Persistir na felicidade

 Persistir na felicidade

Tal como Sebastião da Gama escreveu um dia, também o jovem David Canjamba se fez ao caminho porque “é pelo sonho que vamos”. Da sua Benguela de águas sonhadoras, mas onde a realidade o é menos, o jovem angolano veio para Portugal em busca do sonho de uma vida nova e diferente. Nem tudo correu como desejava, porque nem sempre os sonhos se realizam por completo. Esta é a breve estória de um percurso de vida feito de altos e baixos e onde os efeitos da covid também estão presentes.

Os capítulos de novos dias são escritos ao sabor do inesperado, da novidade, da combinação de fatores e realidades. Porém, as linhas de tais momentos são igualmente delineadas pelos valores que edificam o crescimento do Homem. Ainda que por vezes confuso, um dia todos os passos assumem um significado no derradeiro capítulo. Por isso, importa conhecer as estórias redigidas sob batuta da Covid-19, que nem sempre contam a contração do vírus. Ao mesmo tempo, o que significa a realidade oferecida por 2020 para quem se habituou a resolver labirintos?

Na manhã fresca e cinzenta que faz adivinhar um inverno rigoroso, David Canjamba, de 27 anos, abre a porta do apartamento ao sinalAberto. Com histórias e realidades para partilhar, o jovem angolano alto e de barba farta convida a sentar no sofá. Instalado num cadeirão à direita, de olhos fixos na mesa de vidro em frente, começa por contar que partiu de Benguela em janeiro de 2015.

David Canjamba sonhou em viajar para Portugal.

Localizada na região litoral centro do território angolano, na cidade de Benguela conta-se que a origem etimológica está relacionada com “Mbegela”, rei que governou a província antes da chegada dos portugueses. Outrora cobiçada por holandeses e franceses, hoje faz parte da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa e constitui um porto determinante para as exportações de cobalto e cobre no mercado internacional de produção mineira. As suas praias, ricas em plâncton e banhadas por correntes antárticas, promovem o contraste entre a faina dos pescadores e os turistas que sonham com aquele destino. Porque a realidade não se pinta de tranquilidade por terras africanas, e o mar de Benguela não trazia garantias para David Canjamba, este aspirou à felicidade e encetou um novo capítulo.

Ainda que apaixonado pelas suas raízes, onde viveu até aos 22 anos e viu a filha nascer em 2017, David Canjamba revela que sonhou desde adolescente em viajar para Portugal, sobretudo com o objetivo de se formar na área de engenharia e computação na Universidade de Aveiro. Essa ambição resultou da dupla formada pelos irmãos Canjamba no desenvolvimento de plataformas hardware software. Para tal ser possível, o fiel companheiro de David abdicou da carreira militar. A viver na cidade dos moliceiros, o percurso era construído com estabilidade, até que um novo capítulo se abriu, sem avisar, na vida do jovem angolano.

A caminhada académica foi abruptamente interrompida quando, em 2018, David Canjamba recebeu a notícia da morte do seu irmão e o diagnóstico de anemia falciforme na sua filha, com poucos meses de vida. Debruçado sobre as longas pernas, já aterrado no cadeirão e mergulhado em memórias, recorda a decisão de pausar os estudos. Por um lado, o luto gerou uma rutura emocional, dada a fragmentação na parceria projetada pelos irmãos. Ao mesmo tempo, com o fim de conseguir a viagem da filha, Daniela, e da esposa, Laureana, para solo português, David Canjamba procurou uma fonte de rendimento.

Movido pela ambição, e acabado de chegar a Oliveira de Azeméis, foi atraído por uma promessa de sucesso empresarial, na qual assumiu o cargo de gestor comercial e criador de plataformas online. Porém, as esperanças financeiras esfumaram-se com o tempo e caíram por terra quando os factos foram desvendados: “passados seis meses percebi que não existiam documentos, a base legal parecia errada, e existia historial de crime”, revela David Canjamba. Arrependido, mas racional, admite que falhou na investigação dos factos, e que a luta contra o tempo precipitou as decisões.

David Canjamba não cruzou os braços e começou a trabalhar por conta própria na área da consultoria educacional, o que lhe valeu diversos contactos na Península Ibérica.

A resposta crucial no outro lado da fronteira

No mínimo de poupanças, David Canjamba não cruzou os braços e começou a trabalhar por conta própria na área da consultoria educacional, o que lhe valeu diversos contactos na Península Ibérica. De sorriso estampado no rosto meigo, o jovem que antes se aventurava nas praias de Benguela, conta que a esposa e a filha chegaram a solo português em outubro de 2019. Orgulhoso por reunir a família, frisa a importância desse momento para a saúde de Daniela: “os médicos disseram que ela chegou no momento certo, um pouco mais tarde e poderia não resistir por muito tempo”.

