Sejamos claros: assim, não acaba a guerra e brinca-se à paz

Casa Branca, Pennsylvania Avenue Northwest, em Washington, DC. (Créditos fotográficos: Kristina Volgenau – Unsplash)
O presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, prometeu acabar com a guerra e tomou a iniciativa, junto do presidente da Rússia, Vladimir Putin, para as negociações de paz, com este, a princípio, reticente, mas confiante, a seguir.
Desde logo, a arquitetura das negociações foi mal concebida, ao deixar de fora da mesa das negociações o líder de um dos países beligerantes e os representantes dos outros países aliados.

De facto, não lembrava a Belzebu entabular negociações para o fim de uma guerra, sentando à mesa apenas um dos beligerantes, o grupo representante de Vladimir Putin, líder da força invasora, e postergando o grupo representante do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, líder da Ucrânia, o país invadido, com territórios ocupados pelo invasor e considerados como regiões da Rússia, após um pacote de referendos convocados unilateralmente pelo presidente russo e não reconhecidos internacionalmente.

Depois, Donald Trump entrou nas negociações, por iniciativa própria, através dos seus representantes, por se tratar do líder de um país que apoiou a Ucrânia, em termos militares e financeiros, mas não aceitou que integrassem a mesa das negociações outros aliados – países e organizações governamentais, como a Organização do Tratado Atlântico Norte (NATO) e a União Europeia (UE) – bem como a organização mundial vocacionada para a consecução e para a aquisição da paz, a Organização das Nações Unidas (ONU).
Quem parece ter estado bem na cena das negociações foi a Arábia Saudita, limitando-se a ceder o palco e a acolher os negociadores.
Por outro lado, quem vai para negociações não acusa um dos beligerantes de ditador ou de fascista ou de ter causado a guerra, como fez Donald Trump a Volodymyr Zelensky, tendo, ao invés, elogiado o líder do Kremlin, que também lançou ao inquilino da Casa Branca os piropos encomiásticos de “inteligente” e “pragmático”.

Também não andaram bem alguns políticos e politólogos, ao enfatizarem que Vladimir Putin não quer a paz e o que pretende é continuar a guerra e que vai invadir um país da Europa a breve prazo, no que Zelensky alinhou. Ora, não se negoceia com preconceitos, nem com insultos.
Os beligerantes diretos começaram por garantir que só cessariam as hostilidades mantendo a situação territorial como está, o que mostra que se encara, erradamente, a negociação com posições pré-definidas.
Não se atribui ao invasor a responsabilidade pela guerra e, ao invés, aponta-se o país invadido e agredido como o causador da guerra. Quer dizer: o invadido, o destruído, o que viu os seus concidadãos a porem-se em fuga, é que é o responsável pela guerra! Assim, não haverá paz, pois a guerra, se as negociações não mudarem de agulha, manter-se-á.

O presidente da Ucrânia, que estava, a princípio, renitente em abrir mão de qualquer um dos territórios ocupados, incluindo a Crimeia, cedo passou a estar disponível para ceder os territórios ucranianos ocupados à Rússia, em troca da cedência de territórios russos por Moscovo, mas sem especificar que território ou que territórios pretendia. Vincava que a Europa tinha de participar na mesa das negociações, mas acedeu, em princípio, a subscrever um acordo com Donald Trump, sem ter dado cavaco à NATO nem à UE. Aliás, isso não me surpreende, porquanto, o presidente ucraniano tanto é célere a pedir ajuda e a agradecê-la, como a dizer que ela é insuficiente. E, às sanções decretadas contra a Rússia pela UE e pelo dito Ocidente, em geral, que tanto prejudicaram a UE, pelo efeito de ricochete, somou a não renovação da passagem de petróleo da Rússia pelo território ucraniano (a compra do petróleo russo não fora objeto de sanções), o que lesou as economias dos países da UE.

