Três apontamentos sobre estes dias

 Três apontamentos sobre estes dias

(© Timon Studler – Unsplash)

Papa Francisco (© União Europeia, 2021 – cidob.org)

1 – Há homens que, pelas suas profundas convicções, deixam uma marca indelével na História dos povos. São homens que dedicaram a vida a combater a desigualdade, a discriminação, o racismo, que se bateram pela liberdade, pela fraternidade e pela paz. Em qualquer parte do Mundo, qualquer que fosse o acontecimento que atentasse contra estes valores, ergueram a sua voz, principalmente contra os poderosos. O seu combate não teve fronteiras, nem dias marcados. Todos os dias foram dias para clamar pela justiça, pelo direito à dignidade e à decência. Mesmo nas condições mais duras, tiveram sempre uma palavra, ora de conforto, ora de denúncia. São homens sem idade, que combatem até ao seu último sopro de vida. Francisco foi um desses homens.

2 – Quando o Presidente da República se referiu às picardias entre os partidos políticos a propósito da Spinumviva e dos seus clientes, não estava certamente a pensar no que acontecia entre os indivíduos que vivem na região noroeste da França, a Picardia. O ar com que o alto magistrado da Nação se referiu ao conhecimento de mais sete clientes da empresa do primeiro-ministro foi para desvalorizar o significado da revelação.

(facebook.com/jornalexpresso)

O caso, todo o caso, é, no entanto, para levar a sério. Mais a sério ainda porque se trata do incumprimento de um preceito a que Luís Montenegro estava obrigado a cumprir, logo que soube que iria ser indigitado para o cargo. Não o fez nessa altura. Quando foi obrigado a fazê-lo, deu informações incompletas. E quando a Entidade para a Transparência o forçou, lá revelou mais sete empresas. Por estas razões, a situação revela um traço de personalidade que não pode estar presente em alguém investido da responsabilidade de um primeiro-ministro: a fuga aos deveres. Mesmo que a extensão da clientela directa fique por aqui, em caso de ser reinvestido no cargo, o governo presidido por Luís Montenegro irá ter tudo menos estabilidade política. Sobre ele recaem, já não graves suspeitas, mas actos comprovadamente feridos de irregularidades. E, nestes casos, cumpre ao Presidente da República dar posse a uma personalidade irrepreensível do ponto de vista cívico, o que não é o caso de Luís Montenegro. Só assim se pode ser digno de confiança, um valor indispensável para o exercício de um cargo político. Desvalorizar o acontecimento, chamando-lhe “picardia” é, a quem assim classifica aqueles actos, tornar-se conivente com as faltas praticadas, oferecendo “sem mais aquela” argumentos à extrema-direita para reforçar o seu combate ao regime democrático. Se, em qualquer circunstância, o assunto é grave, mais grave se torna em contexto eleitoral, porque está em causa, não uma empresa de consultadoria detida pelo cidadão Luís Montenegro, mas por essa empresa ter servido de fonte de receita ao cidadão Luís Montenegro, na qualidade de primeiro-ministro, nem que essa receita fosse de um cêntimo.

3 – Uma empresa de sondagens vem apresentando diariamente os resultados obtidos pelo método que ela designa por “tracking poll”, a propósito das eleições legislativas de 18 de Maio. Segundo o “Cambridge Dictionary”, “tracking poll: a study in which the same small group of people are asked the same set of questions repeatedly over time to measure how their opinions, needs, etc.”. 

Portanto, esta técnica está longe de ser uma sondagem. É, exclusivamente, um método de formação de consensos, equivalente à técnica Delphi. Nesta técnica, estão presentes quatro critérios: (1) um pequeno grupo, não inferior a 30 pessoas para poder ter significado estatístico; (2) o conjunto de questões de que se deseja conhecer a opinião dos participantes; (3) a aplicação das mesmas perguntas ao longo de várias voltas (a técnica Delphi admite três voltas); (4) informação de retorno, conhecimento por parte dos participantes dos resultados da volta anterior.

(hireforceteam.com)

Ora o que a empresa portuguesa altera substancialmente é a natureza do grupo, em vez de ser sempre o mesmo grupo, o grupo altera-se constantemente, com cada elemento a poder responder às mesmas questões somente duas vezes. Isto faz com que estejamos em presença de uma técnica que nem é uma sondagem, nem um “tracking poll”, nem um Delphi, nem uma síntese dos três métodos. Por essa razão, na ficha técnica, deveria constar a técnica de validação do método, uma vez que só ele nos pode garantir a credibilidade dos resultados.

Na sua ausência, o que nos estão a mostrar deve ser considerada uma técnica avulsa, que está a contribuir enviesadamente para o condicionamento das intenções de voto dos eleitores. Ou seja, a divulgação diária dos resultados apresentados pela empresa, obtidos desta maneira, não passa de uma manipulação, uma vez que os responsáveis da empresa estão a ocultar a dimensão mais importante do estudo, considerando que, em períodos como este, a atenção das pessoas está mais desperta e vulnerável a tudo quando diga respeito ao assunto que se lhes pede para se pronunciarem.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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08/05/2025 

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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