A anemia falciforme resulta de uma quantidade anormal de hemoglobina (proteína que transporta o oxigénio) nos glóbulos vermelhos, que se tornam rígidos, menos flexíveis e assumem a forma de uma foice. Este defeito pode originar bloqueios no fluxo sanguíneo e a redução no fornecimento de oxigénio. Numa fase avançada, poderá levar à insuficiência renal ou cardíaca, o que explica as complicações de rins, pulmões e coração já registadas por Daniela, com apenas três anos de idade.

Enquanto passa as mãos na barba farfalhuda, como que a procurar tempo para as palavras certas, David Canjamba frisa que a pandemia é sinónimo de desafios à coragem e resiliência. Porque, explica, o medicamento para a filha apenas existe, por via de receita médica, em Espanha. Numa primeira fase aventurou-se no outro lado da fronteira, numa decisão pragmática em prol da estabilidade de Daniela. Depois, através de contactos estabelecidos na comunidade universitária de Salamanca, e até dezembro do ano transato, uma caixa do antibiótico era assegurada a cada 20 dias. Porém, o aumento de restrições de mobilidade obrigaram à procura de novas estratégias.

A ausência de comercialização em Portugal do medicamento parece evidente para Odília Madaíl. A médica aposentada e elemento da Instituição Teresiana em Portugal esclarece que a inexistência nos laboratórios nacionais está relacionado com os poucos casos registados da doença, mas também com questões económicas, pelo que se entende como desnecessário o reforço do stock. Contudo, ressalva que “as entidades responsáveis deveriam estar atentas às minorias necessitadas”. Odília Madaíl foi, a par dos Vicentinos de Oliveira de Azeméis, a solução para a estabilidade na saúde de Daniela, pois através da ponte com Espanha, onde foi a Instituição Teresiana fundada, não existem entraves à chegada do medicamente até à família angolana.

Orgulhoso por reunir a família, frisa a importância desse momento para a saúde de Daniela: “os médicos disseram que ela chegou no momento certo, um pouco mais tarde e poderia não resistir por muito tempo”.

Renovados motivos para inverter o rumo dos acontecimentos

O tom de voz de David Canjamba torna-se amargo quando a memória pinta com tons carregados a tela de abril. No momento em que havia recuperado de um acidente de trabalho, recebeu a carta que indicou o caminho do lay-off. Enquanto procurava gerir a informação que lia sobre o vírus, preocupava-se também com o degradar da situação financeira. A nula procura de cursos de consultoria educacional e os baixos rendimentos levaram o sono do casal, que teria de encarar os dias “sabendo que não tinha nem um euro”. No limite de “decidir entre comprar comida ou assegurar a saúde da Daniela”, o seu pai saiu à rua para vencer o novo desafio.

Lembra os 20 dias sem contacto com a sua filha.

O passar dos dias fez aumentar a ansiedade e alimentaram as saudades de Angola, dos dias diferentes, em família, na cidade de Benguela. Ainda que Laureana nunca o tenha verbalizado, o seu esposo sabe que as saudades e o desespero foram responsáveis por momentos delicados. Assertivo, lamenta que “o amor não enche a barriga”, e tem consciência de que os desafios consecutivos encontrados desde novembro de 2019 geraram um misto de emoções. “Eu tinha de dar espaço, mas quando nos amamos não abandonamos”, exulta, enquanto bate com a mão esquerda na mesa de vidro, como que a marcar cada palavra que diz.

A persistência, paciência e amor foram determinantes para que no município vizinho, São João da Madeira, as portas da indústria têxtil se voltassem a abrir para David Canjamba, ao passo que Laureana agarrou uma oportunidade num centro de dia. Ainda que se revele receoso quanto à falta de garantias de emprego a longo prazo, ou de rotinas profissionais fixas, o jovem angolano reitera que os desafios deste ano são a prova de que “há sempre uma porta de saída”. De regresso a um estado de grande entusiasmo, quase a saltar do cadeirão, as palavras de alegria atropelam-se para expressar o regozijo em “sair do poço”, sem esquecer as luzes que indicaram o caminho ascendente. Recua no tempo e lembra os 20 dias sem contacto com a sua filha, regra imposta para não colocar em risco o seu estado de saúde. Emocionado, partilha que “a vida é hoje, deduzimos que estamos preparados para os momentos, mas percebemos que precisamos dos outros, em conjunto podemos vencer”.

A composição que espelha a aventura em solo português

Ao escutar muitas vezes o seu nome, Daniela perdeu a vergonha e sentou-se a meu lado no sofá, como que a pedir para partilhar o que já viveu. Curiosa, os olhos tom cacau, que não lembram a areia de Benguela, mas já conhecem alguns amargos de vida, movimentam-se e observam quem visita a casa, com várias questões por colocar. O pai sorri, a menina devolve com uma risada enquanto remexe serena os seus caracóis. O silêncio reina por instantes. Aquela criança é o principal motivo das batalhas dos seus progenitores, que recusam virar as costas às dificuldades.