Os minutadores do acordo de paz pretendiam, a gosto do presidente dos EUA, que a Ucrânia disponibilizasse à Casa Branca a exploração de terras raras e de minerais (nomeadamente, preciosos) e que, durante a exploração, nos custos a pagar ao país, fosse descontada uma verba avultada, a favor dos EUA, em compensação do apoio financeiro e militar fornecido ao governo de Kiev. Volodymyr Zelensky reagiu, considerando que não poderia vender o país e que a ajuda norte-americana não fora tão avultada, pelo que não subscreveria um acordo desse jaez. Porém, a seguir, assentiu em aceitar o acordo, quando a Casa Branca prescindiu da dita compensação económica, mas sem obter, previamente, qualquer garantia de apoio da administração norte-americana à segurança da Ucrânia no pós-guerra. Além disso, elogiou o acordo e disse-se grato a Donald Trump.
Por seu turno, Vladimir Putin apelou ao investimento, da parte dos outros países, em terras raras e em minerais, nos seus territórios (leia-se territórios russófilos ocupados durante a guerra).
Todo este cenário significa a intenção de repartir a Ucrânia pelos EUA e pela Rússia, ou seja, repartir os bens “preciosos” pelos dois países, sendo que a Rússia manter-se-ia com soberania sobre os territórios ocupados, ao passo que os EUA apenas defenderiam, na Ucrânia, os seus interesses, técnica e financeiramente e, se necessário, militarmente.

Embora, como diz, o líder norte-americano, a segurança na Ucrânia caiba à Europa, os EUA garantiriam a segurança do país, quando e enquanto isso fosse necessário aos interesses norte-americanos. Todavia, a Ucrânia parecia resignar-se a ter ficado fora das negociações e a Europa viria a ser chamada às negociações, depois de tudo estar consumado, para reverter as sanções económicas estipuladas contra a Rússia ou contra personalidades e empresas russas e, sobretudo, para anular a ideia de ajudar Kiev com os ativos estatais da Rússia congelados.
De resto, a Europa não partilharia da suposta repartição da Ucrânia.
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Entretanto, Volodymyr Zelensky aceitou viajar para os EUA, com vista a assinar a minuta do acordo preparado por Washington, exigindo garantias de segurança necessária, por parte dos norte-americanos, da Ucrânia no pós-guerra, mas, por outro lado, mandou às malvas a necessidade de a Europa e a Ucrânia participarem nas negociações.
Na véspera da visita do presidente da Ucrânia aos EUA, o homólogo americano antevia um “encontro muito bom na Casa Branca”, frisando: “Tenho muito respeito por ele.” Porém, o “encontro muito bom” degenerou na “humilhação de um aliado no palco mundial”.

A reunião, na Sala Oval da Casa Branca iniciou-se de forma cordial, mas depressa redundou em gritaria e na troca de acusações entre Zelensky e Trump, com o vice-presidente do país anfitrião, James David Vance, a contribuir para a confusão, falando em “desrespeito”.
A tensão cresceu tanto que a prevista conferência de imprensa, habitual após cimeiras entre chefes de Estado na Casa Branca, acabou cancelada, com Zelensky a abandonar o edifício, a correr, visivelmente aborrecido.
O presidente Donald Trump diz-se um grande negociador, mas não fez um acordo com Vladimir Putin, no primeiro mandato, um acordo com o Irão sobre o dossiê nuclear, nem qualquer acordo sobre a Ucrânia, invadida em 2014. E, desta vez, tornou-se claro que não quer um acordo para a Ucrânia, mas, apenas, recuperar a relação com o líder do Kremlin.
O congressista democrata Brendan Boyle foi dos primeiros a enviar à imprensa uma reação àquele festival de gritaria. “Foi um grande dia para Vladimir Putin. O presidente Trump e o vice-presidente Vance são os seus maiores servos”, considerou.
A assinatura de um acordo preliminar que daria acesso aos EUA aos recursos naturais ucranianos, em troca de mais auxílio militar e financeiro, ficou suspensa. Agora, depois de tudo o que se passou, o acordo está muito mais longe de ser alcançado.
O documento gizado por Washington não previa garantias explícitas de segurança à Ucrânia. Ao invés, abordava a criação de um Fundo de Investimento e Reconstrução, cujas verbas resultantes da venda dos recursos naturais seriam reinvestidas na reconstrução daquele país do Leste.

