta estrutura, bem como pela dimensão dos processos e pelo número de inquéritos instaurados “por força das suas competências de prevenção criminal e de denúncias apresentadas na plataforma Corrupção Denuncie Aqui”.
Efetivamente, o departamento especializado na criminalidade mais complexa, em 2023, fez 24 despachos de acusação para julgamento, num total de 1142 inquéritos concluídos, o que representa apenas 1,2%. No total, processou 1967 inquéritos, dos quais 1382 entrados no ano e 585 que transitaram de 2022. Dos 1142 inquéritos que terminou, três deveram-se ao mecanismo de suspensão 7215 provisória do processo, 131 foram alvo de arquivamento e 984 foram considerados findos por outros motivos, como a remessa a outros departamentos ou como a incorporação noutros processos. Além disso, fica assinalado o aumento de 36% nos inquéritos abertos em 2023, face a 2022, quando foram instaurados 1016.
Já o número de inquéritos dados como terminados (1142), em 2023, registou um crescimento de 24%, face aos 921 findos em 2022, embora sejam menos do que os 1382 que deram entrada.
O relatório indica também que as 24 acusações são mais do que as 22 efetuadas em 2022, visando as áreas da criminalidade económico-financeira, o branqueamento de capitais, o cibercrime, a criminalidade organizada ou grupal, os crimes fiscais e o tráfico de droga, entre outros delitos.
Relativamente à prevenção do branqueamento, o DCIAP instaurou 18096 procedimentos de prevenção em 2023, mais do que os 14393, de 2022, e que levaram à suspensão de 1203 operações bancárias, no valor de 167 milhões de euros (20,4 milhões de dólares e 19,5 milhões de libras), mais do que os 145 milhões de euros do ano anterior. Foram ainda instaurados 920 novos inquéritos neste âmbito, quando, em 2022, deram origem apenas a 716 inquéritos.
O DCIAP pediu a intervenção do Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA) em seis inquéritos, com as apreensões aqui decretadas a ascenderem a 160 milhões de euros.
Além do DCIAP, a atuação do GRA foi desencadeada em mais de 80 casos, a nível nacional, em 2023, nos quais foram apreendidos ou arrestados bens e valores num montante superior a 4,5 mil milhões de euros.
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Em termos gerais, 2023 acabou com mais de 300 mil inquéritos pendentes, tendo o número de inquéritos concluídos ficado 10,8% abaixo do número de novos inquéritos, pelo que o MP assume não ter atingido as suas metas. Nisto pesou o aumento do número de inquéritos abertos no ano anterior.
O relatório dá conta de que o MP movimentou 732877 inquéritos, no último ano, entre 480208 novos processos e 252669 que transitaram de 2022, e que fica acima do total de 658349 inquéritos movimentados desse ano. Esta realidade representa um aumento de 10,4% nos novos processos instaurados, face aos 435042 no ano de 2022. “Foram concluídos 428458 inquéritos, o que representa cerca de 58,1% do total de inquéritos movimentados no ano, e um aumento de 4,3% de inquéritos findos, relativamente a 2022, ano em que findaram 410808 inquéritos. Ficaram pendentes para o ano judicial seguinte 304419 inquéritos”, pode ler-se no relatório síntese do MP.
Como dissemos, o número de inquéritos concluídos ficou 10,8% abaixo do número de novos inquéritos: “No ano de 2023, ainda não se atingiu o objetivo de findar mais inquéritos do que o número de inquéritos entrados”, assume o MP, referindo também que foi feita acusação em 46966 inquéritos, aos quais se juntam ainda 14397 casos em que foi aplicada a suspensão provisória do processo, o que traduz o exercício da ação penal com indiciação em 61850 inquéritos. Por outro lado, o MP indica o arquivamento de 316476 processos.
Em 2023, foram enviados para julgamento 63105 processos e foram julgados 48746 processos, com o MP a conseguir a condenação total ou parcial em mais de 42 mil julgamentos (cerca de 87%), restando pouco mais de seis mil julgamentos que terminaram com decisão de absolvição.
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O relatório concluiu que 2023 terminou com mais inquéritos e processos pendentes: mais inquéritos pendentes, mais processos de cibercrime, de violência doméstica (principalmente, a conjugal) e de tráfico de droga e acusações em apenas cerca de 2% dos inquéritos concluídos.
Para lá do que foi indicado sobre a atividade do DCIAP e sobre a do MP, em geral, importa fazer uma incursão pelas áreas de crime com maior impacto social.
A cibercriminalidade (que inclui burlas informáticas) lidera o número de inquéritos instaurados, em 2023, pelo MP, com 41752 processos, um registo superior aos 39995 abertos em 2022 ou aos 34731 do ano de 2021. Esta atividade traduziu-se em 1205 acusações e em 31135 arquivamentos, além da suspensão provisória do processo aplicada em 262 inquéritos.
Logo a seguir, surgem os processos relacionados com violência conjugal, responsáveis por 36558 inquéritos abertos em 2023, enquanto, em 2022, tinham sido instaurados 35626. Foram considerados concluídos 36532 processos, dos quais 5372 levaram a acusações e 2653 a suspensões provisórias, registando-se ainda o arquivamento de 21853 inquéritos.
