Por que cresce a extrema-direita?

 Por que cresce a extrema-direita?

(Créditos fotográficos: Jon Tyson – Unsplash)

Por que cresce, hoje, a extrema-direita em todo o Mundo? Muitas pessoas pensam que isso acontece porque há uma incapacidade por parte dos partidos moderados, de centro-esquerda, em resolver os problemas mais básicos da sociedade: o desemprego, a habitação social, a renda de casa, o aumento da pobreza e da desigualdade, as questões de saúde e de educação, o agravamento da inflação, o aumento dos preços da energia e dos bens de consumo, a crise ambiental, entre outros. É ainda convicção geral de que tais problemas se agravaram com a recente pandemia da covid-19 e com os focos de guerra, a nível planetário.

Manifestação em Marburg, na Alemanha. (Créditos fotográficos: Christian Lue – Unsplash)

Admitindo que essas razões possam ser verdadeiras, a razão principal do crescimento da extrema-direita pode, contudo, radicar no facto de que os partidos de centro-esquerda e os liberais moderados estejam cada vez mais isolados das sociedades, porque, muitas vezes, defendem apenas as elites que se servem do povo e que só pensam nele nas horas do voto. Tais partidos são, hoje, acusados – e, talvez, até com certa razão – de promoverem somente políticas compensatórias, as quais se limitam a criar uma falsa sensação de distribuição dos bens comuns das sociedades.

E, neste clima, os partidos vigentes no poder não conseguem convencer os seus eleitores. Assim, as massas de trabalhadores são facilmente atraídas pelos slogans da extrema-direita, que lhes acena com discursos nacionalistas e moralistas, com apelos aos valores religiosos tradicionais conservadores, em que a palavra “Deus” ocupa o lugar de destaque. Acresce ainda que, além do uso desta linguagem, tais partidos apostam no discurso anti-sistema, em promessas de solução heterodoxas e, sobretudo, no populismo exacerbado.

Os resultados estão, actualmente, à vista em todo o Mundo.  Os extremistas de extrema-direita são os herdeiros dos que outrora faziam a “guerra santa”. Tal como no passado, hoje, também não olham a meios para alcançarem os seus fins: a conquista do poder. São verdadeiros peritos no uso de fórmulas simples, quantas vezes vazias de conteúdo, mas com slogans que ficam facilmente no ouvido. São useiros na linguagem manipuladora e no discurso travestido de moralismo e de conservadorismo bafiento. Não será por acaso, certamente, que os grupos extremistas religiosos nos Estados Unidos da América (EUA) ou no Brasil – evangélicos, católicos, judeus, ortodoxos – são contingentes por excelência da extrema-direita e que, na actualidade, estão na primeira linha de assalto ao poder em todo o Mundo.

(Créditos fotográficos: Unseen Histories – Unsplash)

Outrora, o filósofo Immanuel Kant, esse símbolo do Iluminismo europeu, acreditou que a Humanidade poderia chegar à perfeição. Mas Kant esqueceu a força da manipulação sobre as massas e os seus efeitos perniciosos. Hoje, muitos autores pensam que a política de implementação de políticas compensatórias – já referidas anteriormente, as quais permitem mitigar a pobreza e a desigualdade, ou a recuperação de emprego ou de outros benefícios dos mais pobres – são insuficientes. Dizem alguns que são, até, contra-producentes, porquanto vão, apenas, adiando as verdadeiras reformas sociais estruturantes, as únicas que poderão levar à eliminação dos mecanismos que produzem as desigualdades entre os povos e entre as nações. Afirmam também alguns analistas que a extrema-direita age, actualmente, com objectivos claros, enquanto a esquerda não tem projectos alternativos convincentes que levem os eleitores a colaborar na construção de uma outra ordem. Então, para derrotar o cinismo da direita, só resta que a esquerda seja capaz de enfrentar os desafios da direita, apresentando novos projectos sociais verdadeiramente alinhados com as necessidades do tempo presente.

(Créditos fotográficos: Asael Peña – Unsplash)

Não será totalmente verdade que as correntes de esquerda não sejam capazes de enfrentar os novos desafios sociais. Todos conhecemos, decerto, programas de partidos políticos nacionais e internacionais com propostas exequíveis.  Algumas mesmo, em certos contextos, são propostas vencedoras. Mas hoje, contudo, a força dos media é grande e, por norma, quer nacional quer internacionalmente, esses meios pertencem a grandes grupos económicos, frequentemente conotados com o capitalismo. Portanto, apostados em não veicular as ideias progressistas. 

