“Pigmalião” e “My Fair Lady”
Um artigo publicado no Diário de Notícias, a 21 de Outubro de 2024, da autoria de João Lopes e intitulado “My fair lady, o canto do cisne do cinema musical”, traz-me recordações de um filme difícil de esquecer.
No dia 21 de Outubro do corrente ano, completou-se 60 anos desde a sua estreia (em 1964). O filme “My fair lady” foi realizado por George Cukor e interpretado por Audrey Hepburn e Rex Harrison. O argumento é uma história baseada na peça “Pigmalião”1 (“Pygmalion”), de George Bernard Shaw, publicada em 1912.
Entre a peça e o filme de 1964, há um anterior filme (de 1938) que influenciou a obra de Cukor. E um musical que a inspirou largamente. De modo que o filme de que, aqui, falamos tem vários trechos com músicas vindas do musical. O género musical, tão em voga nos anos 50 e 60, teve nesta fita mais um êxito cinematográfico. Se a tradição do musical foi um género que, no cinema de Hollywood, encontrou um lugar de destaque, devemos assinalar que as fitas musicais existiram desde sempre na sétima arte. Na Europa com certeza, sobretudo no cinema alemão, no cinema francês e no cinema austríaco, tendo este quase desaparecido depois da II Guerra Mundial, devido ao êxodo massivo dos seus criadores, na maior parte, para os Estados Unidos da América.
São recordações de um filme perfeito, difícil de repetir ou de imaginar numa nova versão ou num “remake”, na gíria cinematográfica. Pela interpretação dos seus protagonistas, pela elegância do guarda-roupa, pelo requintado ambiente londrino recriado nos estúdios, assim como pela fabulosa cena da corrida de cavalos, magnificamente filmada, numa ambígua e excelente mistura entre o teatro e o cinema.
O mais perfeito e glamoroso deste musical foi alcançado, com êxito, no belo colorido da fotografia. Inesquecível é a abertura do filme, com um genérico no qual predominam as cores brilhantes de diferentes flores. O genérico (parte inicial do filme para indicação do título, dos actores principais, do produtor, do argumentista, do realizador, entre outras informações e créditos) é a introdução a um dos elementos importantes da dramaturgia. A personagem central é uma “inculta” vendedeira de flores, cuja pronúncia “cockney” – dialecto típico da região de East End, em Londres (ou seja, que particularizou a variante Cockney English) – denuncia as suas origens humildes de uma zona de trabalhadores e da classe operária dos arrabaldes de Londres. Devo dizer que, na versão musical, se perdeu em parte o transfundo social tão rico nos diálogos que o autor George Bernard Shaw apresenta no seu original, em “Pygmalion”.
Pigmalião ou Pigmaleão, na mitologia grega, foi um rei da ilha de Chipre que, segundo o poeta romano Ovídio, também era escultor, o qual se apaixonou por uma estátua (Galateia) que esculpira, ao tentar reproduzir a mulher ideal.
A peça, além de ser uma (des)construção e transformação de uma mulher, é a transferência de virtudes e de virtualidades (ou de capacidades) entre os dois protagonistas: se Eliza aprende foneticamente a falar bem ou correctamente, o professor Higgins aprende a descobrir os seus sentimentos Ambos são esculpidos (como no original mítico) pela trama excelentemente dialogada por Bernard Shaw.
O filme ganhou várias estatuetas douradas. E se Audrey Hepburn não foi seleccionada, enquanto intérprete, como melhor actriz, foi apenas pelo facto de a sua voz ter sido dobrada pela actriz e cantora Marni Nixon.
A peça teatral já tinha sido estreada em Londres antes da versão cinematográfica, sendo numa delas a personagem de Eliza interpretada pela actriz de “Música no Coração” (em 1965), a bela voz de Julie Andrews.
A actriz Julie Andrews não foi a escolhida para a versão cinematográfica e contam – já li isso – que, em troca, lhe ofereceram o papel principal de “Mary Poppins”, da Disney cuja realização é do mesmo ano de “My Fair Lady”.
.
George Bernard Shaw (1856-1950)
Dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e jornalista irlandês, George Bernard Shaw foi co-fundador da London School of Economics e também o autor de comédias satíricas de espírito irreverente e inconformista. Shaw irritou-se com o que percebeu ser a exploração da classe trabalhadora. Socialista ardente, escreveu muitos folhetos e discursos para o Socialismo Fabiano. Tornou-se um orador dedicado à promoção das suas causas, que incluíam ganhar direitos iguais para homens e para mulheres. Foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, em 1925.