O jovem angolano revela que nos últimos meses, sobretudo no período de lay-off, se dedicou à edificação do seu primeiro livro, cuja base reside na cidade natal e os capítulos já vividos. “No bairro tem gente grande” é centrado em três campos da Humanidade: o autoconhecimento, a superação e a motivação quotidiana. Antes de expor o seu raciocínio, ajeita-se no cadeirão e volta a pentear a barba rendilhada. Passa, então, à prática. No seu entendimento, face aos problemas a sociedade deve questionar-se “para quê”, e não “porquê”. Recorrendo por várias vezes à alegoria do trampolim, sublinha que os momentos de dificuldade são a oportunidade para “ser uma pessoa grande, pois a experiência permite seguir em frente, dar o salto para fora do poço e renovar o interior”.

Numa nova viagem cronológica, analisa o ano que caminha para o fim e refere, entre risos, a “batalha” pelo papel higiénico nos supermercados, a prova de que as comunidades, ao invés de se preocuparem em adquirir bens de primeira necessidade, estão focadas “em elementos sem significado”. David Canjamba recorda a expressão “ninguém dá nada a ninguém” para rematar que “o medo e a desconfiança caminham juntos e, no medo de ficarem sozinhas”, os cidadãos acabam por, paradoxalmente, não se cuidar entre si.

Os sonhos e os elementos que alimentam a audácia de viver

Agir segundo o que sente não constitui um problema para o angolano que um dia ousou viajar sozinho pelos seus sonhos, longe de saber o que escreveria nas linhas da sua vida. Por isso, transparece toda sua ambição em publicar a obra, sobretudo porque acredita “que é na dificuldade que devemos agir e mostrar que estamos presente”. Na certeza de que “continuamos a viver” assume, com o olhar humedecido, o objetivo de ser uma motivação para os demais. “A Covid-19 ensinou-me a olhar para o mundo e perceber que há quem precise de mim”, revela, sorrindo para a filha. Por isso, almeja um dia regressar à academia, desta feita para estudar na área da pedagogia. O projeto profissional informático foi, por sua vez, encerrado em definitivo.

Faz uma pausa e respira fundo, como que assumindo perante si de que este é o seu caminho, o seu papel na sociedade. Regressa, volta os olhos para o seu interlocutor e recorda, bem-humorado, duas chamadas que havia recebido: uma do pai, que quase o proibiu de rezar, porque “Deus está mau”; a outra de um amigo, que julgava a pandemia resultado de uma brincadeira asiática. Franze a testa e atira: quem manda no mundo? Decidido, argumenta que o livre arbítrio social conduz à mutação da organização ideológica, encetando o debate sobre as criações e respetivas aplicações morais.

Ciente da hora avançada, ainda que o seu interlocutor se mostre interessado, David Canjamba reitera que “apenas o amor compra a vida”. Lembrando tudo o que viveu com Laureana e Daniela, sublinha que o suporte vicentino e teresiano foi “em nome do amor”. Ao mesmo tempo, enaltece o trabalho realizado por quem se encontra na linha da frente hospitalar: “os médicos sabem que correm o perigo de serem infetados, mas também sabem que os outros precisam deles, fazem-no pelo amor”. Respira fundo e acredita que “esta fase do mundo foi para nos ensinar o exercício do amor”.

O momento era o indicado para um abraço ou, talvez, para um bom aperto de mão. A pandemia não o permite e, por isso, agradeci com o olhar. Até à última porta, acompanhados pela pequena Daniela, não existe um tema de conversa, somente a troca de palavras de apreço, pela coragem na partilha e pela oportunidade de falar. Naquela manhã, David Canjamba havia também falado de mim e dos meus colegas, cujo objetivo é ser jornalista, que praticam esse ofício por amor, muitas vezes para dar voz a quem vive escondido no quotidiano social.

O céu permanecia carregado. Também por cá existem momentos distintos, por vezes aleatórios. Sem pretender retirar espaço ao protagonista desta história, aproveito as suas palavras para sublinhar o espaço da resiliência e da coragem nos dias cinzentos. O jovem angolano guardou o calor da família e de Benguela no coração e voou pelos seus sonhos, sem imaginar os desafios que encontraria na nova casa. A pandemia desafia-nos a procurar o trampolim para saltar fora dos poços que atraiçoam os dias, alguns muito fundos. Mas não sozinhos. “Apenas o amor compra a vida”, e David Canjamba continua a viver.


Créditos: Todas as fotografias foram cedidas por David Canjamba.

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Samuel Santos

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