Partos normais serão assegurados por enfermeiros especialistas

 Partos normais serão assegurados por enfermeiros especialistas

(Créditos fotográficos: Christian Bowen – Unsplash)

Está a criar alguma polémica a orientação n.º 002/3023, de 10 de maio, da Direção-Geral da Saúde (DGS), nos termos da qual os partos considerados normais ou de baixo risco poderão ser assegurados por enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde materna e obstétrica (EEESMO), deixando, assim, de ser feitos, obrigatoriamente, por médicos obstetras.

Esta alteração, constante da referida orientação da DGS – proferida ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto Regulamentar n.º 14/2012, de 26 de janeiro, que define a missão da DGS – resulta de uma proposta da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, liderada por Diogo Ayres de Campos, que estuda soluções para a falta de médicos nesta especialidade, e oficializa uma prática levada a cabo por alguns hospitais, pretendendo solucionar problemas decorrentes da falta de obstetras, anestesistas e pediatras, que agravam a pressão nas urgências obstétricas do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Coordenador da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de
Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos e director do Serviço de
Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Santa Maria, em Lisboa, Diogo Ayres de
Campos. (Créditos fotográficos: Gustavo Bom / Global Imagens – jn.pt) 

Os médicos de Obstetrícia e Ginecologia mantêm-se sempre nos partos mais complexos, para os quais são exigidos instrumentos. Já os partos normais, de baixo risco, são assegurados pelos enfermeiros especialistas, desde o internamento até às primeiras horas de vida do bebé.

O intuito da DGS, segundo o documento-síntese da orientação, desdobra-se em uniformizar os cuidados de saúde hospitalares, durante o trabalho de parto (TP); clarificar o papel dos vários profissionais de saúde intervenientes no TP; e identificar tarefas, autonomias e responsabilidades, promovendo a partilha de um modelo de cuidados comum que favoreça o verdadeiro trabalho de equipa, a segurança e a qualidade dos cuidados prestados durante o TP.

O principal objetivo a atingir é a promoção de cuidados de saúde de qualidade, com foco principal na segurança materno-fetal, bem como numa experiência positiva no parto para a grávida e para a família.

(Créditos fotográficos: Gabriel Tovar – Unsplash)

Os cuidados de saúde durante o TP devem ser assegurados por uma equipa multidisciplinar, com a clara definição de atividades, de tarefas e de responsabilidades dos diferentes intervenientes, tendo em conta as competências legalmente estabelecidas, de acordo com os riscos de saúde individuais de cada parturiente e com a necessidade de resposta a cada momento. 

O principal objetivo a atingir é a promoção de cuidados de saúde de qualidade, com foco principal na segurança materno-fetal, bem como numa experiência positiva no parto para a grávida e para a família

Por fim, a orientação, subscrita pelo Dr. Rui Portugal, subdiretor-geral da Saúde, preconiza que a avaliação da implementação do presente instrumento deve ser contínua e executada através das Direções Clínicas Hospitalares e das Direções dos Serviços de Obstetrícia e Ginecologia. 

Em suma, é clarificado o papel da cada profissional de saúde nos trabalhos de partos de baixo risco (que se estima serem 80%) e nos que exigem maior vigilância. O enfermeiro especialista passa a assegurar o internamento da grávida em trabalho de parto de baixo risco, sendo, preferencialmente, o responsável pelo parto. Só nos casos em que o TP for considerado mais complexo é que é chamado o médico (obstetra, anestesista e pediatra).

Rui Portugal, subdiretor-geral da Saúde. (© DGS)

Segundo a orientação da DGS, “deve ser privilegiada a rentabilização dos recursos humanos e o desenvolvimento das competências de toda a equipa de saúde”, de modo a concretizar o intuito e objetivo estabelecidos.

No entanto, apesar destas alterações, Diogo Ayres Magalhães, ouvido pelo Jornal de Notícias, tem dúvidas de que esta orientação da DGS ajude a aliviar as equipas médicas, que já estão muito reduzidas. Permitirá, não obstante, rentabilizar os recursos humanos, quando faltam médicos especialistas em muitos hospitais do país.