Como defendeu Álvaro García Linera, que foi vice-presidente da Colômbia, numa conferência dada na Universidade de La Plata, na Argentina1 e que lemos recentemente: “[…] as direitas autoritárias, aliadas ao grande capitalismo reinante[,] assumem-se como porta-estandarte de uma ‘sagrada cruzada económica’ para salvar o mercado e a ‘liberdade’ contra qualquer indício de estatismo ou cole[c]tivismo, e como parte de uma regeneração espiritual para restabelecer a própria ordem moral do mundo, começando pelo pater familias [em] casa, o patrão na empresa, a pele branca na história nacional e Deus no control[o] das almas.”

Donald Trump (commons.wikimedia.org)

Se pensarmos em casos muito recentes, encontramos vários exemplos de políticos que misturam esse apego aos preceitos neoliberais com a ideia de uma pátria em que só alguns podem ser proprietários. Vejam-se os casos de Donald Trump (nos EUA), de Jair Bolsonaro (no Brasil) e de Santiago Abascal (em Espanha). Outros aparecem como promotores de receitas de mercado livre e de receitas milagrosas. Como são os casos de José Antonio Kast (no Chile), de Javier Milei (na Argentina), de Giorgia Meloni (em Itália) ou de Marine Le Pen (na França).  Ainda segundo o já citado Álvaro García, “consideram que existe uma ordem natural da humanidade que emerge unicamente das regras do mercado e que qualquer desvio desta não é apenas ineficiente, mas prejudicial e ofensivo. Cole[c]tivamente odeiam o Estado, propõem a redução dos impostos sobre os ricos e juram que os direitos cole[c]tivos são um roubo e que qualquer bem público deve ser privatizado”.

Álvaro García Linera (pt.wikipedia.org)

Na já citada conferência de Álvaro García Linera, este enumera algumas razões que podem explicar o crescimento da extrema-direita e que passaremos a sintetizar.

O autor defende, em primeiro lugar, que a extrema-direita é autoritária, mas não é democrática; e que, se for necessário, recorre à violência para alcançar as suas metas. Comportamentos recentes de Bolsonaro e de Trump estão, aí, para o comprovar. Para este tipo de políticos, “a democracia não é um princípio inegociável, senão um meio provisório e meramente instrumental para alcançar [as] suas metas de promover o mercado e as sacrossantas hierarquias racializadas dos vencedores”. Além disso, “acreditam que a democracia premiou uma maioria incompetente e ignorante e que, por razões de ‘saúde pública’, é necessário enfiá-la à força nas virtudes do individualismo, do mercado e da lei do mais forte.”

Manifestação em Minsk, capital da Bielorrússia. (Créditos fotográficos: Jana Shnipelson – Unsplash)

Em segundo lugar, Álvaro García defende que os tempos de crise são sempre favoráveis ao crescimento do autoritarismo da extrema-direita. Quando a frustração se instala entre as classes populares, o populismo galopa. Quando “uns lutam por manter as coisas como estão, outros consideram que é preciso ceder parte dos benefícios para aplacar as classes mais pobres, enquanto outros consideram que é preciso cerrar os punhos e defender a velha ordem com renovadas doses de autoridade”.  Por outro lado, o autor argumenta que, “ao invés da sedução[,] defendem a sanção, o castigo e a vingança contra aqueles que consideram como responsáveis dessa desordem, tanto económica como moral: sindicatos ‘gananciosos’, imigrantes que ‘roubam” empregos’, mulheres que ‘exageram’ em seus direitos, indígenas ‘igualados’, comunistas que envenenam almas, etc.”.

(opiniaotriunfodigital.blogspot.com)

O autor enuncia uma terceira hipótese. A seu ver, a extrema-direita é, apenas, outra face do centro-direita. Segundo ele, “são as direitas fracassadas que alimentam a extrema-direita”. “Não há necessidade de conversão de crenças, já que se trata simplesmente de uma transição para posturas mais firmes. Ao fim e ao cabo, as direitas moderadas[,] nos seus tempos de glória[,] também abraçaram o livre mercado, a austeridade fiscal, a redução dos impostos e o controle salarial, como demandam agora as direitas autoritárias. Só que as primeiras compreendiam que[,] para essas políticas serem duradouras[,] era preciso amortizar o ajuste com políticas sociais pontuais, garantir o gotejo da riqueza para alentar o consumo e tolerar um ou outro progressismo cultural”, acrescenta. E todos conhecemos a consequência óbvia: os eleitores de centro-direita engrossam agora as fileiras da extrema-direita, seduzidos pelas suas promessas.

