O que sabemos do gato de Schrödinger?
A nossa vida está cheia de memórias, de rumores e de metáforas que nos ajudam a compreender o que nos traz por cá mais ou menos saudáveis, consoante o termómetro da democracia e do regime, como recorda o sociólogo António Barreto. E a recente leitura de uma crónica da autoria de um portador de uma doença degenerativa que lhe afecta a acção da visão central, a ponto de não conseguir ler o que ele próprio escreve, reactivou-me o interesse pela representação que o físico Erwin Schrödinger nos dá sobre uma das noções básicas da original mecânica quântica (que estuda os sistemas físicos de dimensões abaixo da escala atómica, cujos alicerces se devem a autores como Werner Heisenberg, Albert Einstein, Max Planck – o qual avançou com a hipótese da radiação dos “corpos negros” e com os “quantas de energia” – e Max Born, entre outros) e da mecânica ondulatória dos corpúsculos (teoricamente formulada pelo francês Louis de Broglie).
Assim, na linha de Niels Bohr (da escola de Copenhaga e defensor de conceitos físicos desligados de uma realidade acessível), ao desconhecermos o estado ou a órbita estacionária de um electrão, o melhor é assentirmos que ele está, concomitantemente, em todos os estados possíveis. Para nos mostrar a identidade da mecânica ondulatória perante a incerteza de Heisenberg de, no mundo atómico, conhecermos com toda a precisão, ao mesmo tempo, a posição e a quantidade de movimento (ou a velocidade) de um corpúsculo, Erwin Schrödinger ponderou a experiência mental em que um gato é colocado numa caixa hermética com partículas radioactivas que podem decair ou não, sendo essa situação desconhecida para os observadores no exterior da caixa. Nessas condições, há um contador Geiger (que mede as radiações ionizantes) e um martelo que quebra um frasco com veneno, o qual matará o gato, se a substância radioactiva decair ou emitir radiação. Se não for detectada qualquer radiação, o gato sobreviverá. Para quem não sabe o que se passa no interior dessa caixa obscura, o gato de Schrödinger pode estar vivo ou morto, admitindo-se que, se o felino fosse uma partícula, poderia estar vivo e morto, simultaneamente. Ou seja, haveria sobreposição de estados quânticos, porque, seguindo a matemática da física quântica, sem abrir a caixa, é impossível sabermos se o gato está morto ou vivo e, provavelmente, chegaremos a previsões absurdas.
Como refere Armando Gibert, na obra “Origens Históricas da Física Moderna – Introdução Abreviada” (publicada em Novembro de 1982, pela Fundação Calouste Gulbenkian), “Niels Bohr chamou a atenção para a necessidade de reconhecer a existência de uma ambiguidade, ‘a complementari[e]dade’, no nosso conhecimento”. E Armando Gibert acrescenta que Bohr pensa que “a realidade tem duas faces complementares”, “análoga a um desenho traçado, como em certos jogos para crianças, sobre duas folhas de plástico transparente, digamos metade em cada uma”.
Por conseguinte, se estiverem separadas ou desajustadas “nada significam”, “ao passo que correctamente ‘sobrepostas’, acertadas e vistas em boas condições, dão-nos uma representação entendível”. A dificuldade está em ver os pormenores: “Se pegarmos numa forte lente […], observaremos ao mesmo tempo que o que ganhamos em relação às partes do desenho existentes numa das folhas, o perdemos em relação às outras.”
Nesse ponto de vista, um electrão ou partícula, ou “quantum”, apresenta dois aspectos diferentes contraditórios, como também regista Vintila Horia, na obra “Viagem aos Centros da Terra”, em conversa com Werner Heisenberg: por um lado, pode considerar-se como uma partícula, por outro, há que reconhecer nele uma onda. E isso é difícil de compreender, quando não podemos observar, directamente, os resultados da física quântica. Alguém quer saber se o gato de Schrödinger é feliz?
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 17 de Novembro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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18/11/2024