O velho sonho da direita  

 O velho sonho da direita  

(Créditos fotográficos: Sasin Tipchai – Pixabay)

Há muito que a direita acalenta o desejo de transformar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Sistema Nacional de Saúde. Para isso, bastaria incluir o sector privado de prestação de cuidados no Serviço Nacional, e o sonho estava feito realidade. O propósito tem vindo a germinar desde o século passado, até que viu a luz do dia, tendo como argumento as dificuldades por que passa o Algarve durante os meses de Verão.

(Créditos fotográficos: Alex Teixeira – Unsplash)

Conhecedora do significado real e simbólico que o serviço público tem para a população, a ministra da Saúde apresentou o projecto de criação de um Sistema Local de Saúde (SLS) abarcando toda a região. Foi na Comissão de Saúde da Assembleia da República, de 6 de Junho, que a governante Ana Paula Martins defendeu o projecto, afirmando que “vai abarcar todos os concelhos da região e estabelecerá uma relação de conjunto e articulação de meios entre o sistema público, social e privado[,] de modo a o[p]timizar os cuidados de saúde prestados e combater os estrangulamentos crónicos que a região enfrenta neste domínio”. Estava criado o álibi: as queixas e reclamações que, sazonalmente, os habitantes daquela região apresentam, face ao afluxo de pessoas que se verifica nos meses de Verão.  

Quando se passa para a constituição do “Sistema Local de Saúde” do Algarve, verifica-se que ele choca de frente com o que está disposto na Base 9 da Lei de Bases da Saúde, salvo se estiver nas intenções do governo alterar aquela lei, de maneira a incluir o sector privado no perímetro daquele dispositivo.  É que nessa Base está expressamente dito que os SLS são “constituídos pelos serviços e estabelecimentos do SNS e de mais instituições públicas com intervenção direta ou indireta na saúde […]”. Isto é, os SLS são uma parceria público-público, em que podem caber as autarquias, a segurança social, a escola ou outras instituições públicas que se considerem úteis para os seus fins.

(Créditos fotográficos: Steve Buissinne – Pixabay)

Sem prejuízo das actuais relações que o sector público mantém com o sector privado, de aquisição de cuidados de saúde para suprir os défices ocasionais ou crónicos do SNS, a Lei de Bases da Saúde não prevê, em nenhuma das suas Bases, qualquer dissolução do SNS num Sistema Nacional de Saúde. Nesta separação de sectores, existem várias razões, a principal das quais é a missão de cada um. Enquanto um presta um serviço pré-pago, o outro presta um serviço pago no momento da sua prestação. Enquanto um é pago pelos impostos de todos os contribuintes, o outro é pago por quem o utiliza. Enquanto um tem custos, o outro tem preços. Enquanto um está sujeito às leis do mercado, o outro baseia-se na solidariedade.

Toda a direita política se tem esforçado por tornar estas duas realidades miscíveis.  Não sendo inimigas, são adversárias. E, como tal, impossíveis de se misturar, salvo um golpe parlamentar, em que o partido Chega iria juntar os seus votos aos da Aliança Democrática para alterar a Lei de Bases da Saúde. A acontecer, este seria o mais grave golpe que a democracia sofreria em 50 anos. 

Não foi por um capricho do legislador que, na designação de SLS, está o qualificativo “local”. Ele quer dizer que a escala geodemográfica e epidemiológica do dispositivo está suficientemente próxima da população para poder captar as suas necessidades e problemas de saúde, conhecer as suas especificidades culturais, hábitos e tradições, bem como poder participar activamente na fixação das estratégias locais de saúde. Além de facilitar a integração dos actores locais que, directa ou indirectamente, contribuem para o plano do local de saúde e para a sua concretização, visa encontrar as soluções que melhor se adaptam ao perfil populacional.

Vista aérea do Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio. (pt.wikipedia.org)

Foi tendo em conta estes pressupostos que o Sistema foi qualificado como “local”, e não regional como o que a ministra defendeu na Comissão de Saúde. Foi respeitando estes critérios que, há 25 anos, quando foi publicada a legislação que criou os SLS, o Algarve foi subdividido em dois SLS, o do Barlavento e o do Sotavento. Não se pensou nesta região em termos balneários, foi, antes, em critérios de homogeneidade que se chegou a essa solução, na altura, participada pelo seus autarcas. Foi esta a justificação para a criação de dois SLS no Algarve, em contraponto com o que, agora, a ministra Ana Paula Martins defende, configurando não um SLS, mas um Sistema Regional de Saúde. Porém, já é raro ver-se quem confunda um gato com um rato 

Estes argumentos desaconselham, por isso, a criação do “Sistema Local de Saúde” do Algarve. Somam-se-lhe ainda a transversalidade demográfica da fileira dos cuidados de saúde. Quando o sector privado, ou alguém por ele, deseja juntar-se ao sector público, é porque está a pensar nas mais-valias que pode retirar da prestação de cuidados na doença, com o Estado a desempenhar o papel de principal pagador. Contudo, o SNS tem por missão não só tratar, mas também prevenir a doença e promover a saúde, embora nesta área esteja muito por fazer. E esta será a missão dos SLS: rectificar o modelo de prestação de cuidados, retirando da sombra e da obscuridade a prevenção e a promoção, dando-lhes a primazia que merecem, fazendo deles um bem a que todos devem ter direito. 

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05/08/2024

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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