***

A matéria não é nova, embora pareça que terá surgido de repente. Com efeito, a 6 de julho de 2022, a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica da Ordem dos Enfermeiros (OEnf), estribada num documento da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 1996, entregava à ministra da Saúde, na sequência dos constrangimentos severos a que se vinha assistindo, a Tomada de Posição n.º 1/2022, sobre o parto fisiológico saudável e normal – centros de parto normal.

O documento defendia a criação de centros de parto normal junto dos serviços de obstetrícia, como propõe a OMS, como forma de rentabilizar os recursos humanos, designadamente os EEESMO, e garantir a acessibilidade aos cuidados de saúde materna e obstétrica.

Tal modelo permitiria que os hospitais com centros de parto normal – conceito constante do referido documento da OMS, em 1996 – necessitassem de menos médicos de apoio à sala de partos, libertando também médicos e enfermeiros de família das consultas de gravidez, que devem ser realizadas pelos EEESMO das Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC). É a própria OMS que reconhece que os EESMO “podem lidar com a maioria das gestações com segurança e têm as habilidades para encaminhar situações complexas a um médico”.

(Créditos fotográficos: Gabriel Tovar – Unsplash)

“Este modelo seria, por isso, o garante da continuidade dos cuidados, entre o pré-natal e o pós-natal, por exemplo, na assistência na amamentação e na recuperação pós-parto”, defende a Ordem dos Enfermeiros, lembrando que Portugal dispõe de um número significativo de EEESMO, técnica e cientificamente reconhecidos, habilitados com as competências decorrentes da Diretiva n.º 2005/36/CE de 7 de setembro, transposta pela Lei n.º 9/2009, de 4 de março, e pelo Regulamento n.º 391/2019, de 3 de maio.

Os centros de parto normal constituirão, assim, oportunidade para rentabilizar os recursos e contribuir para uma experiência positiva de parto.

Segundo a OMS e a OEnf, os centros de parto normal surgiram com o objetivo de resgatar o direito à privacidade e à dignidade da mulher durante o TP e no pós-parto, num local semelhante ao seu ambiente familiar, e de garantir cuidados seguros, oferecendo-lhe recursos tecnológicos apropriados em casos de eventual necessidade. Espera-se que disponham de um conjunto de elementos destinados a receber a parturiente e seus acompanhantes, permitindo um TP ativo e participativo, com recurso a práticas baseadas em evidências recomendadas.

***

Conhecida que foi a orientação da DGS, a Ordem dos Médicos (OM) agendou uma reunião de urgência, de que resultou o propósito de pedir a revogação imediata de tal documento.

Em comunicado, a OM, que alega ter tomado conhecimento da orientação da DGS pela comunicação social, refere que a revogação será pedida “em prol de um processo que seja discutido, inclusivo e transparente, e que garanta a melhor qualidade dos cuidados de saúde às mães e às crianças”.

O bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, assumiu o cargo a 16 de
março de 2023 para um mandato de três anos.
(Créditos fotográficos: Fernando Fontes / Global Imagens – dn.pt)

Segundo o comunicado, a OM não esteve na origem da decisão, não se revendo no documento, porque, alegadamente, os médicos nomeados não foram ouvidos durante o processo. E diz a ordem: “Os membros indicados pelo Colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos apresentaram a sua demissão da referida comissão, assim como os representantes dos colégios de anestesiologia e de pediatria, não estando, nestas circunstâncias, considerada a sua substituição.”

A instituição liderada por Carlos Cortes criticou ainda não ter sido previamente remetida à OM o relatório final da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia e Obstetrícia e Blocos de Parto, para efeitos de pronúncia técnica.

“É absolutamente lamentável que a OM não tenha sido consultada antes da tomada de decisão, sobretudo porque se trata de uma questão com impacto dos cuidados de saúde e da segurança das mães e das crianças”, vincou o bastonário, citado no comunicado, dizendo que o facto de o Ministério da Saúde e a DGS terem excluído a OM do documento final é falha difícil de entender.