Como dramaturgo, as suas obras são extremamente interessantes e ricas em diálogos de grande imaginação, criatividade e humor. No entanto, é um autor esquecido nos palcos do Mundo. E nas escolas, acredito que os alunos de Teatro nunca ouviram falar dele.
Entre as suas peças mais famosas, destaca-se “A profissão da Sra. Warren”, que foi escrita entre 1893 e 1894, na qual aborda o conflito entre uma mãe, que é dona de uma rede de prostíbulos, e a sua filha, que desconhece a origem da fortuna familiar.
Outra obra que merece referência é “Caesar and Cleopatra” (“César e Cleópatra”), peça em quatro actos, escrita em 1898 e publicada em 1901, tendo sido considerada o primeiro grande êxito literário do autor.
Quanto a “Santa Joana”, trata-se de uma peça sobre a figura militar francesa do século XV, Joana d’Arc. Estreada em 1923, três anos após sua canonização pela Igreja Católica Romana, a peça reflete a crença de Bernard Shaw de que as pessoas envolvidas no julgamento de Joana d’Arc agiram de acordo com o que achavam certo no momento histórico do julgamento. No epílogo, ainda ouvimos o pensamento do autor no texto final: “Ó Deus que fizestes esta bela terra, quando estará ela pronta a aceitar os teus santos? Até quando, Senhor, quanto tempo?”
A versão de “Pygmalion” é um filme do Reino Unido, de 1938, realizado por Anthony Asquith e Leslie Howard, e com guião cinematográfico de George Bernard Shaw (juntamente com W.P. Lipscomb, Cecil Lewis e Ian Dalrymple), baseado na sua peça de teatro homónima. A música é do compositor Arthur Honegger e a montagem de David Lean, o qual seria, mais tarde, o realizador de “Lawrence da Arabia”.
As personagens centrais foram interpretadas por Leslie Howard e Wendy Hiller.
Leslie Howard ficou mundialmente conhecido pelo papel de Ashley Wilkes, no filme “E Tudo o Vento Levou”, de 1939. Morreu em 1943, num voo entre Lisboa e Bristol. O avião foi abatido por um esquadrão de bombardeiros nazis no Golfo da Biscaia. Leslie Howard estava entre as 17 vítimas. A queda do avião está envolvida em mistério desde então. Há várias teorias que tentam explicar o motivo pelo qual os nazis abateram um avião civil.
Na plataforma YouTube, podemos ver uma versão holandesa, de 1937, realizada por Ludwig Berger. E ainda a versão inglesa, de 1938, que pode ser vista na íntegra com legendas em Espanhol.
Voltando à origem do artigo, todos sabemos o que representa o “canto do cisne”, uma morte anunciada, em quase êxtase, através do canto. Se, realmente, o filme de George Cukor pode considerar-se o fim de um tipo de cinema musical, não devemos esquecer que, a seguir, apareceram novos musicais. Basta mencionar um dos mais famosos e também, para mim, um filme perfeito: “West Side Story”, um musical de Jerome Robbins, com música de Leonard Bernstein e realização de Robert Wise, em 1961. Recorde-se que, em 2021, teve uma nova versão de Steven Spielberg.
Mas há mais: “Les parapluies de Cherbourg”, de 1964, do francês Jacques Demy; “Camelot”, filme musical, de 1967; “Funny Girl”, de 1968; “Chitty Chitty Bang Bang”, de 1968; “Cabaret”, de 1972; “Yentl”, de 1983; “Chicago”, de 2002; e as várias versões do tema “Nasce uma estrela”, entre elas, as de 1932, de 1937, de 1954, de 1976, de 1990 e de 2000, sendo a última de 2018.
Nos meus felizes anos de vida, na Ilha da Madeira, convivi quase diariamente com a família dos fotógrafos da Casa Perestrello (dada a proximidade do Teatro Municipal do Funchal, onde eu estava a trabalhar). Aí, pude admirar os belos retratos de Bernard Shaw, assim como de Winston Churchill pintando no Reid’s Palace Hotel, entre outros, na Casa Vicente, também propriedade de outros meus amigos, onde contemplei a bela fotografia da Imperatriz Sissi (Isabel da Baviera), na sua estadia na ilha da Madeira.
Não resisto a partilhar esta bela foto de George Bernard Shaw, numa lição de tango. O espólio dos Perestrello faz parte do Museu de Fotografia da Madeira.
18/11/2024