Rui Zink: “Um livro que se preze tem de querer o bem dos outros”
Rui Zink é professor universitário e autor de dezenas de obras, algumas traduzidas para Inglês, Francês, Alemão, Croata, Romeno, Sérvio, Japonês, Hebraico e Bengali. Entre outros, foram-lhe atribuídos o Prémio P.E.N. Clube Português de Narrativa (ou Novelística), pelo romance “Dádiva Divina”, e o Prémio Utopiales para melhor romance estrangeiro, com o livro “A instalação do medo”.
sinalAberto – Conta já com cerca de 40 anos de vida literária e possui uma vastíssima obra, dividida entre ficção (em que se insere a novela, o romance e o conto), banda desenhada, ensaio, crónica e literatura para a infância. É, igualmente, autor de inúmeros textos para teatro e ópera. Relativamente à crítica a algumas das suas obras, afirmou não estar conotado com nenhum género em particular, reconhecendo que isso sempre foi uma forma de autodefesa. No entanto, estando a sua imagem associada a uma certa irreverência, de que modo o afeta essa mesma crítica?
Rui Zink – Vivemos num tempo de pensamento fácil. Assim, colocar um rótulo na testa é fácil. O tempo que me foi dado viver teve intensas e muito rápidas metamorfoses. Coisas que não eram apreciadas passaram a sê-lo, e vice-versa. Parece-me sensato um autor aceitar que lhe chamem nomes. Parece-me também essencial que não aceite os nomes dados pelos outros às coisas, inclusive a si. Para mim, escrever é questionar. Sempre. Pôr em causa, a fim de entender a causa.
sA – Aconteceu com o Rui Zink o mesmo que a muitos outros autores e artistas portugueses. Só são valorizados em Portugal depois de obterem notoriedade num qualquer país estrangeiro. É um estereótipo que continua a repetir-se. Será esta uma idiossincrasia tipicamente portuguesa?
RZ – Creio que não. Nós vivemos cá e sentimo-la cá, por isso pensamos que é só cá que santos da casa, etc., mas há muito pior. Ainda hoje, mundo fora, muitos não podem sequer pisar o solo do seu país. Outros, ganhando prémios no estrangeiro, como prémio na sua terra são presos. É um bocadinho pior do que as injustiças literárias que eu e outros colegas nos gabemos de sofrer.
sA – Referiu várias vezes que não gostava de Portugal, mas que gostava dos Portugueses. Portugal é “feito” à imagem dos Portugueses, não é um pouco contraditório aquilo que diz? Como é, atualmente, a sua visão de Portugal e dos Portugueses?
RZ – Portugal é o conjunto das instituições. É o território. Mas é também um estado de espírito. E, apesar dos defeitos e do modo como, por vezes, o sistema maltrata os cidadãos, é hoje um dos mais agradáveis (e seguros) países do mundo para viver. Mas eu nunca fui patrioteiro abstrato, gosto de pessoas concretas. Há uma frase muito gira no romance de espionagem A Casa da Rússia, do Le Carré, dita no filme pelo Sean Connery. Cito de cor: “Trair a minha pátria ou trair aqueles que amo? Bolas, nunca tive uma escolha tão fácil!” Eu também sou assim, entre proteger aqueles que amo e defender a Mãe Pátria não hesito, era o que faltava. Portugal é um país antigo, com território concreto fixado há muito tempo, mas no resto é muito fluido. Os hábitos vão mudando, as pessoas vão mudando. Os brasileiros que vivem cá não serão também Portugal? Eu acho que são. Tal como aconteceu com as chamuças, também hoje muita leitaria tem pão de queijo ao lado do pastel de nata. E os imigrantes de outros países? E os ciganos, sempre marginalizados, embora estejam cá (e sejam portugueses) há oito séculos?
sA – É sabido que os regimes autoritários tentam manter as pessoas na ignorância. As gerações passadas de diversos países, incluindo Portugal, viveram essa realidade. Como se explica, então, que as gerações atuais, em liberdade e em democracia, com um manancial de informação à sua disposição e acesso fácil a livros, apoiem partidos e políticos com ideologias semelhantes às do passado? Fá-lo-ão por nunca terem experienciado a privação da liberdade e dela usufruírem como um dado adquirido?