Além do gás e do petróleo, Washington mostrou particular interesse nas terras raras, grupo de 17 elementos químicos cruciais para o mundo tecnológico, dos smartphones aos computadores, passando por baterias e por turbinas eólicas. A China controla o mercado mundial destes minérios.
O presidente Trump não quer saber de vitórias para os EUA, mas, apenas de vitórias pessoais. Aparece na televisão com ar de mandão. E, agora, tendo humilhado um suposto herói de guerra, em direto, julga que teve sucesso. Ora, a diplomacia não se negoceia em público. Assim, a ida de Zelensky a Washington foi a cilada montada por Donald Trump e por James David Vance ao visitante.

Focando a amizade entre o líder dos EUA e o líder do Kremlin, a senadora democrata Jeanne Shaheen enviou uma nota de imprensa, cerca de uma hora após a cimeira, onde se lê: “Torna-se claro que Vladimir Putin manipula Donald Trump, que, por sua vez, não percebe que está a ser manipulado. Vladimir Putin é um assassino, um ditador. É um bandido que apenas percebe a linguagem da força. Infelizmente, temos um presidente que não percebe isso.”
A maioria das sondagens publicadas nos EUA sobre a guerra na Ucrânia revela que, entre 80% a 90% dos norte-americanos, apoiam os esforços de Kiev contra Moscovo, mas nem Trump nem Putin parecem querer a paz.
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fotográficos: The White House – en.wikipedia.org)
Entretanto, enquanto a NATO pretende que Zelensky reconsidere a relação com Trump, este acusa o seu homólogo ucraniano de estar a brincar com a III Guerra Mundial e Putin considera que Zelensky foi derrotado.
Ora Volodymyr Zelensky teria sido derrotado, se tivesse assinado o acordo proposto por Washington. Ao invés, o presidente francês, Emmanuel Macron, que tinha convocado um conjunto de países da UE e outro de países da NATO para dias consecutivos, avistou-se com Donald Trump, em Washington, e disse-lhe umas duras verdades, entre elogios e votos de confiança, visitou Portugal, no âmbito da relação bilateral entre o nosso país e a França, e concedeu uma entrevista à RTP1, onde fez o ponto da situação das pretensas negociações, sublinhando que a Ucrânia merece o apoio do Ocidente (sendo necessário o apoio dos EUA, no que Zelensky está de acordo), mas que, face à eventual recusa de Trump, a Europa tem de assumir a sua própria defesa e tratar da sua reindustrialização. Mais: considera que não é Zelensky quem provoca a III guerra mundial, nem com ela está a brincar.

fotográficos: Simon Dawson – pt.wikipedia.org)
Por sua vez, o presidente ucraniano foi recebido e ovacionado no Reino Unido. E, no encontro entre Keir Starmer e Volodymyr Zelensky, o primeiro-ministro garantiu o apoio britânico à Ucrânia, “durante o tempo que for preciso”. Esta é, aliás, a linha do que vem sendo repetido pela UE.
“Deixe-me dizer-lhe que é muito bem-vindo aqui!”, começou Keir Starmer por afirmar. “E, como deve ter percebido pelos aplausos que vêm da rua, tem todo o apoio do Reino Unido.”
De facto, “o povo do Reino Unido saiu à rua para mostrar que apoia a Ucrânia e que estamos determinados a ficar do vosso lado, rumo àquilo que ambos desejamos, que é uma paz duradoura, com base na soberania e na segurança da Ucrânia – tão importante para a Ucrânia, para a Europa e para o Reino Unido”, vincou Keir Starmer

Depois da turbulenta reunião com Donald Trump, na Casa Branca, o presidente ucraniano agradeceu as palavras de Keir Starmer, dizendo contar com o apoio do Reino Unido e congratulando-se por o rei Carlos III ter aceitado recebê-lo ontem (2 de março).
Além disso, Georgia Meloni, primeira-ministra da Itália, quer salvar a situação, através de uma cimeira urgente da UE com os EUA, com o que os líderes europeus parecem concordar.
Na verdade, Donald Trump terá amuado, após o encontro com Volodymyr Zelensky, e ameaçado retirar o apoio militar à Ucrânia, o que a Rússia mais quer.
Haja alguém que tenha mão nisto, porque, de contrário, brinca-se à guerra e a paz ficará bem mais longe, quando ela é possível e é tão necessária.
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03/03/2025