O teatro, a Censura e a desinformação

 O teatro, a Censura e a desinformação

Créditos fotográficos: Mahbod Akhzami (Unsplash)

(*)

Fernando Gusmão, actor e encenador.
(toponimialisboa.wordpress.com)

Pouco antes da destituição da ditadura portuguesa do Estado Novo, a 25 de Abril de 1974, o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), então sob a direcção artística do encenador Fernando Gusmão, desenvolveu uma espécie de laboratório de teatro com a participação de José Cardoso Pires, como escritor convidado.

O tema base dessa experiência teatral era a “guerra”, palavra difícil de usar no nosso país, então envolvido numa guerra colonial de três frentes (Angola, Guiné e Moçambique), circunstância que determinou que a palavra escolhida assumisse um prudente disfarce, no caso, apresentando-se como sendo a palavra “amor”.

O objetivo principal era o da escrita de um texto susceptível de ser representado. Em tempo de censura à criação literária, encontrar peças de teatro era tarefa muito difícil. O Fernando Gusmão acabara de encenar, no TEUC, a peça “O Asno”, de José Ruíbal, cuja primeira versão para Português – “O Burro” – seria cortada pela Censura. Não passou como burro, mas passou como asno, num truque que a Censura só descobriu mais tarde.

O burro (ou asno) é electrónico e é um produto que o
Tio Sam anda a vender pelo mundo fora.

Neste texto de José Ruíbal, o burro (ou asno) é electrónico e é um produto que o Tio Sam anda a vender pelo mundo fora, em especial nos países subdesenvolvidos. A sua representação pelo TEUC, com as mensagens implícitas que a Censura não aprovaria, e a forma como o grupo conseguiu tornear a reprovação ao texto inicial indiciavam dificuldades para descobrir um texto base para um futuro novo espectáculo que pudesse ser aprovado. Daí o laboratório de teatro nos moldes já referidos.

Estas dificuldades foram, felizmente, superadas com a chegada do 25 de Abril e já não foi necessário concluir um texto codificado para ser representado, texto onde a palavra “amor” substituía a palavra “guerra”. A Censura da ditadura portuguesa do Estado Novo era fonte de desinformação e de fake news, ou seja, de notícias falsas, na contraditória expressão anglo-saxónica.

Janice Theodoro da Silva (© Jornal da USP)

Como disse a professora universitária da Universidade de São Paulo, Janice Theodoro da Silva, as fake news são aparentadas com o teatro, porque “dissolvem a relação entre o facto e suas formas de representação, separam a realidade da ficção, distanciamento necessário na arte da política”. Nesta lógica e no contexto actual, se alguém desejar negar o facto comprovado de que houve o Holocausto, bastará dizer que ele não existiu, num espaço sem perspectiva de discussão, onde o critério da verdade é o número de “gostos” e de cliques que consiga alcançar.

………………….

(*) Artigo no âmbito do programa “Cultura, Ciência e Tecnologia na Imprensa”, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa.

05/09/2022

Siga-nos:
fb-share-icon

Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

Outros artigos

Share
Instagram