Entretanto, a DGS contraria a versão da OM, dizendo que os médicos estiveram no processo “desde o início até ao fim dos trabalhos”, tendo aprovado o documento final. Segundo a DGS, a OM nomeou, ao todo, cinco médicos. O documento, segundo a DGS, “foi validado por todos os elementos”. “Enquanto entidade técnico-normativa, e tal como nas orientações até agora publicadas, a DGS constituiu um grupo de trabalho com representantes de diferentes entidades, nomeadamente de Ordens Profissionais, e respetivos Colégios das especialidades envolvidas, bem como de sociedades científicas”, afirmou a DGS.

Devo apontar que não é raro, nesta sociedade hipercrítica e pouco audaz, elementos que participam num projeto, ao perceberem que o mesmo não é bem aceite, virem dizer que nada tiveram a ver com o assunto.

***

Como a propósito de outras matérias, é apontada à OM a atitude corporativista sob a capa da qualidade. Aliás, mencione-se a primeira ordem profissional que não raciocine segundo os seus interesses! E mal é quando se sobrepõem ao interesse geral. Porém, desta feita, a DGS desmente a OM e os médicos obstetras parecem estar do lado da DGS.

(Créditos fotográficos: Luma Pimentel – Unsplash)

À primeira vista, parecerá que estamos perante um retrocesso. E estamos de facto e não só por estas alterações. Não podemos esquecer que o interior do país não teve igual acesso ao acompanhamento na saúde materna e na saúde infantil por parte do SNS. Em muitos lugares, andou-se para trás. Ainda me lembro de os médicos irem às escolas fazer saúde escolar e de os centros de saúde distribuírem leite às criancinhas. E pessoas que tinham necessidade de acompanhamento de obstetra e de pediatra deslocavam-se à capital do seu distrito e pagavam consulta privada.

Sem me ater à preconização das equipas multidisciplinares de que fala a DGS (neste aspeto, estamos perante uma orientação-cartaz), entendo que é melhor ser atendido por alguém do que andar quilómetros e quilómetros para ser atendido

Nos últimos tempos, profissionais de saúde têm dificuldade em estabelecer-se e em manter-se no interior, onde faltam muitas coisas; muitos médicos e enfermeiros saem do setor público (que não remunera satisfatoriamente e não dá perspetiva de carreira) para o privado, onde a remuneração é mais compensatória, ao menos no imediato. E não há coragem política para inverter a situação, permitindo que a saúde seja tratada como mercadoria: quanto mais faturar a instituição, mais satisfeita se apresenta. Todavia, nem sempre o serviço é satisfatório, apesar de bem publicitado.

Nos últimos tempos, os profissionais de saúde têm dificuldade em estabelecer-se e em manter-se no interior do país.
(Créditos fotográficos: dinamateus1 – Pixabay)

Embora se deva pugnar pelas condições do parto em circunstâncias de privacidade e da normalidade do que é viver em família, devemos estar de sobreaviso para a hipótese de, repentinamente, um parto considerado normal se complicar.

Em todo o caso, parece-me temerário querer, desproporcionadamente, mobilizar uma plêiade de especialistas para um episódio que, em princípio, é natural e normal.

No atinente ao papel de cada profissional, é de referir que, embora um percurso académico longo forneça um volume de conhecimento científico e tecnológico maior do que um percurso académico mais breve, hoje, os enfermeiros são dotados de um patamar de conhecimento e de experiência considerável. Não são meros técnicos, como alguém pode supor. Por isso, sem me ater à preconização das equipas multidisciplinares de que fala a DGS (neste aspeto, estamos perante uma orientação-cartaz), entendo que é melhor ser atendido por alguém do que andar quilómetros e quilómetros para ser atendido. E é uma vergonha um SNS resignar-se a encerrar maternidades ou blocos de partos ou ter serviços a funcionar alternadamente. Assim, qualquer um pode ser ministro da Saúde, diretor-geral ou coisa que o valha.

.

25/05/2023 

Siga-nos:
fb-share-icon

Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

Outros artigos

Share
Instagram