Os riscos de pensar contra a corrente

(Créditos de imagem: Gerd Altmann – Pixabay)
“Pensamos com o nosso saber e na nossa língua, mas também com o nosso corpo, a partir das nossas raízes, com as nossas emoções, no lugar e no tempo onde nos situamos”, começa por dizer Boaventura de Sousa Santos, num seu artigo publicado no JL (Jornal de Letras), em 6 de Abril de 2022, que agora recupero para me ajudar a reflectir sobre o que é estar em contracorrente.
Quando pretendo dar corpo e sentido a esta crónica, leio, já noutro espaço jornalístico, que Portugal não tem um plano nacional para a biodiversidade e que ainda não actualizou a estratégia neste domínio, enquanto a bióloga Maria Amélia Martins-Loução (presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia) constata que as questões da Natureza “não poderiam estar mais ausentes do debate público”.

Na véspera da 16.ª Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP 16), que se realiza em Cáli (a terceira cidade mais populosa da Colômbia), a professora catedrática da Universidade de Lisboa declara que, do “ponto de vista político, não se vê a atenção, o cuidado e a importância da biodiversidade como se vê com o clima”, denunciando, assim, “a influência do ‘lobby’ do agronegócio nas questões da biodiversidade”. O olival intensivo que se apossa do Alentejo, graças às águas desviadas do Alqueva, é um inequívoco mau exemplo, a juntar a outras produções em monocultura e à insistente escolha dos produtores e dos accionistas com interesses na indústria da celulose em reflorestar os territórios com mais eucaliptos.

Por isso, a jornalista Aline Flor dá destaque ao aviso de Maria Amélia Martins-Loução: “Sem biodiversidade não existe negócio, não existe PIB, não existe alimentação nem saúde.”
Ao querer justificar esta curta narrativa, que resulta da observação e das leituras que faço no lugar e no tempo em que me situo, medito sobre os riscos que cada um de nós assume ao perpassar um espaço de construção contra as pandemias da violência, da inanidade e da iniquidade. Como escreve Albert Camus, no seu romance “A Peste” (publicado em 1947), a “partir do momento em que a nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode dizer-se que tudo corre pelo melhor”. “Sob este aspecto, sem dúvida, a vida não é muito emocionante”, observa o reconhecido pensador do século XX, que nos lega muitas das suas reflexões sobre a condição humana.
Retomando o artigo de Boaventura de Sousa Santos, que muito tem estudado sobre a sociedade e os padrões de relações sociais, o académico verifica: “Pensar é, pois, difícil sempre que não se trate de repetir o que outros pensam ou que já esteja pensado.” De facto, não é simples nem seguro estar “fora da caixa”, sobretudo, na resistência aos totalitarismos e ao pensamento único dominante que, aqui e ali, nos dita as regras do politicamente correcto.

Nesta perspectiva, entendo que o eurodeputado Francisco Assis lamente que o grupo parlamentar do Partido Socialista (salvo as excepções de Sérgio Sousa Pinto e de Isabel Oneto) tenha votado contra o reconhecimento da vitória de Edmundo González nas eleições na Venezuela. Decisão política que, a seu ver, constitui “uma grave ofensa à memória de Mário Soares”. Como diria, novamente, Boaventura de Sousa Santos, também “pensamos com a nossa ignorância desde que tenhamos consciência dela, com as nossas dúvidas desde que não as convertamos em cinismo”. Embora afastados dessa realidade – aliás, Nicólas Maduro vetou a entrada dos observadores da União Europeia para assistir às eleições presidenciais –, todos sabemos ou deveríamos saber quando se agudizou a crise venezuelana, impondo a pobreza e a saída de milhões de pessoas do seu país.
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 20 de Outubro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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21/10/2024