O terceiro fenómeno criminal mais expressivo a aumentar foi o tráfico de droga, com 9112 inquéritos abertos no ano passado, quando, em 2022, tinham sido instaurados 7272 e 5608, em 2021. Apesar de abaixo dos inquéritos por crimes rodoviários (13068), que diminuíram, face a 2022, o tráfico de droga gerou, ainda assim, 2299 acusações, tendo sido arquivados 4254 casos.
A seguir, entre os fenómenos criminais mais expressivos na atividade do MP, em 2023, vêm os inquéritos por crimes económico-financeiros, com 8782, em que não se incluem os processos conexos com a corrupção e afins (1808) ou por branqueamento de capitais (1734), tendo estas duas áreas registado, igualmente, um crescimento do número de inquéritos abertos, face a 2022.
Houve ainda um aumento do número de processos por crimes fiscais, em 2023, tendo dado entrada 6702 (face aos 5739, em 2022, e aos 5487, em 2021). Foi proferido despacho de acusação em 1774 processos, foram suspensos provisoriamente 549 e foram arquivados 3300.
Entre outros fenómenos, destaca-se ainda o crescimento muito significativo dos processos abertos por crimes de violência nas escolas, com 958 inquéritos em 2023, mais do dobro relativamente aos 467 registados em 2022, tendo o MP avançado com 50 acusações, arquivado 573 investigações e aplicado a suspensão provisória em 42 casos.
“De entre os fenómenos criminais que maior aumento registaram entre 2022 e 2023, assinalam-se os crimes de tráfico de estupefacientes (25,3%), os crimes ambientais (26,5%), os crimes de branqueamento de capitais (32%), os crimes económico-financeiros (46,6%) e os crimes de violência em comunidade escolar (105,1%)”, resume o relatório.
O documento sinaliza ainda um aumento do número de processos por crimes relativos a polícias, com 2184, em 2023, contra 1934, em 2022, bem como o registo da descida nos inquéritos por crimes contra profissionais de saúde, somando-se 118 novos processos aos 150 do ano anterior.
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Há, entretanto, mais informação sobre o universo do MP, de acordo com o relatório.
Em três anos, há apenas mais 71 membros desta magistratura, ou seja, no final de 2023, o quadro de magistrados do Ministério Público contava com um total de 1722 procuradores, mais 71 do que em 2021 (eram 1651). Este número resulta da diferença entre o total de magistrados em 2021 e os que se encontravam em funções a 31 de dezembro de 2023. Desde 1 de janeiro desse ano, foram colocados 106 procuradores, segundo a lista de antiguidade do MP, de 2023.
Estes magistrados dividem-se em procuradores da República, em maior número, e procuradores-gerais-adjuntos, que totalizam apenas 165, em 2023.
A evolução do número de magistrados do MP nos últimos três anos (2021-2023) é a seguinte: procuradores da República: 1512, em 2021; 1512, em 2022, e 1557, em 2023; procuradores-gerais adjuntos: 139, em 2021, 141, em 2022; e 165, em 2023.
A magistratura do MP apresenta uma preponderância elevada do sexo feminino em, praticamente, todas as faixas etárias: mais de dois terços do universo de magistrados. Ou seja, 68,7% dos procuradores são mulheres contra os 31,3% de homens.
Quanto a classificações, em 2023, foram atribuídas 133 classificações, das quais 53 de “Muito Bom”, 45 de “Bom com Distinção”, 28 de “Bom”, cinco de “Suficiente” e duas de “Medíocre”.
No exercício das suas competências disciplinares, o CSMP apreciou e decidiu 36 inquéritos e 14 processos disciplinares, tendo aplicado 18 penas disciplinares, das quais oito de advertência, três de multa e sete de suspensão de exercício.
As penas aplicadas e a sua caraterização em nos últimos três anos (2021-2023) foram: demissão – uma em 2022; aposentação compulsiva – uma em 2021; suspensão de exercício – uma em 2022, uma em 2022 e sete em 2023; transferência – uma em 2021; multa – 11 em 2021, quatro em 2022 e três em 2023; advertência – cinco em 2021, quatro em 2022 e oito em 2023.
De acordo com o Balanço Social do Ministério Público, partilhado a 30 de junho de 2023, encontravam-se, à data, 1595 magistrados em efetividade de funções, estando 69 magistrados ao abrigo de ausência prolongada: 35 por doença e 34 por proteção à parentalidade.
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Enfim, o universo e a ação do MP são muito amplos e complexos. Por isso, não é excessivo respeitar e prestigiar esta magistratura e a sua autonomia, mas também instá-la à autocrítica e à melhoria, bem como à sujeição a escrutínio externo. Além disso, o procurador-geral da República deve liderar todo o MP (com autoridade, sem autoritarismo), alocando meios, produzindo diretivas, promovendo a formação contínua, acompanhando toda a atividade e instando à justa avaliação da mesma. E o MP estará à vontade para comunicar com o país e para lhe prestar contas.
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12/08/2024