Rezinga e Zazá

Ilustração: Sandra Serra
(*)
O avô Raul, em determinado verão, andava arreliado com o trabalho de uma laboriosa toupeira.
– A malvada já me fez mais uma dezena de montes na horta. Traçou-me as raízes das dálias e das couves. Está tudo minado! – lamentava-se ele, a coçar a cabeça, com a mão debaixo do boné.
Beatriz adivinhava o que o avô queria dizer com aquelas palavras de queixume, congeminando uma solução para o problema.
– Para a semana, irei à feira comprar uma armadilha para a caçar. Isto tem de acabar! – continuava ele.
Depois, olhou para o gato, deitado sobre o muro da casa, meditativo, com os olhos perdidos no vasto horizonte.
– Que é feito da tua astúcia? Há anos que não caças uma toupeira! Não sei o que se passa contigo. Nãaaa…já não tens a garra de outros tempos! – dizia o avô Raul.
Rezinga esforçara-se por cumprir a vontade do dono, mas desta vez a toupeira revelara-se um ser tão apoquentado, pelo constante trabalho no submundo onde habitava e pelas perseguições de que era alvo, que o gato nutria por ela alguma compaixão e muito respeito.
Nunca esquecera o primeiro encontro com a toupeira.
Estava ele deitado sob um sol quentinho e ameno, deleitado, de barriga cheia, quando, subitamente, pressentiu um movimento no meio do couval. Ficou tão quieto e atento, tal qual uma sentinela. Mais um movimento na terra e, como por magia, um montinho surgiu, assim… do nada.
Rezinga deu um salto astronómico e com as patas esgaravatou energicamente o montículo, na ânsia de encontrar a obreira. Ele sabia ser uma toupeira, pois já conhecia aquele irritante talento e a inevitável embirração que tomava conta dele, naqueles momentos. Mas, por mais que as patas escavassem, não a encontrava.
– Hei de apanhá-la! – cogitava ele. E começou a fazer-lhe espera.
Pensou que, logo que vislumbrasse outro montinho de terra, iria exibir os seus poderes de supergato e caçaria a traquinas, destruidora de hortas e de jardins.
Passaram-se dias e a incansável toupeira ia fazendo um montinho aqui, outro montinho ali… E, ele não conseguia caçá-la. Nem vê-la!
Após as vãs tentativas para a capturar, Rezinga sentia-se vencido. O orgulho começava a turvar-se perante os sinais visíveis daquela espécie de artífice do solo que, entretanto, não se deixava avistar.
Até que um dia…
Ao longe, viu a toupeira a espreitar, curiosa e receosa, com a cabecita de focinho pontiagudo, fora da terra. Os seus minúsculos olhitos pareciam querer, a custo, descortinar algo.
O gato não perdeu tempo, saltou ágil sobre ela e preparava-se já para a abocanhar, quando esta, aterrada, lhe suplicou:
– Gato, gatinho, Rezinga, Rezinguinha, poupa a minha vida, a minha vidinha!
O gato ficou surpreendido ao ouvir a toupeira com a sua vozinha esganiçada e muito persuasiva.
– E como sabes tu o meu nome? – perguntou ele, com altivez. – Eu nunca te vi! Há semanas que te espero e não te pus a vista em cima! – continuou, retesando o corpo e soltando um miaaaaaauuuu… deveras prolongado e assustador.

A toupeira quase se sumiu no interior do solo, atemorizada com a atitude ameaçadora do felino Rezinga, mas encheu-se de coragem e resolveu iniciar uma amigável conversa.
– E se começássemos de novo? O meu nome é Zazá, prazer em conhecer-te! – apresentou-se ela, perante o gato, embasbacado.
A valente toupeira, prudente, mas afoita, lá foi conquistando a confiança de Rezinga, usando palavras que suscitaram o seu interesse, cativando-o.
Esclareceu que, embora quase não consiga enxergar, tem uma audição muito apurada, conseguindo ouvir os seus altissonantes miaaaauuuus, a voz rouca do avô Raul, a doce e animada Beatriz, e também muitos outros sons do mundo da luz.
– Mas é durante a noite que eu aproveito para espiar este lugar. – confidenciou ela.
– Ai sim? Ora que esperta que tu és! – exclamou o gato, admirado, arqueando o corpo. – Mas tu não dormes? Trabalhas de dia e de noite? – perguntou ele.
– Eu trabalho muito! Sabes, estou cansada de escavar com as minhas patas o mundo que fica sob a terra fofa do quintal. Mas tenho de armazenar alimento para as minhas crias e não posso estar mais do que doze horas sem comer, se não morro. Informou ela.
– Tu tens crias? Aonde? – indagou o gato, curioso.
– Estão no ninho, debaixo da terra, bem no fundo. É para lá que eu levo as larvas e os pequenos insetos.
