Silêncio, luzes, acção
A vida, toda ela, incluindo a vida política, sendo feita de momentos, é principalmente um processo encadeado de acontecimentos, por vezes desconexos, ou parecendo sê-los, que representam a explicação para o que a realidade nos mostra quando paramos a máquina de projectar. Significando que nunca é um fotograma que representa a complexidade do que se passou até se chegar lá, mas que existiu um caminho mais ou menos longo, com mais ou menos obstáculos para se chegar a ele. Geralmente, os momentos, quando olhamos para eles, não nos estimulam a racionalidade, mas antes sentimentos que podem ir do ódio à compaixão. Geralmente, também, reverter esse sentimento, qualquer que ele seja, é uma tarefa que exige um considerável esforço analítico e a presença de dados que facilitem e contribuam para a mudança de percepção sobre o significado do momento.
Os acontecimentos que tiveram como desfecho a reprovação do orçamento do Estado ao fim da tarde de 27 de Outubro e as reacções que de imediato se fizeram sentir por parte de um sector que apoiou, com maior ou menor convicção, a solução política de 2015, permitindo ao PS formar governo, e que, desde 2019, já com outra configuração, manteve o apoio do BE e do PCP, sendo manifestações de óbvia frustração, traduzem sobretudo a indignação perante um acontecimento que, embora se tornasse possível, sempre se considerou improvável. Diga-se que, a não se verificarem, estaríamos perante um grau de indiferença que traduzia o comprometimento de todos os esforços que eventualmente se venham a fazer para retomar o figurino que vigorou em 2015, o qual, embora incipiente na sua formulação e concretização, tornou possível uma alternativa bem distinta daquela que tinha governado o país durante os anos da troika.
Sobre os acontecimentos de 27 de Outubro, existem, por enquanto, três narrativas, correspondentes a cada um dos três actores políticos que estiveram envolvidos na discussão do documento e que acabou por ser inviabilizado por dois deles, BE e PCP. Embora sobreponíveis em alguns aspectos, eram distintas as razões que levaram cada um daqueles partidos a rejeitar o documento. Enquanto o BE centrou a negociação com o governo em nove pontos, o PCP colocou na agenda das negociações não só matérias orçamentais, como assuntos que tradicionalmente não constam desse dossiê, mas que o governo em momento algum rejeitou discuti-los. Estávamos, portanto, perante uma nova modalidade de discussão do Orçamento de Estado, em que, nas colunas das receitas e das despesas, existia agora um anexo dizendo respeito a matérias estritamente políticas ainda que, necessariamente, tivessem incidência orçamental.
Para ajudar à compreensão do que se passou, interessa remontar não só ao início das negociações, mas também a Outubro de 2019, quando não foram viabilizadas as condições para que existisse um acordo escrito entre o PS, o BE e o PCP. E se regressamos a esse momento é porque foi ele que criou as circunstâncias que determinaram, em larga medida, o desfecho verificado em 27 de Outubro, e porque é dele que devemos retirar as devidas lições. Esta afirmação baseia-se no facto de, em condições inusitadas – quarenta anos de conflito aberto entre o PS e o PCP –, no período 2015-2019, o governo ter visto os seus orçamentos aprovados, mau grado muitas das medidas que neles constavam nunca tivessem sido aplicadas.
A exigência de um acordo escrito, embora em termos mais exigentes do que o de 2015, e durasse o tempo que fosse necessário para o alcançar, iria impedir a conflitualidade que durante os últimos dois anos esteve sempre presente entre o governo e os partidos de esquerda. Coube ao PCP a responsabilidade de esse acordo não ter sido celebrado, impedindo, dessa maneira, que se fosse mais longe nas medidas que foram sendo tomadas pelo governo. E, nessas circunstâncias, o desfecho daquele fim de tarde de 27 de Outubro não teria provavelmente existido. Por outro lado, se, em 2020, o Orçamento de Estado não foi objecto do mesmo percurso atribulado deste, foi porque a situação pandémica obrigava a que o PCP reservasse as suas exigências para outra altura. Que acabou por ser esta.
Embora a correlação de forças entre os três partidos seja distinta e particularmente desigual, no que se refere ao PS, estando sempre implícita quando se trata de negociações, também deve ser tida em conta a bondade das propostas que foram apresentadas ao governo. Sabe-se, e está escrito nos documentos oficiais do PCP, que elas iam do regresso dos CTT à esfera pública até ao aumento do salário mínimo nacional. Boa parte das propostas políticas do PCP referiam-se ao regresso à situação que se vivia antes do governo de Passos Coelho, outras a desenvolvimentos de medidas que, entretanto, foram postas em prática. Exemplos: a caducidade dos contratos de trabalho e o ordenado mínimo nacional. De um leque vasto de propostas para serem anexadas ao orçamento, que o governo aceitou discutir e negociar, nas vésperas da discussão na generalidade, restavam três – regime de exclusividade para os médicos, que o governo transformou numa medida híbrida, a dedicação plena; o regime de caducidade dos contratos de trabalho e o valor do salário mínimo nacional. Relativamente a estas duas últimas medidas é de relevar que têm directamente a ver com as condições de vida e de trabalho, aspectos que, desde sempre, o PCP tem vindo a defender. Seria dificilmente aceitável que chegado ao final das negociações, o PCP regressasse sem qualquer proposta aceite e, mesmo assim, viabilizasse o Orçamento. Não é de excluir que o abandono dos representantes dos patrões da concertação social tenha influenciado o governo a tornar-se particularmente intransigente quanto a estas matérias. Por isso, defendemos o ponto de vista de que foi o governo a comprometer a aprovação do Orçamento de Estado.
Contudo, criada esta situação, nada obrigava a que o Presidente da República dissolvesse o parlamento, convocando eleições antecipadas. E vários partidos, incluindo o partido socialista, manifestaram-se a favor da continuação em funções do governo, dando-lhe a oportunidade de apresentar um novo orçamento. Desde cedo, foi aquela a intenção de Marcelo Rebelo de Sousa. Ainda antes da discussão na generalidade do orçamento já ele andava a ameaçar com essa decisão. Portanto, as eleições antecipadas são da única responsabilidade sua, uma vez que, constitucionalmente, não estava obrigado a enveredar por essa solução. Sendo prerrogativa sua fazê-lo, não decorre da letra da lei que tenha de o fazer.
O país vê-se, assim, perante uma situação que, não sendo frequente, e tendo sido escusada, nem por isso deixa de constituir uma solução democrática. Não constitui, por isso, um golpe palaciano, embora estejamos longe de conhecer as motivações e as razões que levaram o chefe de Estado a escolher esta alternativa. Na parte que diz respeito aos partidos que estiveram directamente envolvidos neste desfecho, há que passar a saber hierarquizar melhor o necessário e o imprescindível, já que o possível não passa de uma espécie de pastilha elástica. Agora que as eleições não tardam, pede-se silêncio para a vozearia que vai por aí, luzes sobre as propostas partidárias e acção a quem tem de disputar as eleições.
08/11/2021