Orçamento de Estado, qual orçamento?
Os de ouvido apurado já deram pelos passos do Orçamento do Estado para 2025 (OE25) a subir os primeiros degraus da Assembleia da República (AR). Foi o que aconteceu no passado dia 26 de Agosto, num dos canais da televisão. Um comentador de ouvido particularmente sensível entendeu utilizar o tempo que lhe tinham atribuído para equacionar o logaritmo que pudesse aprovar aquele importante documento.
A concretizar-se a ameaça do partido Chega, o governo teria o seu voto contra se a questão da imigração não fosse referendada. Para rebater a ameaça, o tal comentador foi ao baú das edições do Diário da República para repescar uma habilidade do então presidente do Partido Social Democrata (PSD) e antigo deputado Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), que, num gesto largo e patriótico, viabilizou o OE do governo de António Guterres, na forma, mas não no conteúdo.
“E por que não replicar a mesma fórmula?”, sugeria o dito comentador. Na altura, a fórmula funcionou, mas custou o lugar ao actual Presidente da República (PR). A amizade tem destes dissabores.
Em 2024, ninguém se está a preparar para assistir a um remake destes. Terá sido Umberto Eco a defender que a forma era já o seu conteúdo. Para o caso de Pedro Nuno Santos viabilizar um orçamento da Aliança Democrática (AD), na forma, mas não no conteúdo, significaria – ao contrário da tese de Umberto Eco – que o OE seria um conjunto vazio, tendo o secretário-geral do Partido Socialista (PS), de imediato, o mesmo destino de MRS. Portanto, neste preciso momento, o primeiro-ministro (PM) encontra-se sem aliados de monta, sejam quais forem as somas que se fizerem. Salvo se Luís Montenegro decidir bater com a testa nos sapatos do líder do Chega, uma vez que, tudo visto e contado, está a 36 votos do que lhe é necessário para continuar a governar sem sobressaltos. Razão pela qual o imbróglio político é grande.
Uma das teorias mais espalhadas pelos comentadores políticos é a de que as pessoas estariam saturadas de eleições. Não direi que laboram num erro. A escolha, porém, porque é disso que se trata, é entre um OE que se aproxima das soluções e um orçamento que cria mais problemas. O problema nunca foi dar oportunidades às pessoas para escolher. É entre duas ou mais alternativas que se tomam decisões. É o acto que robustece a democracia, ao contrário do que se quer fazer crer.
Dadas as actuais circunstâncias políticas, interessa dar à votação do OE o sentido que aproxime a democraticidade do acto das melhores respostas aos problemas. Actualmente, votar um OE representa um exercício político com elevadas consequências para as vidas das pessoas. Por isso, a ser o mais indicado, mais vale consultar o eleitorado, do que estar-se a costurar um orçamento em que, no primeiro aperto, se começam a descoser os botões.
Desde que o primeiro orçamento foi votado em democracia que ele se caracteriza por não ser a bissectriz de todos os interesses representados no Parlamento. Daí que o apelo velado à bissectriz pode ser uma contribuição para o jogo do faz de conta, mas não acrescenta um bitcoin às contas do Estado.
Um OE é um instrumento que traduz os interesses dos que vão ganhar e dos que vão perder. Os anexos que, geralmente, lhe são juntos servem só para evidenciar o quanto vão ganhar os vencedores, ou, no caso da social-democracia, que maneiras foram encontradas para mitigar as perdas dos vencidos. Só não seria assim se, das parcelas que constituem o documento, lá estivessem as necessárias em quantidade para diminuir as desigualdades, considerando-se que, nas democracias liberais, o OE é o principal argumento que a AR tem nas suas mãos para dar um sentido às desigualdades sociais: diminuí-las ou aumentá-las.
O conflito que está prestes a estalar entre quem tem lugar nas bancadas da AR, não sendo particularmente desigual (138/192), poderá redundar na necessidade de o OE, desta vez, ter de distribuir tabletes de chocolate. A AD precisa de acrescentar doçaria aos bónus que começou a distribuir para adoçar a boca aos eleitores do Chega, porque já se viu que metade destes são os descontentes que decidiram bater o pé aos que até agora têm governado, mas lhes têm voltado as costas.
Presumo que as universidades de Verão também servem para transmitir aos jovens militantes que existe uma literatura que explica isto. Que, fazendo parte da luta de classes, convém ler e estudar, porque tudo anda à volta dela. E os chocolates fazem parte do arsenal que se deve ter sempre à mão para convencer os renitentes, os que teimam em reclamar a parte da riqueza que lhes pertence. De qualquer maneira, e seja qual for o desfecho, vale sempre a pena bater o pé por aquilo que pertence a todos. Para que o ritual não se repita, importa fazer-se ouvir a sapateada, se a isso se tiver de chegar. Servir a população significa não só enviar sinais, mas alterar o sentido das políticas: os que representam cerca de 20% da população portuguesa que vive com menos de 540 euros sentem que uma parte substancial foi eliminada das estatísticas porque as suas condições de vida sofreram a melhoria reclamada.
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Nota do Director:
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02/09/2024