Uma quarta hipótese apresentada por este autor é a de que a extrema-direita cresce como uma reacção material e moral à desigualdade. Quando as políticas progressistas falham “aumenta o desemprego, a riqueza concentra-se em muitas poucas mãos, caem os salários e as oportunidades de crescimento ficam truncadas”. E, nestes contextos, alega ainda o autor que “as pessoas encontram-se disponíveis a revogar antigas crenças e [para] aderir a outras novas”, associando-se mais facilmente às propostas enganadoras da direita.

(thomasvconti.com.br)

Uma quinta hipótese avançada pelo autor sustenta que a extrema-direita cresce pelas decepções criadas pelas próprias políticas progressistas: “As pessoas apoiam as esquerdas e os progressismos porque experimentaram na própria carne o abuso e o empobrecimento neoliberal. Mas, se o progressismo, que chega ao governo prometendo bem-estar e proteção, não cumpre o que prometeu ou piora as condições de vida das classes populares, o que se produz inicialmente é um colapso cognitivo de adesões e [de] esperanças.” Com efeito, “as crenças diluem-se, o desânimo e o descontentamento inundam tudo. Os humildes sentir-se-ão traídos e, então, buscarão agarrar-se a qualquer nova solução que lhes devolva a certeza imaginária de um futuro e que permita punir aqueles que os defraudaram.”

Álvaro García Linera não tem dúvidas e alega que as classes populares não podem suportar mais a incerteza de um futuro que não aparece e, por isso, precisam agarrar-se a algo que lhe devolva um mínimo de crença em dias melhores.  E pode ser qualquer coisa, desde que seja diferente do que estão sofrendo agora. Neste contexto, as pessoas acreditam que é melhor que o possam fazer distanciando-se daqueles que os desiludiram, rejeitando o que representam: a protecção do Estado.

(Créditos fotográficos: Unseen Histories – Unsplash)

Em conclusão, para o autor, só há uma solução credível para combater a extrema-direita. Ou seja, esta só será derrotada se formos capazes de sair da crise económica com maior igualdade material, com melhor redistribuição da riqueza e bem-estar popular. Para ele, “a única maneira de derrotar a extrema-direita, de impedir que cresça, é resolver a crise económica e a crise de esperança que alimenta”. Por conseguinte, pensa que é “preciso resolver a crise, mas não em favor dos ricos, mas em benefício comum dos pobres, dos trabalhadores”. Convém, por isso, tomar “a riqueza acumulada em poucas mãos para distribuí-la melhor entre as pessoas comuns e aumentar a produção para produzir mais riqueza a ser distribuída entre todos”, porque os “paliativos temporários não resolvem o problema e incentivam a angústia”. Para este autor, hoje, o mais importante será criar uma base produtiva duradoura e ecologicamente sustentável para redistribuir a riqueza comum da sociedade e para ampliar novos direitos colectivos. Ao fazê-lo, simultaneamente, será possível promover um novo horizonte de futuro mobilizador e garantir a adesão democrática da população, para que a democracia e o protagonismo social estejam associados à igualdade e à justiça económica. E, também por isso, no final da sua conferência, o voto formulado só podia ser este: “Oxalá, nesse enorme turbilhão de forças contraditórias, as forças da justiça social, da igualdade radical e da comunidade triunfem sobre as do egoísmo, da grande propriedade e do autoritarismo.”

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Nota:

1 – Álvaro García Linera, Por que a extrema-direita cresce no mundo. In Jacobina, jornal on-line.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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04/07/2024

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José Vieira Lourenço

José Vieira Lourenço é da colheita de Agosto de 1952. Estudou Teologia e fez a licenciatura e o mestrado em Filosofia Contemporânea, na Universidade de Coimbra. Professor aposentado do Ensino Secundário, ensinou Português, Filosofia, Psicologia, Sociologia, Teatro e Oficina de Expressão Dramática. Foi, igualmente, professor do Ensino Superior, na Universidade Católica de Leiria e no Instituto Superior Miguel Torga, em Coimbra. Foi ainda coordenador do Centro da Área Educativa de Coimbra (1998-2002) e só então conheceu verdadeiramente a classe docente. Descobriu bem cedo a sua paixão pela poesia, pela literatura, pela música e pelo Teatro. Foi Menino Jesus aos quatro meses no presépio vivo da sua freguesia. Hoje, como voluntário, dirige o Grupo de Teatro O Rebuliço da Associação Cavalo Azul e também o Grupo de Teatro de Assafarge. Canta no Coro D. Pedro de Cristo, em Coimbra. Apaixonado pela Natureza, gosta de passear a pé pelos trilhos da Abrunheira, na companhia do seu cão. Dedicado às causas da cidadania, é dirigente do Movimento Cidadãos por Coimbra, que insiste em fazer propostas para criar uma cidade diferente. Casado, tem duas filhas e uma neta, a quem gosta de contar histórias.

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