E Zazá explicou-lhe como é a vida nas profundezas do subsolo. Revelou-lhe que o seu habitat tem muitas estradas por onde ela viaja. São túneis e galerias que ela constrói, pelos quais circula e caça, constituindo um verdadeiro labirinto, cheio de seres minúsculos que lhe servem de alimento.
E não se pense que os seus dias eram monótonos. Zazá vivia verdadeiras aventuras e, até, algumas desventuras. Contou ao gato as investidas do rato Serafim, o malandraço, que passava o tempo a apavorá-la, perseguindo-a enquanto ela trabalhava. Um dia, cansada de ser importunada, aborreceu-se e virou-se para ele com as suas unhas afiadas. O rato Serafim desatou a fugir, espavorido, pois não contava com aquela reação da toupeirinha.
Rezinga estava impressionado e sensibilizado. Afinal, a toupeira malvada que atormentava o avô Raul era um ser simpático e amistoso. Não fazia mal a ninguém. Assim lhe parecia. Trabalhava muitíssimo, para se poder alimentar e às suas crias. Não, não era como ele, sempre com a comida na tigela, bem tratado, cheio de mordomias, com tempo para dormir e para repousar nos aprazíveis cantos da casa e por outros sítios que só a liberdade de um gato desencanta.
Seria natural que Rezinga tivesse caçado a toupeira e presenteasse o avô com o achado. E que recompensa teria! Assim poderia ter sido. Mas não foi o que aconteceu.
Dentro de si, surgiram, então, muitas perguntas sobre os outros bichos e até sobre os humanos: «Por que é que a toupeira não podia habitar no quintal do avô Raul? Seria justo este querer expulsá-la dos seus domínios? Afinal, ela não tinha direito à vida, tal como os outros seres vivos? E que dizer da atitude do rato Serafim, que se divertia a assustá-la, amedrontando-a e causando-lhe pânico?».
Depois daquele dia, Zazá e Rezinga tornaram-se cúmplices, cultivando uma incrível amizade. Quando se encontravam, o gato narrava-lhe os acontecimentos do mundo da luz e a toupeira revelava-lhe os pormenores da vida no escuro e profundo mundo subterrâneo.
Rezinga assumira, entretanto, a difícil tarefa de proteger Zazá dos perigos que, a todo o momento, a ameaçavam.
A trabalheira que lhe tinha dado salvá-la das armadilhas do seu dono, das investidas da coruja Sabina e até do interesse do vizinho Banzé, um cão corpulento e com cara de poucos amigos, que, de vez em quando, saltava a cerca e metia o nariz onde não era chamado.
Um dia, quando as crias de Zazá já não precisavam dos seus cuidados e tinham ido percorrer outros caminhos, construindo também elas túneis labirínticos, Rezinga resolveu ajudar a amiga a sair do quintal, para um terreno baldio nas proximidades. Não que ela não pudesse empreender esta tarefa sozinha!… Mas ele tinha-se habituado a participar na sua vida e queria poupá-la ao esforço de construir uma longa estrada, interminável, para se pôr a salvo da constante teimosia do avô Raul em querer livrar-se dela.
Combinaram a façanha. E, durante a noite, a toupeira subiu para a garupa do gato e lá foram os dois, espreitando os perigos, cautelosamente, para outro lugar, conquistando assim, Zazá, o direito a uma existência mais tranquila.
Sempre que Rezinga a visitava, conversavam sobre os novos acontecimentos. O último episódio da toupeira envolvia um encontro terrífico com Rufina, a cobra rainha das redondezas, que se tinha aventurado por um dos seus túneis para chegar ao novo ninho e lhe atacar as crias.
Zazá ficou em sérios apuros e foi uma azáfama para tapar o túnel, com as suas ágeis patas em forma de pá, impedindo que Rufina alcançasse o seu propósito.
Rezinga conhecia bem as artimanhas da cobra Rufina. Já tinha, em certo dia, enfrentado a birrenta rainha dos répteis. Lembrava-se bem do som agudo do seu silvo e de como ela se empertigou e investiu para ele que, naquele tempo, era bem cheio de genica e não se deixava ficar, agitando fortemente as patas, abrindo a bocarra de gato feroz, bufando e arreganhando os afiados dentes.
Afugentada, Rufina esgueirou-se pelo meio das altas ervas. Contudo, deixou a impressão bem viva da sua rabugice.
Com o passar do tempo, a amizade entre Rezinga e Zazá fortaleceu-se.
Quando a toupeira hibernava, o gato sentia saudades dela, mas esperava pacientemente pelo seu regresso. Nessas ocasiões, celebravam a alegria do reencontro.
A descoberta do mundo de Zazá, até então desconhecido para Rezinga, gerou na sua cabeça de gato curioso e pensador a ideia de que existem outras realidades que não vemos com os nossos olhos; e também seres muito diferentes entre si, que nem sempre se toleram e entendem.
Começavam a despontar nele emoções e sentimentos que até então não vivenciara, bem como um crescente desejo de melhor conhecer e compreender os outros.
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(*) In “Rezinga – Um gato do outro mundo”
01/08/2022