RZ – Vivemos tempos que promovem a preguiça espiritual, enquanto cantam loas à “produtividade”. (E ao “progresso”, que para muitas cabecinhas é sempre tecnológico.) A era da informação deu lugar à era da desinformação. Dentro de um telemóvel está o acesso a infinita informação maravilhosa, mas é tão mais fácil aceder à que não é tão maravilhosa. É mais fácil desconfiar do que confiar, insultar do que compreender, odiar do que amar. Destruir é infinitamente mais fácil que construir. Por exemplo, educar um filho custa uma fortuna e implica muitos anos de trabalho e carinho e paciência e exasperação e ternura. Para destruir a sua vida, basta um condutor distraído ou um ressabiado com uns copos a mais. Ou uma guerra em nome do Bem. Quanto mais entorpecidos da mioleira, mais eficazes seremos até a destruir.
sA – “A Instalação do Medo”, “Manual do Bom Fascista” e “OssO” são, intencionalmente, títulos com uma leitura política ou antes uma provocação pela sua ambiguidade e gosto de brincar com a Língua Portuguesa e a sua plurissignificação? Girando a temática em torno de valores como a defesa da democracia, considera que ao escritor também cabe uma função de implicação social?
RZ – Sim, considero. Obviamente, muitos colegas discordarão, e também terão a sua razão. Por um lado, ninguém nos contratou para pregar sermões. Se os prego é porque me apetece e não porque o Estado ou o patrão a tal me obriguem. Esta é a liberdade de quem escreve, ninguém nos dá ordens. Em boa verdade, o contrato até viria a jeito, porque ajudaria a pagar as contas, mas a sua ausência dá-nos uma liberdade enorme. Ninguém pode chegar ao pé de mim e dizer: “Ó Rui, tu devias era falar disto e dizer isto.” Enfim, pode, mas eu não me sinto obrigado a ceder. Acontece é que, para mim, um livro que se preze tem de querer o bem dos outros. Daí que os meus tendam a ser “livros com mensagem” ou, pelo menos, com alguma intenção de ajudar o leitor a ser mais cidadão. Têm também intenção de durarem um bocadinho no tempo, de acrescentarem um ponto, de serem pertinentes. Se o conseguem já é outra questão. Umas vezes mais leves, outras mais pesadotes, os meus livros tentam sempre ampliar a experiência humana, num tempo em que há tantos a tentar fechá-la. E sempre, sempre contra o ódio, o rancor, a mesquinhez. No nosso tempo, há dois campos muito claros: o que proclama o fechamento a vozes distintas das nossas, o que promove a noção de que somos todos gente, até aqueles a quem (quase sempre estupidamente, pontualmente com alguma razão) receamos.
sA – O humor e a ironia sobressaem em quase todas as suas obras e é, provavelmente, esse o aspeto que melhor o caracteriza. Aliás, o próprio Rui diz que “o humor é a maior das poesias e a mais bonita forma de chegar ao outro”. Fazer humor, para si, é uma maneira de criar afetos? O humor também pode ser um disfarce para a timidez, ou não? Como se autodefine enquanto pessoa?
RZ – Humor, poesia e histórias têm em comum o quê? A leveza. São fios trémulos quase invisíveis a olho nu, mas que ajudam a viajar pelas cores, pelas sensações e pelas ideias. O mundo é confuso e, por vezes, trata-nos mal. Humor, poesia e histórias ajudam-nos a lidar melhor com isso. Não são soluções, são bálsamos e lentes de contacto. Evito definir-me como pessoa, mas gostaria que na minha lápide estivesse algo como: “Fez mais bem do que mal.” Só que não posso dizê-lo ainda, nem posso ainda classificar-me como “pessoa boa” porque, já lá diz o provérbio, até ao lavar dos cestos é vindima. E se, nos últimos minutos da minha vida, eu cometer um crime horrível, mesmo que sem querer? Nenhum de nós está livre de um impulso de raiva. Há muitos anos, à saída de um bar, um bêbado meteu-se comigo e, como eu estava mais sóbrio, fiz-lhe uma rasteira e ele caiu de costas. Só depois vi que ele podia ter batido com a cabeça no passeio. Isso faria de mim o quê? Um assassino. E esta história não é absurda, pois aconteceu exatamente no mesmo local a um jovem campeão de judo, que acabou preso por ter matado (ainda que involuntariamente) uma pessoa. Até ao lavar dos cestos é vindima.
