O elogio do leitor

 O elogio do leitor

(Créditos fotográficos: Giorgio Trovato – Unsplash)

A todos os leitores que um dia acolheram em sua casa um livro proibido.

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Vamos abandonando a ideia de que um livro é um texto impresso em papel, para integrá-lo dentro de um universo mais amplo e mutável.

Vivemos na transição entre o analógico e o digital e, como uma vez defendeu, em Alcains, Hélia Correia, no almoço de entrega do Prémio Ciranda a Jaime Rocha: “O que importa é o texto, não o seu suporte.”

Na altura, eu e Jaime Rocha defendemos o livro em suporte de papel de forma apaixonada e romântica, criando aí uma cumplicidade que dura até hoje. Mas, já há algum tempo, dou a razão a Hélia Correia e a George Steiner, que escreveu: “Como todas as invenções humanas, o livro corre o risco de desaparecer tal como o conhecemos.”

Hélia Correia (© Graça Sarsfield – camoesberlim.de)

Na minha opinião, essa perda não será relevante se conseguirmos salvar o autor e, acima de tudo, o leitor (pois, é o leitor que se transforma também em autor e não o contrário, mas isso será tema para uma outra crónica).

O leitor é o elemento mais importante da aventura humana que é a literatura. Nasceu depois das lendas e das histórias contadas e faz uso de um exercício de liberdade sem precedentes na História da nossa civilização.

O leitor não é um consumidor; mas, sim, um coprodutor da história, do relato, da transcendência poética que o autor fixa em texto.

Há que escrevê-lo com frontalidade: o autor tem pouco poder sem o trabalho activo do leitor, por meio da leitura.

Não é demais lembrar que o autor nasce da palavra “autoridade” sobre o texto. Porém, é a acção dos leitores – que se multiplicam através da edição e da leitura – que anima e valoriza o autor, criando em parceria uma grande revolução artística.

É profundamente errada a frase “já ninguém lê”.

Os leitores de hoje são, infinitamente, mais numerosos do que no século passado.

(Créditos fotográficos: Haley Hydorn – Unsplash)

As campanhas de alfabetização foram e são a grande ferramenta educativa da nossa mudança social.

Que hoje se lamente que tal ferramenta, repito, profundamente humana, não seja utilizada com mais apuro e consciência social é uma responsabilidade dos movimentos políticos e sociais; e em nada belisca a força da natureza de um leitor.

E nesta afirmação já entra a liberdade de o leitor escolher, silenciar ou julgar. São os leitores, mais do que os autores, o motor da revolução literária. E, em épocas que já podemos analisar com dados, tiveram um papel absolutamente decisivo na resistência ao totalitarismo.

Quando, na Alemanha, durante o regime nazi, se queimavam livros em público, não o faziam para acabar com os autores, mas com os leitores.

Simpatizantes nazistas queimam livros em praça pública na Alemanha. (Foto de domínio público – cafehistoria.com.br)

O espectáculo público e inquisitorial da queima de livros e da destruição de bibliotecas servia para intimidar os cidadãos leitores. Para os avisar que só deviam ler a cartilha do Führer.

Em Portugal, grande parte da resistência ao salazarismo é feita através da leitura. Com os autores, mas, sobretudo, com o suporte económico dos leitores. Há, na História do século vinte português, nomes míticos que, através da escrita ou da edição de livros, enfrentaram a sua proibição e os distribuíram clandestinamente. Homens e mulheres a quem devemos muito do nosso património cultural.

(Direitos reservados)

Porque os autores fixavam a realidade de um país que era o nosso, mas que oficiosamente não existia, porque o ditador criava, dentro das suas quatro paredes, um país à sua imagem: em papel azul burocrático, de 25 linhas. Um país que só aos seus olhos era grandioso, como “feliz e bom era o povo português”.

Os leitores que, nessas décadas em que o poder dividia os livros entre os que se podem ler e os que devem ser destruídos, correram o grande risco de acolher os “proibidos” em sua casa. Leitores que os compravam clandestinamente, que os emprestavam e os partilhavam com voz a um número monstruoso de analfabetos – na grande maioria, mulheres. Esses leitores também são heróis da Revolução do 25 de Abril.

Só com a existência desses leitores activos se explicam as grandes manifestações de júbilo do primeiro de Maio de 1974. Foram os leitores que criaram a rede. São os leitores que criam, actualmente, as redes.

Que se escreva ou se leia num suporte de papel ou num qualquer artefacto digital não é o mais importante, perante a inabalável consistência do texto lido e honestamente comentado.

(eurocid.mne.gov.pt)

Felizmente, ainda contamos com muitos livros que servem de armas de combate contra o fundamentalismo e o fascismo, que procuram, de forma arrogante e com fogueiras de demagogia, afastar os leitores dos textos que se opõem à sua estratégia de poder absoluto e policial.

De novo, compete aos leitores a defesa dos livros imprescindíveis; conscientes da importância do papel da leitura na salvaguarda da liberdade e da dignidade humana; defendendo, com firmeza, o seu papel social e cultural, no nosso país e no Mundo.

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Nota da Redacção:

Este artigo da autoria de Elsa Ligeiro foi publicado no jornal Gazeta do Interior, em 23 de Abril, Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor.

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28/04/2025

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Elsa Ligeiro

Editora e divulgadora cultural.

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