O destino incerto dos que se opõem às ditaduras

 O destino incerto dos que se opõem às ditaduras

Actriz Fernanda Torres, no filme “Ainda Estou Aqui”. (Créditos fotográficos: Divulgação – band.uol.com.br)

Na noite de sexta-feira, testemunhei a excelente interpretação da actriz Fernanda Torres, apropriando-se da realidade dramática da primeira fase da vida de Eunice Facciolla Paiva, uma mulher que, reivindicando o paradeiro do seu marido (Rubens Beyrodt Paiva), se destacaria como activista pelos direitos humanos dos desaparecidos no contexto da ditadura militar brasileira.

Cronologicamente, tudo começou com o golpe militar (de 31 de Março a 1 de Abril de 1964) que destituiu o então (em 1960) eleito presidente João Goulart (de ascendência açoriana e conhecido como Jango, o qual só acedeu ao poder após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961) e que derrubou a Quarta República. Dava-se, assim, início a um regime autoritário e nacionalista que se impôs e aterrorizou os opositores, sob as ordens de sucessivos governos militares, até 15 de Março de 1985, quando o ex-governador do Maranhão, José Sarney, assumiu a presidência do Brasil e a Nova República, por morte de Tancredo Neves, que tinha vencido a eleição presidencial contra o situacionista Paulo Maluf.

Rubens Paiva e a sua mulher, Eunice Paiva. (Créditos fotográficos: Videofilmes / divulgação – opovo.com.br)

Retomando as notas biográficas sobre a família de Rubens Paiva, na década de 1970, que servem de base ao filme “Ainda Estou Aqui”, realizado por Walter Moreira Salles e lançado em Portugal a 16 de Janeiro (há pouco mais de um mês), somos confrontados com o sofrimento e a determinação de Eunice Paiva, mãe de cinco filhos, que não baixa os braços perante a situação violenta e arbitrária por parte do governo militar. Em 1971, o seu marido (engenheiro e político, que tinha sido eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, em 1962) foi detido porque os caudilhos desse regime suspeitavam do seu envolvimento com o desertor e guerrilheiro Carlos Lamarca, um dos instigadores da luta armada contra a ditadura militar em vigor.

Veio a saber-se que Rubens Paiva foi assassinado nas dependências de um quartel militar, entre 20 e 21 de Janeiro do ano em que, poucos dias depois, num outro lado do Mundo, Idi Amin Dada depunha Milton Obote, também num golpe de estado, tornando-se presidente do Uganda e um dos ditadores mais brutais de sempre.

A brasileira Eunice Paiva não se resignou e prosseguiu na recolha de informações que indicassem o paradeiro do seu marido, destacando-se em campanhas pela abertura de arquivos relacionados com as vítimas da ditadura militar, comprometendo a sua liberdade e a própria vida.

Fotografia de Eunice Paiva, em 1971, após sair da prisão, com os cinco filhos. (Créditos fotográficos: Arquivo pessoal / Vera Paiva – bbc.com)

De facto, Eunice Paiva não esqueceu aquela quarta-feira de Janeiro em que os militares entraram na sua casa, no bairro do Leblon, e a levaram (interrogando-a durante 12 dias), bem como a filha Eliana, ao Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), no âmbito do sequestro do marido, que acabou por ser torturado e morto nos porões do DOI-CODI, fazendo-nos lembrar os torcionários da portuguesa Polícia Internacional e de Defesa do Estado.

Só a 23 de Fevereiro de 1996, Eunice Paiva conseguiu que o Estado brasileiro emitisse, oficialmente, o atestado de óbito do marido. É pertinente o seu contributo na promulgação da Lei 9.140/95 (de 4 de Dezembro), assinada por Fernando Henrique Cardoso, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em actividades políticas, no período de 2 de Setembro de 1961 a 15 de Agosto de 1979.

Eunice Paiva exibe o atestado de óbito do marido, Rubens Paiva, em 1996, 25 anos após o seu desaparecimento. (Créditos fotográficos: Eduardo Knapp / Folhapress – em.com.br)

Entretanto, aconselho-vos a ler a recente reportagem (publicada no The Washington Post e, em exclusivo, no Público) desenvolvida por Francesca Ebel, Natalia Abbakumova e Anastacia Galouchka, as quais nos lembram que há “milhares de ucranianos que foram capturados, levados para a Rússia e que estão desaparecidos no sistema prisional, muitos sem acusação”. Neste trabalho de investigação jornalística, Nadezhda Yevdokimova diz que não vê o marido, levado por soldados russos, há quase três anos. A esperança recai na rede informal de voluntários que tenta encontrar estes desaparecidos.

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Nota:

O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 23 de Fevereiro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

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24/02/2025

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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