Simples como a fotossíntese

 Simples como a fotossíntese

Buligueira, no concelho de Torres Vedras. (Créditos fotográficos: Vítor Oliveira – flickr.com)

Gratidão e memória são duas marcas emotivas que distinguem os humanos que as sabem usar. Apesar do que muitas vezes parece, ninguém nasce por acaso. Há sempre uma razão para que alguém saia do aconchego do ventre materno e cresça num ambiente que não escolheu e ao qual tem de se adaptar. Tal como uma planta, embora sem a capacidade da fotossíntese, é importante que retire vantagens do Sol que o aquece. E também dos afectos e das brincadeiras que o acompanham na época dos joelhos feridos e das partidas de futebol no largo da aldeia ou do bairro.

Nesta sobreposição de datas, cruzo as recordações de uma infância em que a professora da escola primária nos acolhia com um sorriso, mas que nos corrigia com um ponteiro cortado no caniçal, quando as contas não davam certo ou as palavras não eram escritas com cedilha nem com a letra “p” do “óptimo” ou da “óptica”. Pontos de vista que os tempos mudam e desacertam, deixando agora, nas gerações de então, uma sensação de injustiça.

Não defendo as palmadas pedagógicas nem as reguadas distribuídas em proporção do número dos erros do aprendiz apanhado a olhar, maravilhado, para os bandos de pássaros no outro lado da janela. Também não defendo o modo como, por exemplo, uma regente escolar nos retirava os dentes que abanavam, recorrendo à ponta da caneta ou a um cordel. Se calhar, revia-se nas práticas de outra gente que, como ela, estava muito ligada ao regime da voz única.

Buligueira, no concelho de Torres Vedras. (Créditos fotográficos: Vítor Oliveira –commons.wikimedia.org)

Todavia, recupero o valor da gratidão para com as pessoas que me ajudaram a crescer e a reconhecer o que é correcto e o menos sério. Ao senhor Domingos – meu antigo vizinho, criador de gado bovino e que guiava um pequeno tractor para o qual saltávamos em corrida – devo a facilidade com que passei a resolver as divisões com números de dois ou mais algarismos no divisor. À sua filha, Anita, uma rapariga que já precisava de vestidos novos para os bailes e que os tinha de provar numa modista de outra aldeia, agradeço ter precisado da minha companhia para atravessar carreiros e montes e, assim, ajudar-me a abrir uma portinhola do Mundo. Ao senhor Vinício que, quando tinha fruta para vender, me pedia para escrever as etiquetas das caixas de pêras e de pêros ou camoeses. À dona Henriqueta, a sua mulher, que nos obrigava a ouvir as missas e os terços, com o rádio aos berros, e que me ditava as cartas para um seu irmão emigrado na África do Sul. Especialmente, recordo o amor da minha tia Olinda, que nunca se esquecia de mim nas férias escolares e que me levou a conhecer o Guincho, a Praia das Maçãs, a Ericeira, o rio Lizandro e a descida íngreme de Cheleiros. Na varanda da sua vivenda, sonhei com a chegada do homem à Lua.

Os astronautas Neil Armstrong e Buzz Aldrin alunaram o módulo lunar Eagle em 20 de Julho de 1969, às 20h17min UTC. Armstrong tornou-se o primeiro humano a pisar a superfície lunar, seis horas depois, já no dia 21, seguido por Aldrin, vinte minutos depois. (oimparcial.com.br)

Vem tudo isto a propósito da leitura do livro “O Primeiro Homem”, a obra em que Albert Camus “trabalhava no momento da sua morte”, como escreve Catherine Camus, responsável pela primeira edição francesa (em 1994) do manuscrito “encontrado na sua sacola a 4 de Janeiro de 1960” e pelo legado do pai. Refira-se que a publicação desta obra inclui, em anexo, a carta que Albert Camus enviou ao seu professor Louis Germain, depois de, em 10 de Dezembro de 1957, ter recebido o Prémio Nobel da Literatura.

Albert Camus recebe o Prémio Nobel da Literatura, a 10 de Dezembro de 1957, em Estocolmo. (kispoonline.blogspot.com)

Nestas páginas, supostamente autobiográficas, o escritor fala-nos dos sons e das circunstâncias de uma infância associada à pobreza e à morte do pai de Jacques Cormery na Primeira Grande Guerra, o qual procura conhecer décadas depois. É, aqui, assinalável a afeição que o personagem principal tem à mãe e à avó, bem como a um professor que o fez ver o Mundo sob outra perspectiva.

“Sejam quais forem as nossas fraquezas pessoais, a nobreza da nossa tarefa terá sempre raízes em dois compromissos difíceis de manter: a recusa de mentir sobre aquilo que sabemos e a resistência à opressão”, declarou Alberto Camus, no seu discurso de agradecimento à Academia Sueca, proferido em Estocolmo.

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Nota:

O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 9 de Fevereiro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

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10/02/2025

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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