Os riscos de pensar contra a corrente

 Os riscos de pensar contra a corrente

(Créditos de imagem: Gerd Altmann – Pixabay)

“Pensamos com o nosso saber e na nossa língua, mas também com o nosso corpo, a partir das nossas raízes, com as nossas emoções, no lugar e no tempo onde nos situamos”, começa por dizer Boaventura de Sousa Santos, num seu artigo publicado no JL (Jornal de Letras), em 6 de Abril de 2022, que agora recupero para me ajudar a reflectir sobre o que é estar em contracorrente.

Quando pretendo dar corpo e sentido a esta crónica, leio, já noutro espaço jornalístico, que Portugal não tem um plano nacional para a biodiversidade e que ainda não actualizou a estratégia neste domínio, enquanto a bióloga Maria Amélia Martins-Loução (presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia) constata que as questões da Natureza “não poderiam estar mais ausentes do debate público”.

Inicia hoje (21 de Outubro), em Cáli (na Colômbia), a 16.ª Conferência das Partes da Convenção da ONU para a Diversidade Biológica, a COP16 Biodiversidade. (welectric.pt)

Na véspera da 16.ª Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP 16), que se realiza em Cáli (a terceira cidade mais populosa da Colômbia), a professora catedrática da Universidade de Lisboa declara que, do “ponto de vista político, não se vê a atenção, o cuidado e a importância da biodiversidade como se vê com o clima”, denunciando, assim, “a influência do ‘lobby’ do agronegócio nas questões da biodiversidade”. O olival intensivo que se apossa do Alentejo, graças às águas desviadas do Alqueva, é um inequívoco mau exemplo, a juntar a outras produções em monocultura e à insistente escolha dos produtores e dos accionistas com interesses na indústria da celulose em reflorestar os territórios com mais eucaliptos.

Olival intensivo nas áreas do sistema da barragem de Alqueva, o maior reservatório artificial de água da Europa Ocidental. (edia.pt)

Por isso, a jornalista Aline Flor dá destaque ao aviso de Maria Amélia Martins-Loução: “Sem biodiversidade não existe negócio, não existe PIB, não existe alimentação nem saúde.”

Ao querer justificar esta curta narrativa, que resulta da observação e das leituras que faço no lugar e no tempo em que me situo, medito sobre os riscos que cada um de nós assume ao perpassar um espaço de construção contra as pandemias da violência, da inanidade e da iniquidade. Como escreve Albert Camus, no seu romance “A Peste” (publicado em 1947), a “partir do momento em que a nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode dizer-se que tudo corre pelo melhor”. “Sob este aspecto, sem dúvida, a vida não é muito emocionante”, observa o reconhecido pensador do século XX, que nos lega muitas das suas reflexões sobre a condição humana.

Retomando o artigo de Boaventura de Sousa Santos, que muito tem estudado sobre a sociedade e os padrões de relações sociais, o académico verifica: “Pensar é, pois, difícil sempre que não se trate de repetir o que outros pensam ou que já esteja pensado.” De facto, não é simples nem seguro estar “fora da caixa”, sobretudo, na resistência aos totalitarismos e ao pensamento único dominante que, aqui e ali, nos dita as regras do politicamente correcto.

Favela de Caracas vista acima do túnel El Paraíso. (Créditos fotográficos: Wilfredor – pt.wikipedia.org)

Nesta perspectiva, entendo que o eurodeputado Francisco Assis lamente que o grupo parlamentar do Partido Socialista (salvo as excepções de Sérgio Sousa Pinto e de Isabel Oneto) tenha votado contra o reconhecimento da vitória de Edmundo González nas eleições na Venezuela. Decisão política que, a seu ver, constitui “uma grave ofensa à memória de Mário Soares”. Como diria, novamente, Boaventura de Sousa Santos, também “pensamos com a nossa ignorância desde que tenhamos consciência dela, com as nossas dúvidas desde que não as convertamos em cinismo”. Embora afastados dessa realidade – aliás, Nicólas Maduro vetou a entrada dos observadores da União Europeia para assistir às eleições presidenciais –, todos sabemos ou deveríamos saber quando se agudizou a crise venezuelana, impondo a pobreza e a saída de milhões de pessoas do seu país.

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Nota:

O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 20 de Outubro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

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21/10/2024

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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