“O Fortuna / velut luna…”

 “O Fortuna / velut luna…”

(lastdodo.com)

Biblioteca Estadual, Munique, Codex Buranus (Carmina Burana)
Clm 4660; fol. 1r com a Roda da Fortuna. (pt.wikipedia.org)

“O Fortuna / velut luna…” (“Ó Fortuna / és como a Lua…”) Os versos apareceram sem os esperar, era o título de um episódio de uma série, numa das plataformas de filmes streaming. Não pretendendo afirmar ser um homem culto, identifiquei logo a origem desses versos que ainda ressoam na minha memória musical, oral e coreográfica. E não os posso esquecer! 

Passo a explicar-me. Os dois primeiros versos referidos, fazem parte dos manuscritos ou das letras de “Carmina Burana”1, que foram musicadas magistralmente pelo compositor alemão Carl Orff. 

Foi nos anos sessenta, ainda no Chile e na minha cidade, que tive oportunidade de ver e de ouvir esta cantata coreografada pelo, então, director artístico do Ballet Nacional Chileno, o também alemão Ernst Uthoff Biefand2.  

A forma como este senhor chegou ao Chile (?) é uma história interessante. Para contá-la, vou recorrer a minha memória, à memória dos meus pais e àquilo que se pode encontrar num site da Internet intitulado Memoria Chilena, página electrónica onde se guardam algumas histórias e singularidades do meu país.  

Carl Orff (pt.wikipedia.org)

Conta o meu pai que este coreógrafo integrava a companhia de bailado de Kurt Jooss3, uma das mais importantes figuras da dança moderna, juntamente com outro coreógrafo: Rudolf Laban. 

Esta companhia teria passado pela Argentina e pelo Chile. E foi nessa viagem que Uthoff decidiu ficar no Chile. Ficaria assim, o destino da dança, no meu país, intrinsecamente ligado ao movimento expressionista alemão, do qual, mais tarde, surgiu uma das figuras mais destacadas da dança contemporânea: Pina Bausch. 

Pina Bausch (pinabausch.org)

O meu pai conta que foi um dos privilegiados por ter assistido, com a minha mãe, às representações da companhia de Kurt Jooss: “A Mesa Verde” e a coreografia de “Großstadt”  (“A Grande Cidade”). 

Jooss foi um coreógrafo que se destacou por imprimir nas suas coreografias o aspecto social. Em “A Grande Cidade”, as diferentes classes sociais dançam em diferentes espaços e com diferentes danças. No bailado “A Mesa Verde”, os capitalistas – ou seja, os detentores do poder – decidem, burocraticamente numa mesa, ir para a guerra, enquanto o jovem soldado parte para o campo de batalha e se despede da sua namorada e da sua mãe… A cena é retratada como uma dança da morte medieval! 

“A Mes​a Verde”, de Kurt Jooss, pela Companhia Nacional de Bailado, de Portugal (Créditos fotográficos: Rodrigo Ferreira / CNB1984 – 2020.festivalcumplicidades.pt)

E as recordações continuam. Os poemas de “Carmina Burana” foram escritos pelos goliardos4, nome (Los Goliardos) que Ángel Facio, encenador espanhol escolheu para a sua companhia independente, nos anos 60, uma das mais importantes do movimento teatral espanhol. 

(losgoliardos.com/historia)

Em 2017, na Escola Superior Artística do Porto (ESAP), Ángel Facio foi homenageado, pouco tempo antes da sua morte, pela passagem dos 45 anos da encenação de “A Casa de Bernarda Alba”, de Federico García Lorca – com cenários e figurinos de José Joaquim Rodrigues (1936-2016) –, por ocasião do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI). Uma exposição de fotografias e maquetes na galeria da ESAP, organizada juntamente com a Escola Superior de Arte Dramática (ESAD) da Galiza, com o Teatro Experimental do Porto (TEP) e o FITEI, completava esta homenagem, à qual o mestre José Rodrigues não pode assistir, porque também já tinha falecido há cerca de um ano.

.

Sophia Loren  (pt.wikipedia.org)

A Loren e a Bardot 

Um ano são muitas noites e muitas luas, mesmo quando a Lua parece estar ausente. 

Estas duas senhoras viram muitas luas passar. Elas são Sophia Loren e Brigitte Bardot, cumpriram, recentemente, 90 anos. Ambas tinham coisas em comum, foram actrizes, foram belas, fizeram grandes interpretações no ecrã.

Com interpretação de Brigitte Bardot, o meu filme preferido é “Le Mépris” (de 1963), um encontro que parecia improvável entre Jean-Luc Godard, Jack Palance, Fritz Lang e ainda Michele Piccoli.  

