Situação humanitária em Gaza mina a segurança e o interesse de Israel

 Situação humanitária em Gaza mina a segurança e o interesse de Israel

Palestinianos em luto ao lado do corpo de uma das vítimas morta durante entrega de ajuda humanitária a Gaza. (Créditos fotográficos: AFP – oglobo.globo.com)

Centenas de antigos generais e de titulares de outros altos cargos da segurança israelita alertaram para os riscos da situação humanitária em Gaza, cada vez mais insustentável, na segurança de Israel, bem como para as consequências que a situação pode ter nas relações com os parceiros israelitas ocidentais – Europa e Estados Unidos da América (EUA) – e com os países árabes.

Matan Vilnaï, major-general reformado. (Créditos fotográficos: Flash90
– timesofisrael.com)

Organizados no movimento “Comandantes para a Segurança de Israel” (CIS, na sigla inglesa), já com 10 anos de existência (foi criado em 2014) – definindo-se como apartidário e defensor do princípio de “dois estados para dois povos”, que deve levar a acordos com os Palestinianos e a “acordos de segurança política com o mundo árabe” –, os mais de 500 antigos generais e oficiais superiores do exército israelita, dos serviços secretos (inclui quatro antigos diretores da Mossad e um antigo chefe do Shin Bet) e da polícia, a 10 de março, subscreveram uma carta, que Matan Vilnaï, major-general reformado, enviou ao primeiro-ministro e aos membros do gabinete de guerra e que foi divulgada em Inglês, no dia 12.

Sem questionarem a guerra nem o modo como ela tem sido levada a cabo, põem a tónica no “aumento significativo” da ajuda humanitária, no seu transporte e no número de pontos de passagem dedicados, de modo a garantir a distribuição segura aos dois milhões de não-combatentes.

Para o jornal francês La Croix, que noticiou o caso, a recomendação do CIS contradiz a opinião maioritária israelita. “Segundo uma sondagem realizada pela cadeia de televisão Channel 12, no final de janeiro, 72% dos Israelitas consideram que o enclave palestiniano não deve receber ajuda humanitária, enquanto não forem libertados os cerca de 130 reféns israelitas ainda detidos pelo Hamas”, escreve o jornal. E o jornal releva que, “numa altura em que o caos humanitário e o fracasso na obtenção de um cessar-fogo entre o Hamas e Israel, na Faixa de Gaza, estão a causar profunda preocupação internacional”, o CIS alerta para “os riscos cumulativos” para a segurança e para os interesses estratégicos de Israel, causados ​​pela política governamental de ajuda humanitária a mais de dois milhões de habitantes de Gaza não combatentes.

Palestinianos clamam por comida na cidade de Rafah, no sul da Faixa de Gaza. (Créditos fotográficos: Unicef/Abed Zagout – setemargens.com)

O CIS teme “danos irreparáveis”, se o governo israelita não alterar a “abordagem” à situação em Gaza e alerta para o facto de o que designa por “avareza humanitária” de Israel já ter levado à suspensão do fornecimento de armas por governos de países europeus, como a Bélgica, a Espanha e a Itália. Ao mesmo tempo, sublinha que os parceiros árabes, principalmente a Arábia Saudita, expressaram a sua desaprovação da estratégia israelita em abrandar o processo de normalização.

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A missiva ao governo carateriza a situação crescente como “tangível, iminente, multidimensional e prejudicial ao esforço de guerra”. Para lá dos aspetos morais, a crise na Faixa de Gaza, que está à beira de um desastre humanitário, é uma ameaça aos interesses nacionais vitais. Já afeta a liberdade de operação das Forças de Defesa de Israel (FDI) e a capacidade de Israel de determinar o futuro da Faixa, assim como prejudica as relações de Israel com os EUA, com a Europa, com os parceiros árabes na paz e com a comunidade internacional, em geral. Por isso, o governo deve inverter, rápida e determinadamente, estas tendências negativas e renovar a sua abordagem a esta questão, o que implica parar de discutir com amigos e com outras pessoas sobre cada entrega de assistência e expandir, significativamente a quantidade de ajuda, o seu transporte e o número de travessias dedicadas, assegurando, ao mesmo tempo, a distribuição sustentada aos dois milhões de não combatentes.

Avoluma-se a frustração e a raiva pela falta de Israel de uma estratégia do “dia seguinte” e, no imediato, pelo que se denomina de “mesquinhez humanitária”. (pt.euronews.com)

Nos contactos dos membros do CIS com altos funcionários da administração dos EUA (realizados em estruturas não CIS), suscitou-se amplo acordo sobre dois objetivos de guerra: eliminar as capacidades do Hamas e libertar os reféns. Todavia, avoluma-se a frustração e a raiva pela falta de Israel de uma estratégia do “dia seguinte” e, no imediato, pelo que se denomina de “mesquinhez humanitária”. Estes sentimentos foram expressos antes da recente visita do tenente-general aposentado Benny Gantz, membro do gabinete de guerra, a Washington, que, supostamente, se concentrou nestas questões, mas não menos firmemente na sua esteira.