sA – Vivemos, cada vez mais, na era do digital e do audiovisual, em que o imediato e a imagem dominam. Isso reflete-se em quase tudo, incluindo na literatura, pois há a tendência de associar determinadas obras, algumas clássicas, inclusive, à imagem, tornando a palavra mais visual. Se, por um lado, há o intuito de tornar essas obras mais acessíveis, por outro, não acha que pode ser contraproducente e se estará a simplificar demasiado a literatura, retirando ao leitor competências cognitivas e de literacia?
RZ – Acho. E choca-me que alguns manuais escolares abusem na adesão às modas. É notícia que, em alguns países, já recolhem os telemóveis nas aulas; e que estão a voltar ao papel e à caneta. Cá está, é o tal problema de ser mais fácil preguiçar do que trabalhar. Hoje, já nem as contas do nono ano sei fazer, porque, entretanto, me habituei a usar a calculadora do telemóvel. E agora, com a inteligência artificial, há esse risco: de tão fácil ser o acesso a uma máquina que pensa melhor do que nós; daqui a uns anos poderemos ter um exército de parvinhos que não sabem pensar, apenas pedir à máquina para pensar por eles.
sA – Pela positiva, a ilustração nos livros infantojuvenis e (n)a banda desenhada têm assumido maior relevo no panorama literário. O Rui Zink possui, igualmente, obras nestas duas categorias. Que mensagem gostaria de deixar àqueles que ainda consideram a literatura para crianças e jovens e a banda desenhada como artes menores?
RZ – Prefiro deixar uma mensagem aos outros, aos que não sabem que arte escolher, se uma “alta”, se uma “baixa”. Experimentem todas. Penso na lição do entremez, a peça de teatro mais popular no século XVIII, em Portugal. Começou por ser um episódio cómico no intervalo das peças sérias (em italiano, intervalo é “intermezzo”, no meio), acabou por se autonomizar e chegar a mais gente. Não há artes menores.
sA – “O avô tem uma borracha na cabeça” é o título de um livro para a infância da sua autoria, editado em 2020, o qual, pela própria intergeracionalidade e mensagem, bem pode ser para adultos também. A particularidade desta obra é a de que, para além de contar uma história de amor entre um avô e um neto, aborda a doença de Alzheimer. Acha que, em Portugal, nos lembramos suficientemente dos nossos idosos ou sofrerá também a sociedade atual de Alzheimer seletivo, quando se trata de cuidar dos pais e dos avós, muitos deles institucionalizados ou “esquecidos” nas camas dos hospitais?
RZ – A sociedade “esquece”, mas, em sua defesa, é um assunto difícil. E com os assuntos difíceis é sempre mais fácil não ligar do que tentar enfrentar. A tradição portuguesa é a de que, só mesmo, quando alguns “malucos” e “carolas” fazem força acordam os poderes vigentes do seu coma alcoólico.
sA – O Rui admite ser um “bom garfo”. Gostaríamos, por isso, de o desafiar a dizer o nome de um prato tradicional português que dê um bom trocadilho para o título de um livro. Já agora, diga-nos também qual seria a temática da história.
RZ – Desaguisado de favas em bolo-rei. Seria a história de uma aldeia feliz onde a desgraça era introduzida por um pasteleiro maroto que, um dia, pôs duas favas num bolo-rei e, para mais, se esqueceu do brinde.
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Nota da Redacção:
“À Flor da Língua” é uma rubrica mensal que tem como principal objectivo a divulgação da multiculturalidade, através da Língua Portuguesa, enquanto ponte para as diferentes culturas lusófonas.
No universo da lusofonia, podemos, assim, viajar ao encontro de pessoas e de diferentes lugares no tempo e no espaço. Trazemos, pois, “À Flor da Língua” a História, as estórias, a literatura, a gastronomia, a Natureza, as artes e as tradições dos vários povos, na sua imensa diversidade cultural.
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02/09/2024