Brigitte Bardot, no filme “Le Mépris” (“O Desprezo”), de Jean-Luc Godard. (Direitos reservados)

De Sophia Loren resgato um dos seus últimos filmes: “Um Dia Inesquecível”. Este filme foi realizado por Ettore Scola, em 1977. um encontro de duas almas solitárias na Roma de Mussolini que acudiu em massa, num dia mui particular, ao encontro do ditador fascista com Hitler. Tive mais tarde a oportunidade de ver uma versão teatral deste filme.  

Sophia Loren e Marcello Mastroianni, no filme “Um Dia Inesquecível”, de Ettore Scola. (rtp.pt)
A aclamada atriz britânica Dame Maggie Smith. (Créditos
fotográficos: ALAMY/Filmes de Carnaval/Álbum – pbs.org)

Entretanto, uma outra “dame”, desafortunadamente, não chegou aos noventa! Morreu em 27 de Setembro de 2024, tinha 89 anos. Refiro-me à actriz Dame Maggie Smith, uma grande dama inglesa do teatro, do cinema e da televisão. Aborrece-me constatar que a imprensa apenas se refira aos seus desempenhos na saga de “Harry Potter” ou de “Downton Abbey”. Maggie Smith era uma já reconhecida actriz antes destas fitas ou séries! 

Kris Kristofferson (Créditos fotográficos: Mary Ellen Mark –
variety.com)

E a despedida de Kris Kristofferson, um belo actor e músico do country, o qual recordo  em muitas fitas, particularmente em  “Alice Doesn’t Live Here Anymore” (“Alice Já Não Mora Aqui”), de 1974, realizado por Martin Scorsese.  

.

.

.

.

Notas:

1 – Se consultarmos a Wikipédia, lemos que “O Fortuna” é um poema que “faz parte dos manuscritos de Carmina Burana, criado aproximadamente entre os anos de 1100 e 1200”. Este poema, segundo regista esta enciclopédia livre, “é dedicado à Fortuna, deusa romana da sorte e da esperança”. O referido poema foi escrito em Latim medieval, sem ter em conta a métrica latina clássica. Ao invés disso, foi escrito com um estilo originado do Alto Alemão: o Vagantenlieder, um estilo típico dos goliardos. A sua fama actual, em todo o Mundo, deve-se a Carl Orff ter composto a música para este poema e de o ter colocado como parte de sua cantata “Carmina Burana”.

Ernst Uthoff (1904-1993). (Créditos fotográficos: Carmem
Dominguez – Museu Nacional de Belas Artes – surdoc.cl)

2 – Nascido na cidade alemã de Duisburg, o bailarino e coreógrafo Ernst Uthoff (1904-1993) ingressou na companhia de Kurt Jooss em 1927, onde assumiu um dos papéis centrais na famosa produção “A Mesa Verde”, que granjeou prestígio internacional ao grupo. Uthoff foi membro deste grupo até 1941, quando a companhia realizou uma digressão pela América do Sul. Um ano depois, estabeleceu-se em Santiago do Chile, com sua esposa Lola Botka, contratada pelo Instituto de Extensão Musical da Universidade do Chile, para criar a Escola de Dança e fundou o Ballet Nacional do Chile.  (in Memoria Chilena – Biblioteca Nacional de Chile) 

Kurt Jooss  (1901-1979).(Créditos fotográficos: Guido Mangold
– folkwang-uni.de)

3 – Kurt Jooss foi um pensador do mundo da dança, bailarino e coreógrafo considerado o precursor da dança teatro ou “thanztheater”, por promover o diálogo entre o ballet clássico, as artes visuais e o teatro. Foi fundador de várias companhias de dança, sendo  a mais notável Tanztheater Folkwang, em Essen (na Alemanha). Entre 1947 e 1949, trabalhou no Chile, regressando em seguida a Essen, onde retomou a sua posição como director de dança da Folkwang University.   (in Memoria Chilena – Biblioteca Nacional de Chile) 

4 – Goliardos, na Idade Média, eram clérigos pobres saídos ou provenientes das universidades. Desamparados pela Igreja, tornavam-se itinerantes (clerici vagantes), vagabundos de espírito transgressivo e provocador. Em meados do século XIII, deambulavam pelas tabernas, portas das universidades e outros lugares públicos, cantando e declamando os seus poemas satíricos, um tanto cínicos, muitas vezes, denunciando os abusos e a corrupção da própria Igreja; ou poemas eróticos, frequentemente, muito ousados.  

Goliardos (semanariouniversidad.com)

14/10/2024

Siga-nos:
fb-share-icon

Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

Outros artigos

Share
Instagram