A decisão da administração dos EUA de lançar a ajuda humanitária por via aérea (medida sem precedentes tomada em território controlado por um Estado amigo) e a decisão de o presidente Joe Biden de estabelecer um local de abastecimento marítimo refletem o lugar da ajuda humanitária nos valores norte-americanos, nas considerações estratégicas e nas restrições internas, tal como demonstram frustração, ante as políticas do governo israelita e a determinação em negar a Israel o “poder de veto”, nesta matéria e, por implicação, noutras questões relativas à guerra em Gaza e ao futuro da Faixa.

Tenente-general aposentado Benny Gantz, membro do gabinete de
guerra. (britannica.com)

Tudo vem expresso no Memorando de Segurança Nacional (NSM) 20, assinado pelo presidente, a 8 de fevereiro, que exige que o Departamento de Estado e o Pentágono obtenham garantias escritas dos destinatários da ajuda de segurança americana de que aderem às regras do direito internacional, incluindo a prestação de ajuda humanitária. A administração norte-americana procura tais garantias da parte de Israel e os membros do Congresso avançam com medidas para verificar o cumprimento e estipular as consequências das violações.

A intensidade do protesto público nos EUA, tal como o efeito da situação, em Gaza, na erosão do apoio a Israel (sobretudo, entre os jovens), deveria alarmar qualquer pessoa que aprecie a importância do fator norte-americano no paradigma de segurança nacional presente e futuro.

Nos contactos com os parceiros de paz – o Egito, a Jordânia e os signatários dos Acordos de Abraham –, o CIS descobriu que o apoio inicial à resposta forte às atrocidades assassinas cometidas pelo Hamas, a 7 de outubro, cedeu o lugar a expressões de preocupação sobre as repercussões da crise humanitária.

Desespero na população civil de Gaza. (Créditos fotográficos: UNICEF/UNI448902/Ajjour – unicef.org)

Tal como alguns destes Estados prestam ajuda à população civil de Gaza, representantes de mais do que um deles relatam a decisão de suspender as medidas de normalização. Isto inclui limitar o contacto com Israel à abordagem direta da situação em Gaza e da estabilidade regional, bem como à necessidade de evitar provocações da parte de extremistas de ambos os lados, durante o Ramadão.

Quer seja inspirada pelas declarações e ações da administração dos EUA, quer seja baseada em considerações independentes, a oposição à “mesquinhez humanitária” de Israel, em toda a Europa e fora dela, já levou vários governos a suspender o fornecimento de armamento a Israel.

Como resultado, verifica-se que os danos causados ​​pela política de mesquinhez humanitária, bem como os das declarações ultrajantes de ministros e de deputados irresponsáveis, minam os fundamentos da segurança e do apoio diplomático a Israel provenientes de capitais, que são mais importantes para a nossa segurança. Por isso, os subscritores da carta apelam ao governo a que restrinja “os tições extremistas”, priorize “a segurança e os interesses estratégicos de Israel sobre as considerações da coligação” e lidere, “urgentemente, amplos esforços de ajuda humanitária, antes que a liberdade das FDI para operar na Faixa, a liberdade de Israel para moldar o futuro da Faixa, e as relações com os EUA, com os parceiros árabes de paz, com a Europa e com toda a comunidade internacional sofram danos irreparáveis”.

Pessoas deslocadas devido aos combates, buscam abrigo numa clínica de saúde em Gaza. (Créditos fotográficos: OMS – news.un.org)

Em suma, o CIS, criado para promover a solução de dois Estados e resolver o conflito israelo-palestiniano, considera que a crise humanitária na Faixa de Gaza, fruto da mesquinhez avara do governo, constitui ameaça aos interesses nacionais vitais, prejudica a segurança e mina as relações entre o Estado judeu, os parceiros ocidentais e os árabes. E o apelo à mudança de abordagem, aumentando a ajuda e a distribuição segura dos bens de primeira necessidade pelos mais de dois milhões de não combatentes, é uma pedrada no charco sobre a dureza infame do governo e do seu braço armado. Esta atitude do CIS é espinho acerado na estratégia governamental de eliminação do Hamas até ao último homem. Lê o verdadeiro interesse nacional e o significado da onda de contestação que grassa um pouco por toda a parte em reação à política israelita.

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Entretanto, quando Israel aprovava, a 16 de março, um plano para atacar a cidade de Rafah, no Sul da Faixa de Gaza, onde se aglomera perto de 1,5 milhão de pessoas, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) alertava que a escalada das hostilidades estava a ter “um impacto catastrófico” nas crianças e nas famílias.

Em comunicado, aquela agência da Organização das Nações Unidas (ONU) afirmava que “as crianças estão a morrer a um ritmo alarmante”, que “milhares de pessoas foram mortas” e que “milhares de pessoas ficaram feridas”. Ao mesmo tempo, calculava que 1,7 milhões de pessoas tenham sido forçadas a deixar os seus locais de habitação e a deslocar-se para o Sul de Gaza, onde sofrem a crónica falta de água, de alimentos, de combustível e de medicamentos.

