“Sempre”
XXX Festival Caminhos do Cinema Português (4)
É interessante o quanto podemos vincular algumas das nossas experiências mais sensíveis, como fazer parte da audiência cinematográfica, a vivências do nosso quotidiano mais trivial. Da mesma forma que há, no XXX Festival Caminhos do Cinema Português (FCCP), um filme dedicado especificamente à reunião e à partilha, ao redor de uma mesa – “À mesa da unidade popular”, de Isabel Noronha e Camilo de Sousa, vencedor do Prémio Turismo do Centro como Melhor Documentário, que aborda a necessidade de a sociedade moçambicana refletir sobre o seu futuro social, civil, político e cultural –, sinto que o mesmo ocorreu com o festival, dadas as suas devidas proporções e interesses.
Foi durante as refeições que muito do Cinema Português de 2024 e a produção vindoura foi debatida – e, até, alinhavada: jurados avaliavam as suas preferências e os possíveis ganhadores dos prémios; produtores conversavam sobre os desafios e as melhores formas de se continuar a produzir cinema em Portugal; voluntários e participantes do trigésimo FCCP desfrutavam os momentos de restauração para conviverem, um momentinho, com os atores e os realizadores dos filmes em exibição.
Foi num almoço qualquer, desta última semana, que tive a honra de sentar-me ao lado de Luciana Fina, que foi, posteriormente, galardoada como vencedora do Grande Prémio “Cidade de Coimbra”, com o filme “Sempre”, uma revisitação a imagens da Revolução de 25 de Abril e de todo o seu contexto. Um simples encontro, mas muito poderoso. Fiquei entusiasmado, pois acompanho o seu trabalho desde que ela foi à minha universidade exibir “Andromeda”. Confesso que, num ato impulsivo de admiração, contei-lhe que, até há pouco tempo, tinha um dos seus posters dobráveis exposto numa das paredes da minha casa. Ela, muito simpática, riu-se e agradeceu a confissão. Depois, falou-nos de forma inspiradora sobre a sua trajectória e os próximos rumos de sua produção, o que me deixou com mais vontade de estudar, escrever e produzir cinema. Como lhe brilha o olho, é perceptível o seu amor pelo cinema. Fiquei tão orgulhoso de ter podido estar na presença da grande vencedora da noite, mesmo que por apenas alguns minutos. Um privilégio.
De facto, creio que também tive a lisonjeira companhia de diversas pessoas notáveis que não necessariamente tiveram as suas produções laureadas, mas que, a meu ver, precisam de ser mencionadas pela sua contribuição para esta celebração do FCCP. Pela nossa mesa, passou todo o corpo de jurados das seleções Caminhos, Outros Olhares e Ensaios, além do júri da Fédération Internationale de la Presse Cinématographique (FIPRESCI). Tive a honra de poder trocar conhecimentos e percepções com Filipa Vasconcelos, com Mina Andala, com Paulo Cunha, com Daniel Vicente Roque, com Mónica Lemos, com Vicente Paredes, com André Gil Mata e, ainda, com Valerie Braddell. Também pude entrecruzar impressões com Cátia Beato e Bernardo Fernandes, meus parceiros de júri universitário, para elegermos “Sombras nada más”, de Kathy Mitrani, como o vencedor do Prémio Universidade de Coimbra para Melhor Filme da Seleção Ensaios. É, definitivamente, uma componente humana extremamente dedicada ao cinema como modo de vida, pessoas pelas quais foi possível criar afeto em tão pouco tempo e que carrego comigo no peito.
Gosto de considerar, igualmente, que a própria cerimónia da atribuição de prémios e de encerramento do FCCP tenha sido simbolicamente construída para receber-nos num formato que evoca esta mesa de união e de pertença, a começar pela presença do grupo Belle Chase Hotel, que retorna à ativa depois de um hiato de 25 anos. Entre um prémio e outro, a cada movimento dos jurados e vencedores, não faltaram improvisações que compuseram a banda sonora do espetáculo.
Tiago Santos, o coordenador geral do trigésimo FCCP e mestre de cerimónias da noite, apesar da ternura no trato com os convidados, não pode deixar de ser assertivo ao comunicar oficialmente o descontentamento do Festival com a ausência do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) no evento. Foi, realmente, um descaso ultrajante. Por outro lado, a estratégia de cingir os prémios a instituições demonstrou o quanto esta conferência do cinema é amplamente celebrada e estimulada por diversas outras entidades de tão grande relevância. A comunidade cinéfila de Coimbra não está desamparada. Dos 24 prémios oferecidos, nove deles são suportados por órgãos privados ou públicos. E lá estavam, todos presentes e em prontidão, dispostos a fazer parte desta mesa. Muito obrigado pelo seu empenho.
