O velho sonho da direita

(Créditos fotográficos: Sasin Tipchai – Pixabay)
Há muito que a direita acalenta o desejo de transformar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Sistema Nacional de Saúde. Para isso, bastaria incluir o sector privado de prestação de cuidados no Serviço Nacional, e o sonho estava feito realidade. O propósito tem vindo a germinar desde o século passado, até que viu a luz do dia, tendo como argumento as dificuldades por que passa o Algarve durante os meses de Verão.

Conhecedora do significado real e simbólico que o serviço público tem para a população, a ministra da Saúde apresentou o projecto de criação de um Sistema Local de Saúde (SLS) abarcando toda a região. Foi na Comissão de Saúde da Assembleia da República, de 6 de Junho, que a governante Ana Paula Martins defendeu o projecto, afirmando que “vai abarcar todos os concelhos da região e estabelecerá uma relação de conjunto e articulação de meios entre o sistema público, social e privado[,] de modo a o[p]timizar os cuidados de saúde prestados e combater os estrangulamentos crónicos que a região enfrenta neste domínio”. Estava criado o álibi: as queixas e reclamações que, sazonalmente, os habitantes daquela região apresentam, face ao afluxo de pessoas que se verifica nos meses de Verão.
Quando se passa para a constituição do “Sistema Local de Saúde” do Algarve, verifica-se que ele choca de frente com o que está disposto na Base 9 da Lei de Bases da Saúde, salvo se estiver nas intenções do governo alterar aquela lei, de maneira a incluir o sector privado no perímetro daquele dispositivo. É que nessa Base está expressamente dito que os SLS são “constituídos pelos serviços e estabelecimentos do SNS e de mais instituições públicas com intervenção direta ou indireta na saúde […]”. Isto é, os SLS são uma parceria público-público, em que podem caber as autarquias, a segurança social, a escola ou outras instituições públicas que se considerem úteis para os seus fins.

Sem prejuízo das actuais relações que o sector público mantém com o sector privado, de aquisição de cuidados de saúde para suprir os défices ocasionais ou crónicos do SNS, a Lei de Bases da Saúde não prevê, em nenhuma das suas Bases, qualquer dissolução do SNS num Sistema Nacional de Saúde. Nesta separação de sectores, existem várias razões, a principal das quais é a missão de cada um. Enquanto um presta um serviço pré-pago, o outro presta um serviço pago no momento da sua prestação. Enquanto um é pago pelos impostos de todos os contribuintes, o outro é pago por quem o utiliza. Enquanto um tem custos, o outro tem preços. Enquanto um está sujeito às leis do mercado, o outro baseia-se na solidariedade.
Toda a direita política se tem esforçado por tornar estas duas realidades miscíveis. Não sendo inimigas, são adversárias. E, como tal, impossíveis de se misturar, salvo um golpe parlamentar, em que o partido Chega iria juntar os seus votos aos da Aliança Democrática para alterar a Lei de Bases da Saúde. A acontecer, este seria o mais grave golpe que a democracia sofreria em 50 anos.
Não foi por um capricho do legislador que, na designação de SLS, está o qualificativo “local”. Ele quer dizer que a escala geodemográfica e epidemiológica do dispositivo está suficientemente próxima da população para poder captar as suas necessidades e problemas de saúde, conhecer as suas especificidades culturais, hábitos e tradições, bem como poder participar activamente na fixação das estratégias locais de saúde. Além de facilitar a integração dos actores locais que, directa ou indirectamente, contribuem para o plano do local de saúde e para a sua concretização, visa encontrar as soluções que melhor se adaptam ao perfil populacional.

Foi tendo em conta estes pressupostos que o Sistema foi qualificado como “local”, e não regional como o que a ministra defendeu na Comissão de Saúde. Foi respeitando estes critérios que, há 25 anos, quando foi publicada a legislação que criou os SLS, o Algarve foi subdividido em dois SLS, o do Barlavento e o do Sotavento. Não se pensou nesta região em termos balneários, foi, antes, em critérios de homogeneidade que se chegou a essa solução, na altura, participada pelo seus autarcas. Foi esta a justificação para a criação de dois SLS no Algarve, em contraponto com o que, agora, a ministra Ana Paula Martins defende, configurando não um SLS, mas um Sistema Regional de Saúde. Porém, já é raro ver-se quem confunda um gato com um rato
Estes argumentos desaconselham, por isso, a criação do “Sistema Local de Saúde” do Algarve. Somam-se-lhe ainda a transversalidade demográfica da fileira dos cuidados de saúde. Quando o sector privado, ou alguém por ele, deseja juntar-se ao sector público, é porque está a pensar nas mais-valias que pode retirar da prestação de cuidados na doença, com o Estado a desempenhar o papel de principal pagador. Contudo, o SNS tem por missão não só tratar, mas também prevenir a doença e promover a saúde, embora nesta área esteja muito por fazer. E esta será a missão dos SLS: rectificar o modelo de prestação de cuidados, retirando da sombra e da obscuridade a prevenção e a promoção, dando-lhes a primazia que merecem, fazendo deles um bem a que todos devem ter direito.
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05/08/2024