Só em Rafah, estão concentradas e confinadas mais de 600 mil crianças, “sem terem nenhum lugar seguro para ir”, já que as suas casas foram destruídas e, em muitos casos, as suas famílias dilaceradas.

Só em Rafah, estão concentradas e confinadas mais de 600 mil crianças, “sem terem nenhum lugar seguro para ir”. (Créditos fotográficos: UNICEF/UNI521729/El Baba – setemargens.com)

E, no Norte da Faixa de Gaza, uma em cada três crianças com menos de dois anos sofre de desnutrição aguda – mais do dobro da taxa (de 15,6%) que se verificava em janeiro. “A subnutrição entre as crianças – denuncia a organização – espalha-se rapidamente e atinge níveis devastadores e sem precedentes. Pelo menos, 23 crianças no Norte da Faixa de Gaza terão morrido de subnutrição e desidratação, nas últimas semanas, aumentando o número crescente de crianças mortas na Faixa neste conflito atual – cerca de 13450, segundo dados do Ministério da Saúde palestiniano”.

Recordando que, na guerra, “são as crianças quem sofre primeiro” e quem mais sofre, a UNICEF reitera princípios do direito humanitário internacional, segundo os quais “nenhuma criança deve ser mantida como refém ou usada, de qualquer forma, em conflitos armados”. E acrescenta: “Os hospitais e as escolas devem ser protegidos contra bombardeamentos e não devem ser utilizados para fins militares.”

“A velocidade com que esta catastrófica crise de desnutrição infantil, em Gaza, se desenrolou é chocante, especialmente quando a assistência desesperadamente necessária está disponível a poucos quilómetros de distância”, lamenta Catherine Russell, diretora executiva da UNICEF, que advertiu: “Tentámos, repetidamente, fornecer ajuda adicional e apelámos, repetidamente, a que os desafios de acesso que enfrentámos, durante meses, fossem resolvidos. Em vez disso, a situação das crianças piora a cada dia que passa. Os nossos esforços para fornecer ajuda vital estão a ser prejudicados por restrições desnecessárias, que estão a custar a vida às crianças.”

Catherine Russell, diretora executiva da UNICEF. (Créditos fotográficos:
UNICEF/UN0584692/McIlwaine – unicef.org)

Nos últimos dias de fevereiro, morreu na Faixa de Gaza a décima criança vítima de fome, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Porém, os números podem ser mais altos, segundo Christian Lindmeier. E a morte dos mais novos na Faixa de Gaza levou Adele Khodr, diretora regional da UNICEF para o Médio Oriente e Norte de África, a emitir uma declaração: “Estas mortes trágicas e horríveis são causadas pelo homem, previsíveis e totalmente evitáveis. A falta generalizada de alimentos nutritivos, de água potável e de serviços médicos, uma consequência direta dos impedimentos ao acesso e dos múltiplos perigos que as operações humanitárias da ONU enfrentam, está a afetar crianças e mães, dificultando a sua capacidade de amamentar os seus bebés, especialmente no Norte da Faixa de Gaza. As pessoas estão famintas, exaustas e traumatizadas. Muitos estão agarrados à vida.”

Adele Khodr, diretora regional da UNICEF para o Médio Oriente e
Norte de África. (unicef.org)

Adele Khodr apela à criação de vias seguras para a distribuição de bens: “As agências de ajuda humanitária como a UNICEF devem ser capacitadas para inverter a crise humanitária, [para] prevenir a fome e [para] salvar vidas de crianças. Para isso, precisamos de múltiplos pontos de entrada fiáveis que nos permitam trazer ajuda de todas as passagens possíveis, incluindo o Norte de Gaza, e garantias de segurança e passagem desimpedida para distribuir ajuda, em grande escala, em toda a Gaza, sem recusas, atrasos e impedimentos de acesso.”

Adele Khodr sustenta que as temíveis mortes de crianças estão a acontecer e, “provavelmente, aumentarão rapidamente, a menos que a guerra termine e os obstáculos à ajuda humanitária sejam imediatamente resolvidos”. Por isso, pede medidas para que seja possível apoiar os que sofrem. A sensação de impotência e desespero entre pais e médicos, ao perceberem que a ajuda vital, a apenas alguns quilómetros de distância, está fora do alcance, é insuportável, mas pior ainda o são os gritos angustiados dos bebés que perecem lentamente perante o olhar do Mundo. As vidas de milhares de bebés e de crianças dependem de medidas urgentes que sejam tomadas quanto antes.

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Em guerra, a morte de não combatentes (e situações que levem à morte, como a desnutrição, as doenças, as deslocações perigosas), sobretudo, no atinente a crianças e a idosos, não pode, em meu entender, continuar a ser considerada efeito colateral do conflito, mas, pura e simplesmente, um dos efeitos nefastos da guerra. Se não se permitem as atrocidades da guerra, não se permitam os seus eufemismos, nem as inutilidades (pessoas) que ela seleciona para atirar borda fora!

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21/03/2024

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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