Dois galardões foram, particularmente, emocionantes nesta noite especial para o cinema português. O discurso de Alexander David – ao conquistar o Prémio Fernando Santos Sucessores como Revelação, por “À Tona D’Água” – foi de significante relevância, pois salientou a urgência em abrirmos as portas da produção cinematográfica às pessoas da comunidade LGBTQIA+, seja nas equipas de realização, seja na atuação ou à frente das câmaras.
Por sua vez, João Ganho surpreendeu todos com um misto de furor e de satisfação por ter alcançado o Prémio do Voto do Público com “Play it again, Yuki”, um filme autosubsidiado, após negativas em convocatórias públicas e financiamentos privados.
Alex, João, Tiago e o FCCP comprovaram que é possível fazer cinema de muita qualidade em Portugal, apesar das descrenças alheias. Estes guerreiros sempre terão lugar à mesa do cinema!
A meu ver, além de recordarmos os contemplados por prémios nas edições, também é importante registar aquelas obras que geraram apelo popular e identificação, seja pelas conversas pós-projeções ou pela recepção da audiência em si. A curta-metragem de animação “T-zero”, de Vicente Niro (Daniel Vicente Roque), concorrente na sessão Caminhos, é um exemplo desses. Conseguiu arrebatar-me bastante pela sua temática atual acerca da habitação e da gentrificação em Portugal – assunto que não passa despercebido a ninguèm daqui –, quanto, ainda, por conta do seu engenhoso uso de ferramentas narrativas autênticas, que criaram um plot twist (ou reviravolta no enredo) realmente surpreendente. Já os filmes “Cantos da metamorfose ou aquela vez em que eu encarnei como boto” (de Ainá Xisto), “A pedra sonha dar flor” (de Rodrigo Areias), e “Mãos no fogo” (de Margarida Gil) revelaram uma visceralidade inquietante e agendam, mediaticamente, temáticas socialmente fraturantes, como o abuso infantil e feminino, a par de perspectivas culturais identitárias. Certamente, fizeram-me refletir por um bom tempo após as suas exibições.
Criei especial apreço também pelas curtas-metragens “Minhas sensações são tudo o que tenho a oferecer” (de Isadora Neves Marques), “Conseguimos fazer um filme” (de Tota Alves), “Golden shower” (da minha conterrânea brasileira Stella Carneiro) e “Driving nowhere” (de Marco Pereira Campos). De alguma forma, são filmes que conversaram com diversos aspectos de minha subjetividade, tanto por ser um imigrante e viajante, quanto por reconhecimento das suas histórias. Sugiro, seriamente, as suas assistências!
Oficialmente, a edição número 30 do Festival Caminhos do Cinema Português findou-se. No entanto, creio que ela seguirá em aberto por tempo indeterminado, reverberando reflexivamente em dialogismo aos seus acontecimentos, internamente ao seu público. Da minha parte, estou certo de que sentirei consideravelmente a falta das sessões de exibição muito bem programadas por João Pais e pela sua equipa, bem como das conversas afetuosas com os participantes no evento e de toda a partilha entre as pessoas, pelo menos, nos próximos dias.
Esta foi a minha primeira colaboração com Caminhos do Cinema Português – Associação de Artes Cinematográficas de Coimbra e espero que não seja a última. Após o cerimonial de encerramento, antes de todos nos despedirmos, houve um momento de comoção mútua, à volta da mesa de jantar. Um pequeno grupo de voluntários, jurados e amigos do festival reuniu-se para escrever mensagens e dedicatórias ternas nos catálogos dos companheiros. Quero recordar-me daquele abraço comunitário que todos nos demos e que demarca o quanto o cinema português é forte. Sempre haverá pormenores a resolver. Sempre haverá tempos difíceis para produzir. Mas também haverá senso de coletividade e união, empatia e muito esforço para fazer do cinema uma ferramenta de mudança social e humana. Sempre haverá uns poucos sonhadores à volta de uma mesa, traçando o futuro de um mundo melhor. Sempre.
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